A farsa do ‘milagre econômico’ na ditadura

Ana Gabriela Sales
Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.
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Foto: ReproduçãoInauguração da Ponte Rio-Niterói

Jornal GGN – Com a polarização política dos últimos anos e as crises que rodeiam o estado democrático de direito, muitos cidadãos vêem como saída entregar o país nas mãos dos militares, já que na década de 60 o país teve uma melhora significativa na administração, nomeada de ‘milagre econômico’. Mas tais reformas não foram tão efetivas assim, como explica Vinicius Müller, professor de história econômica do Insper, em entrevista ao El País.

Na época, para obter os avanços significativos na economia, uma das medidas adotadas foi a concentração de renda, que desamparou a classe trabalhadora. O abuso de poder, a censura e a interferência nos sindicatos também marcaram aqueles anos. E, apesar do crescimento do PIB, da indústria de exportação e do fluxo de capital externo, a corrupção era mais comum do que povo imaginava, afinal as investigações não existiam para esses casos. 

do El País 

O lado obscuro do ‘milagre econômico’ da ditadura: o boom da desigualdade

por Beatriz Sanz e Heloísa Mendonça 

Mesmo com o forte crescimento e criação de empregos no período militar, os salários foram achatados e a distância entre ricos e pobres cresceu

 

O Brasil polarizado tem reproduzido uma frase que estava na boca de alguns saudosistas de tempos em que notícias sobre violência e economia em marcha lenta pareciam raras. “Na época dos militares era melhor”, tornou-se bordão de quem viveu aqueles anos, e ignora a repressão e a presença de censores nos jornais da época para filtrar notícias negativas à ditadura.  A ideia ressurgiu inclusive entre jovens que se anunciam eleitores do pré-candidato à presidência Jair Bolsonaro, por acreditar que no tempo do regime militar o Brasil era mais alentador do que os dias atuais. Bolsonaro alimenta essa ideia tecendo elogios ao período. Entre os argumentos mais utilizados pelo candidato e pelos defensores da intervenção para mostrar a eficácia do regime está a conquista do “milagre econômico”, que ocorreu no Brasil entre 1968 e 1973. De fato, nesta época, o país conseguiu crescer exponencialmente, cerca de 10% ao ano, e atingiu, em 1973, uma marca recorde do Produto Interno Bruto (PIB), que aumentou 14%. O avanço veio acompanhado também de uma forte queda de inflação. A taxa, medida na época pelo Índice Geral de Preço (IGP), caiu de 25,5% para 15,6% no período.

O que não se explica diante desse número, entretanto, é o fato de o crescimento ter sido muito bom para empresários, e ruim para os trabalhadores. Para que o plano de crescimento funcionasse, os militares resolveram conter os salários, mudando a fórmula que previa o reajuste da remuneração pela inflação, o que levou a perdas reais para os trabalhadores. A adoção de uma medida tão impopular só foi possível através do aparato repressivo do regime sobre os sindicatos, que diminui o poder dos movimentos e de negociação dos operários. Os militares também interferiram em diversos sindicatos, muitas vezes substituindo seus dirigentes. “Foi um crescimento às custas dos trabalhadores”, explica Vinicius Müller, professor de história econômica do Insper. O arrocho salarial acabou aliviando os custos dos empresários e permitiu reduzir a inflação.

A melhora na atividade econômica se explicava, à época, por uma combinação de fatores. Uma conjuntura mundial mais favorável naqueles anos permitiu crédito externo farto e barato, por exemplo. O Brasil, por sua vez, criou regras que facilitaram a entrada de capital estrangeiro e investiu num programa de desenvolvimento do parque industrial além de reformas estruturais. O crescimento foi acompanhado pela abertura de novos postos de emprego no mercado formal e da expansão do consumo interno. Economistas ouvidos pelo EL PAÍS explicam que o milagre aconteceu principalmente regado a dinheiro internacional que aterrissou através da entrada de multinacionais que encontraram no Brasil um terreno propício para a expansão sob a tutela dos militares, e também por empréstimos advindos de fundos internacionais. Era um ambiente oposto ao do período anterior ao golpe de 1964, quando a grande convulsão política, em plena guerra fria, no país tornava o ambiente econômico incerto e afugentava o investidor.

Problemas sociais

Como a distribuição dos resultados do crescimento econômico foi bastante desigual, a concentração de renda também aumentou muito no período, especialmente entre a população que possuía um grau maior de instrução. Isso fez com que a desigualdade social conhecesse níveis nunca vistos antes. Em 1960, antes da ditadura, o índice de Gini, utilizado para medir a concentração de renda estava em 0,54 (o coeficiente de Gini vai de 0 a 1, quanto mais perto de 1, mais desigual) e pulou para 0,63 em 1977. Os economistas foram unânimes em dizer que os empresários e a classe média que possuía maior nível de instrução foram beneficiados em detrimento da parte mais pobre da população.

