Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
[email protected]

Ditadura brasileira: procura-se justiça histórica. O caso Eloá Guimarães, por Urariano Mota

Eloá Guimarães foi presa no Recife, em agosto de 1969. Ela foi presa e torturada, e não foi acusada de nada.

Ditadura brasileira: procura-se justiça histórica. O caso Eloá Guimarães*.

por Urariano Mota

Entrevista com Elizabeth Guimarães em 26 de agosto de 2023.

Como foi que você chegou aqui ao Recife?

Elizabeth – Cheguei aqui por um motivo muito importante, e foi uma viagem espontânea, a partir do momento que foi iniciado com um artigo seu “Tércia, memória da ditadura”, que eu li no Brasil 247, no dia 30 de junho. Nesse artigo o senhor mencionava que o funeral de Tércia em Minas Gerais, e estava ali mencionado pela primeira vez, para os meus olhos, o nome de Mércia Albuquerque. E eu entrei em pânico e em regozijo. O nome de Mércia Albuquerque tem estado em minha memória, na minha vida, no meu coração, muitos e muitos anos.

Por que o nome de Mércia Albuquerque lhe trazia regozijo e pânico?

Elizabeth – Sim, porque em 1969 foi o ano em que eu fui para o Canadá. Então poucos dias depois, minha irmã Eloá, quatro anos mais nova que eu, veio ao Recife visitar a amiga Stela, que estava em Londres e veio rever a mãe. Minha irmã Eloá não pôde se conter de rever Stela, e veio aqui passar uns dias. Então, quando Stela voltou para Londres, Eloá ficou aqui no Recife, porque tinha outros amigos que também estavam aqui. No Rio, ela estudava Sociologia e Teatro. Ela veio em agosto para ver Stela. Antes de vir, o meu pai disse a ela: “se você precisar de algum dinheiro no Recife, você procure o senhor fulano de tal, com quem eu tenho negócios, depois eu me acerto com ele. Isso foi em agosto de 1969. Pois bem: a partir do momento em que ela foi encontrar esse senhor que tinha negócio com meu pai, a vida dela se complicou.

Por quê?

Elizabeth – Eu acho que eles almoçaram juntos, ele devia ser um representante de produtos farmacêuticos, e quando minha irmã saiu de lá esqueceu os óculos. Os óculos dela eram necessários, porque ela possuía uma séria infecção de toxoplasmose no olho direito, e estava tomando altíssimas doses de corticoide. Então ela não podia ficar sem os óculos escuros. Então, depois que ela saiu de lá, ligou pra esse senhor e disse “por favor, eu preciso dos meus óculos, mande entregar no endereço assim, assim, porque eu não posso ficar sem eles”. Nessa mesma noite, muito tarde, às 11 e tantas da noite, bateram na porta, ela imediatamente pensou “é o rapaz trazendo os óculos”. Abriu a porta, entraram quatro policiais armados e dali a levaram para a prisão. Isso foi na época em que havia a negociação da troca do embaixador americano Elbrick, sequestrado, por prisioneiros políticos. 

Eloá estava com quantos anos na época?

Elizabeth – Vinte e dois anos.

Ela foi acusada de quê?

Elizabeth – Oficialmente, ela não foi acusada de nada. Ela não pertencia a grupo armado, ela não estava aqui fazendo política. Antes da sua prisão, ela havia visitado um lugar histórico do Recife, comprou livros didáticos, que depois os policiais viram e disseram que aquilo só podia ser coisa política.

Material subversivo, como eles diziam.

Elizabeth – Ah, mas eram livros didáticos, do curso secundário. Então ela ficou na prisão vários dias, e meus pais já estavam preocupadíssimos em Minas. Quando meu pai recebeu esta carta,

Que eu encontrei muitos anos depois. Essa carta chegou a meus pais, com endereço certo, avisando por exemplo, “não sei se está certo o seu nome e endereço, mas se por acaso for sua filha, tome providência”. E depois, a carta disse: “ela se acha sem finanças, sofrendo assim as piores humilhações.

Ela ficou presa e torturada?

Elizabeth – Ela era psicologicamente torturada, porque muitas vezes ela disse que era levada para um pântano, colocavam capuz e botavam revólver na cabeça, ameaçando explodir o seu crânio. E havia também outros momentos em que ela ouviu as falas dos policiais: “mas não é essa moça, a outra loura, e essa é morena”. E isso durou dias e dias. Ela esteve presa na Secretaria de Segurança Pública, no Dops. Presa incomunicável. E o remédio que ela precisava tomar para os olhos foi suspenso bruscamente. A cortisona tomada não podia parar. Então ela acumulou água no corpo. Ficou enorme de gorda, porque o remédio teria que ser diminuído paulatinamente.

Ela passou quantos dias presa?

Elizabeth – Eu sei que a carta de uma pessoa avisando a prisão para o meu pai, chegou em setembro. Então, demorou pelo menos um mês.

Quando ela saiu da prisão, houve alguma justificativa?

Elizabeth – Não, Quando recebeu essa carta. meu pai saiu do interior de Minas, foi para o Rio de Janeiro, de lá veio para o Recife. E foi na prisão visitá-la. Agora, eu tenho que mostrar para o senhor trechos do diário do meu pai, onde eu consegui a informação. Nesse diário, ele conta que veio, encontrou com esse senhor com quem mantinha negócios de produtos farmacêuticos, visitaram a Secretaria e num momento depois, ele recebeu a notícia do chefe da Secretaria de Segurança Pública dizendo que a minha irmã havia desmaiado. Então depois disso, o meu pai conseguiu tirá-la e levou-a para um hotel. Um dia depois, ele a levou para o Rio.