Os altos índices de crescimento do PIB vividos enquanto a ditadura esteve instalada no país também não foram acompanhados de uma melhora nos indicadores sociais. Foi exatamente o oposto do que aconteceu.

Além disso, como o governo militar fez uma escolha de investir maciçamente na industrialização, inclusive do campo, muitas pessoas decidiram abandonar o sertão com o sonho de tentar uma vida melhor na cidade, incentivando um êxodo rural sem planejamento e nunca revertido. Segundo o IBGE apenas 16% da população morava no interior do país em 2010.

O crescimento econômico durante a ditadura começou a ser alavancado durante o Governo de Castelo Branco, que adotou um ambicioso programa de reformas para equilibrar as contas públicas, controlar a inflação e desenvolver o mercado de créditos. Batizado de Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), ele foi responsável por reformas fiscais, tributárias e financeiras. Castello Branco implementou diversas medidas no sentido de incentivar um maior grau de abertura da economia brasileira ao comércio e ao movimento de capitais com o exterior. A partir de 1964, também foram introduzidos na legislação brasileira diversos mecanismos de incentivos às exportações.

Mas foi no Governo do general Emílio Garrastazu de Médici, sob o comando do então ministro da Fazenda, Antonio Delfim Netto, que o projeto econômico teve como princípio o crescimento rápido, com expressivo aumento da produção – com destaque para indústria automobilística- e grandes obras de infraestrutura. “O Governo apostou em grandes obras e investimento estimulando o setor privado e usando o crescimento como propaganda para legitimar o regime durante a época mais repressiva da ditadura. Era muito importante que ele tivesse apoio de uma parte da sociedade”, explica Muller.

Foi nessa época que nasceu o primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento (IPND). O plano investiu principalmente na construção de estradas e obras de infraestrutura, como por exemplo, a Ponte Rio-Niterói (começou em 1969 e foi inaugurada em 1974) e a nunca terminada rodovia Transamazônica.

Crise do petróleo

Na crista do ciclo do crescimento, a economia brasileira tão dependente de empréstimos estrangeiros, passou a enfrentar certa dificuldade quando uma forte crise econômica abalou o cenário internacional: o choque do petróleo. Conflitos entre países membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) derrubaram a oferta do insumo entre 1973 e 1974, fazendo os preços quase quadruplicarem no período (o barril subiu de três dólares para11,60), afetando países importadores como o Brasil.

“Com a crise internacional de 1973, temos uma quebra deste modelo econômico baseado no alto endividamento externo e, com isso, a economia vai perdendo força”, afirma o historiador Pedro Henrique Pedreira Campos, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Como a estabilidade econômica era um argumento essencial para a manutenção do governo militar, os economistas que faziam parte do regime optaram por não abrir mão do modelo e decidiram que o país deveria continuar crescendo a qualquer custo, mesmo que continuasse se endividando cada vez mais.

Foi nesse contexto que surgiu o segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (IIPND), este ainda mais ousado que o primeiro, que investiu especialmente na criação e expansão de empresas estatais. A Petrobras ganhou subsidiárias, a usina hidrelétrica de Itaipu foi construída, mostrando o quanto a geração de energia era uma bandeira importante naquele momento em que o Brasil ainda não tinha uma matriz energética estabelecida e necessitava da importação desse bem.

Muller destaca que “os militares tinham planejamento a longo prazo” e que a ideia inicial era de que o país ficasse independente da importação de energia e começasse a gerar renda com a sua produção própria, essa renda seria utilizada para saldar a dívida externa. O plano deles, entretanto, não contava com a retração das maiores economias que, em determinado momento, chegaram para cobrar a fatura. A crise se prolongou mais do que o Governo imaginava.

Mas a conta do crescimento desenfreado baseado em um alto grau de endividamento ficou para a redemocratização. Ao deixarem o poder em 1984, a dívida representava 54% do PIB segundo o Banco Central, quase quatro vezes maior do que na época que eles tomaram o poder em 1964, quando o valor da dívida era de 15,7% do PIB. A inflação, por sua vez, chegou a 223%, em 1985. Quatro anos depois, o país ainda não tinha conseguido se recuperar e ostentava um índice de inflação de 1782%. No jargão econômico, costuma-se dizer que os militares deixaram uma “herança maldita”.

“Embora o regime tenha aparelhado muito bem grande parte do nosso parque industrial, melhorado em aspectos técnicos e tecnológicos a infraestrutura, quando veio a conta, a conta veio muito alta”, explica Guilherme Grandi, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP (FEA/USP)”

Os militares e a corrupção

Outra percepção recorrente é a de que no período da ditadura não havia corrupção. “Vários estudos já comprovaram que existia corrupção e era mais fácil que esses malfeitos ocorressem porque não havia investigação”, ressalta Grandi. Segundo ele, a relação promíscua entre interesses privados e órgãos públicos foi aprimorada nesse período.

Pedreira Campos é autor do livro Estranhas Catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988 que analisa mais profundamente essa relação. “Houve vários casos de corrupção na ditadura, principalmente no período da abertura envolvendo agentes do estado que foram acusados de se apropriar de recursos públicos”.

A ausência de notícias sobre corrupção no período tem também outra explicação. O Brasil viveu sob um regime de censura que foi estabelecida nos meios de comunicação que estavam orientados a publicar notícias que fossem favoráveis ao governo. E é por conta dessa propensão a maquiar a realidade que notícias denunciando escândalos de corrupção não estampavam a manchete dos jornais. “Um cenário como esse é ideal para a prática da corrupção, os indícios indicam que havia mais corrupção naquele período”, completa Pedreira Campos.

Ana Gabriela Sales

Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.

4 Comentários

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  1. Tem mais…

    Penso que uma medida devastadora para a economia e principalmente aos assalariados, tomada na épocal, foi a maxidesvalorização da moeda. Foram duas maxidesvalorizações realizadas nos governos militares, todas as duas no governo do então general João Figueiredo. A primeira foi em torno de 40%!! Se me lembro bem, (ainda era muito garoto) implementada através de um recesso bancário de alguns dias. Quando os bancos abriram no início da semana, o pacote de maldades entrou vigor. Entre algumas medidas, a desvalorização da moeda, o congelamento dos salários entre outras. Foi barra. Eu vi os meus pais funcionários públicos ficarem sem reajuste salarial durante anos com uma inflação altíssima, pagando aluguel. Aliás aí estava um dos calcanhares de Aquiles desta época: os alugueis. Muitos não tinham acesso a casa própria, os finaciamentos eram escassos e as moradias melhores nas mãos de uma minoria, eram disputados ao sabor dos interesses de quem alugava. Os ricos viviam as benesses dos privilégios, enquanto a maioria da população sofria com políticas impopulares e duras, sem que pudesse reclamar ou reivindicar melhorias.

    Quem defende esta turma, não faz a menor idéia do passado ou perdeu a memória, por conveniência, ou por cinismo.

    1. E no entanto…

      E no entanto, quando a crise começou aqui, não faltou gente propondo colocar o dolar a 4 reais e clamando por “rodar a maquininha de fazer dinheiro” para gerar empregos. Acho que muitos aqui tem saudades daquela época…

      1. Mas…

        não parte da classe trabalhadora. São iniciativas que partem do empresariado ou dos comerciantes, que ainda veem naquele modelo inflacionário uma chance de ganhar algum a mais. Puro engano, a inflação só beneficia mesmo quem está na ponta mais alta da pirâmide. E mesmo hoje seria necessário alterar toda a política cambial do país. Quem exporta hoje por exemplo, não pode reter a moeda para negociá-la livremente como era antes. Na época da ditadura militar a moeda dos bastidores ricos não era o Cruzeiro, mas o dólar. Era muito comum ouvir falar de conhecidos ricos que haviam comprado imóveis pagando em dólares. Por isto para eles era até melhor que houvesse inflação com a moeda nacional, pois isto só os enriquecia ainda mais. A diferença do poder de compra das duas moedas, só aumentava a distância entre os ricos e pobres.

        Concordo que há muitos trabalhadores bancando de bobo na história, maria-vai-com-as-outras. Mesmo neste momento, mas não tem a menor idéia do que estão defendendo.

  2. Não foi bem assim

    Não foi bem assim. O “milagre” dos militares foi mais um dos tantos voos de galinha da nossa economia, que só durou enquanto o cenário externo foi favorável. Valeu-se da estabilização da economia produzida pela política de austeridade de Castello Branco (olha a analogia com FHC) e basicamente consistiu de uma radicalização dos modelos de nacional-estatismo já lançados mão por Vargas e Kubitchek. Mas não é verdade que tenha havido um achatamento salarial na época. O que houve foi um congelamento do salário mínimo, mas a oferta de empregos puxou os salários para cima, “descolando-os” do mínimo. Em suma, tanto os empresários quanto os trabalhadores tiveram sua renda aumentada, e a concentração de renda aumentou porque a renda dos empresários aumentou mais do que a dos trabalhadores (fenômeno comum em momentos de expansão rápida da economia). Mas em termos absolutos, a renda dos trabahadores aumentou, sim. A prova da satisfação dos trabalhadores na época foi a quse nula adesão destes à luta contra a ditadura – os grupos guerrilheiros só tinham estudante, intelectual, padre, ex-militares, operário mesmo era raro.

    O “milagre” pertence ao pasado. O que me deixa espantado é ver aqui volta e meia comentaristas pregando o retorno de algumas fórmulas da época, como a desvalorização da moeda e a produção de inflação como pretexto para aquecer a economia.

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