Onde foi que Mércia Albuquerque cruza o caminho da sua irmã?

Elizabeth – Nas anotações que eu fiz, a minha irmã descreve que estavam todos os presos numa sala enorme, com as janelas fechadas, incomunicáveis, e aí ela ficava sempre paralisada numa cama de lona, e Mércia chegou depois. Mas a presença dela foi carinhosa, foi uma presença amiga, foi uma presença que impactou a minha irmã. Mércia foi uma pessoa com quem ela podia ter confiança, E minha irmã muitas vezes falava muito de Mércia, quando escrevia. Então Mércia nunca saiu da minha memória, e o seu texto confirmou.

Desde que defendeu Gregório Bezerra em 64, Mércia era a primeira pessoa que os perseguidos ou familiares de presos políticos procurava no Recife.

Elizabeth – Então quando eu vi o nome de Mércia, eu me disse “é agora!”. Eu tenho que continuar a pesquisar na internet. Escrevi para os editores do Brasil 247 e do Vermelho, mas eles não sabiam o seu endereço físico. Então o tempo passou, e um dia estou lá de novo no Canadá, e aprece Mércia Albuquerque Ferreira. Eu falei “o quê?”. Era o Roberto Monte, no primeiro dia em que ele lançou a informação os livros dos diários dela. Então eu passei uma mensagem pra ele e ele respondeu no dia seguinte, emocionado, emocionadíssimo. Então ele confirmou que em 1969 Mércia esteve presa várias vezes. E minha irmã foi na época em que esteve aqui também. Então a única lembrança, a única pista disso tudo era o nome Mércia. Depois, apresentado o sobrenome.

E você chegou a ela a partir daquele texto que escrevi sobre Tércia.

Elizabeth – Sim. Foi o artigo sobre Tércia.

O seu trabalho, a sua pesquisa está a meio caminho, Elizabeth. Mais do que começou.

Elizabeth – Sim, graças a toda essa informação. Nesse trabalho agora eu estou tentando apresentá-lo à Comissão da Verdade, porque antes, eu vou lhe dizer: quando houve um movimento acerca dos mortos, desaparecidos e mutilados da ditadura, eu estava no Brasil, eu e minha irmã vimos a notícia no jornal, e olhamos uma para a outra. Ela estava fora da lista.  Ela estava viva, apesar da cabeça estar num sobe e desce. Então foi uma coisa muito triste, ninguém sabia do que havia acontecido com ela. Então eu fiz uma promessa a ela e a mim mesma: de algum dia fazer o possível para o reconhecimento do terror que ela sofreu.

Você quer uma reparação histórica da violência que ela sofreu.

Elizabeth – E da família. Ficamos todos presos e desmantelados. Minha mãe se dedicou o resto da vida dela, tias, irmãos, todos. E agora eu também vejo que o trauma sofrido por ela se transformou em diagnóstico de doença mental. E tem influência até hoje nos meus sobrinhos, na quarta geração, porque eles fazem perguntas, e cada um tem uma história, um pedaço, um            pedacinho de história. Então isso precisa reintegrar a família, a história, para que esse trauma não seja modificado em outras oportunidades.

O que você quer a partir do levantamento desses fatos, dessa tragédia realmente, é uma justiça histórica.

Elizabeth – Exato. O reconhecimento do que ela foi vítima. Uma jovem daquela época. O pânico daqueles anos é inesquecível. Depois da prisão, quando minha irmã estava com o passaporte, se preparando para ir ao Canadá, entrou em crise.

Que tipo de crise?

Elizabeth – Quando ela chegou no Rio de Janeiro, ela ficou escondida. Em casas de parentes e parentes. Por quê? Ela não sabia, não sabíamos se alguma polícia vinha atrás dela, depois da prisão.

Ela entra em crise mental em que ano?

Elizabeth – Logo depois da prisão. Não conseguia dormir. Nunca mais recuperou o equilíbrio. Ela tentou suicídio várias vezes. Cortava os braços. Não sabemos se ela chegou a ser estuprada na prisão, porque tem uma parte do trauma que vira amnésia. Mesmo as descrições do pântano não eram completas.

Então a violência é mais grave. Não é só o que fizeram com ela na prisão. Destruíram para sempre a vida dela.

Elizabeth – Claro. Nunca mais voltou a ser a mesma. Houve época em que voltava um surto de “normalidade”. Olha aqui as fotos, tinha períodos “bons”, olha aqui um sorriso lindo, aberto, no princípio, depois ela foi ficando assim, e morreu do coração. Ela faleceu em 2001.

Arrastando um desequilíbrio mental de 1969 a 2001.

Elizabeth – Nas fotos, você vê uma doente mental, feliz, enganosamente feliz. Tomando remédio pesado.

Versos de um poema de Eloá Guimarães:

“A cada ponto que eu dava, na paciente arte de bordar
meu coração e minha mente, numa viagem de regressão
buscavam tecendo a lã, uma infinita reorganização de ideias, sentimentos,
migalhas perdidas no passado,
o retorno de uma consciência mais clara,
uma alma mais clara”.

*Vermelho  https://vermelho.org.br/2023/08/27/ditadura-brasileira-procura-se-justica-historica-o-caso-eloa-guimaraes/

Urariano Mota – Jornalista do Recife. Autor dos romances “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude”

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador