A volta dos cabeças de planilha

As anotações em negrito-itálico-sublinhado são minhas.

Há muito a discussão econômica midiática se converteu na arte de juntar argumentos para garantir os ganhos do setor representado. Mas às vezes se extrapola.

Há anos os cabeças de planilha insistem em todo tipo de falácia para desviar a atenção do câmbio. Desviam a discussão para fatores menos relevantes, invertem os argumentos alegando que o problemas das contas externas brasileiras é falta de competitividade, não de câmbio (como se o câmbio não fosse o instrumento para compensar falta de competitividade).

Mas, dentre todos os bordões, falácias e boutades, poucas vezes li algo tão primário como o artigo abaixo.

O Valor é o melhor jornal brasileiro, ainda. Mas abusa da má escolha de colaboradores.

Do Valor

Guerra cambial: qual é o inimigo? 

Gino Olivares |

Há um intenso debate sobre as taxas de câmbio. A contribuição brasileira foi dada pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega, que, em setembro, falou de “guerra cambial”. Na visão do ministro, haveria um esforço deliberado de diversos governos de desvalorizar suas próprias moedas para ganhar competitividade, e o Brasil estaria sendo prejudicado por essa ação externa. Porém, a análise da evolução da taxa de câmbio real nos últimos anos sugere que o principal inimigo do país nessa “guerra” é doméstico e não externo.

O G20 se reúne para discutir a guerra cambial. Um conjunto cada vez maior de países adota medidas contra o livre fluxo de capital, as relações entre China e EUA se deterioram em função do fenômeno. E o craque diz que o problema cambial é doméstico. 

A apreciação cambial brasileira não é um fenômeno recente. Usando as estatísticas calculadas pelo Ipea, a valorização desde 2002 é de aproximadamente 33%, trajetória que só foi interrompida brevemente em 2008. Assim, deveríamos procurar entender os motivos da significativa valorização dos últimos oito anos, e não apenas dos últimos meses, para identificar os verdadeiros “inimigos”. Para isso, nada melhor do que nos basear na teoria econômica.

Em termos teóricos, são quatro os fatores considerados como os principais determinantes da taxa de câmbio real: termos de troca, passivo externo líquido, gastos do governo e diferencial de produtividade entre os setores produtores de bens comercializáveis e não comercializáveis (o efeito Balassa-Samuelson). Intuitivamente, termos de troca mais favoráveis, menor passivo externo líquido, maiores gastos do governo, e maior diferencial de produtividade entre os setores produtores de bens comercializáveis e não comercializáveis estariam todos associados a uma taxa de câmbio real mais valorizada. Empiricamente, os trabalhos têm priorizado a análise de painéis de países, com resultados robustos e compatíveis com as previsões da teoria.

Vejamos o que aconteceu no caso brasileiro. Desde 2002 o país tem se beneficiado de termos de troca favoráveis, resultado do surgimento de um grande demandante (China) dos produtos que exporta. No período 2002-2010 essa variável registrou incremento de pouco mais de 23%. Já o passivo externo líquido (como proporção do PIB) caiu de 41,7% em 2002 para 29,7% na última informação disponível (junho deste ano). Essa redução foi consequência de uma bem conduzida estratégia de redução da vulnerabilidade externa do país. Ambos os fatores contribuíram para a apreciação real do período; mas não parecem ser “inimigos”.

O gasto público e indicadores de produtividade são os verdadeiros vilões a serem combatidos

Sobre o gasto do governo, o economista Fabio Giambiagi ilustrou neste mesmo jornal os problemas que o país tem. Segundo ele, a despesa primária do governo central (como proporção do PIB) passou de 19,5% em 2002 para um valor estimado de 22,7% em 2010, resultado de um crescimento a uma taxa equivalente ao dobro da taxa de crescimento do PIB. Essa trajetória deve ter contribuído de forma significativa para a valorização cambial brasileira. Eis aqui um sério candidato a “inimigo”.

Fantástico! O cabeção conseguiu descobrir uma causa sem consequência. O mero fato das despesas terem crescido mais do que o PIB não indica nada. É a mesma coisa que  afirmar genericamente que batida de automóvel provoca ferimentos graves e colocar no mesmo baú batidas a 20 km e a 200 km por hora. 

Quais os mecanismos que transformam os gastos públicos em apreciação cambial?

  1. 1.     Um superaquecimento da economia aumentando as importações mais do que as exportações. Quando houve esse superaquecimento? Em nenhum momento dos últimos 15 anos. Então essa correia de transmissão do gasto público não existe. Tem-se uma causa (o aumento do gasto público) e não se tem a consequência (o superaquecimento da economia).
  2. 2.     Quando o governo financia seus gastos com emissão de moeda ou venda de títulos. Há muitos anos o país tem superávit primário (ou seja, arrecada-se mais do que se gasta, excluindo juros). O aumento de dívida é exclusivamente decorrente das altas taxas de juros praticadas pelo BC. E não se ouve um pio sequer sobre afrouxamento da política monetária. Cadê a consequência?

Resta falar sobre o diferencial de produtividade entre os setores produtores de bens comercializáveis e não comercializáveis. Não temos informação disponível sobre esse diferencial; mas outros indicadores podem nos ajudar como os disponíveis no relatório “Doing Business 2011” (DB2011) do Banco Mundial, divulgado em novembro. Esse relatório avalia a facilidade de se fazer negócios em um país, característica que tem relação com a produtividade do mesmo, pelo menos no que tange ao custo de produzir no país na comparação com o resto do mundo.

O Brasil ocupa a posição 127 entre 183 países, tendo caído três posições com relação ao resultado do ano passado; sendo que na avaliação dos ganhos acumulados nos últimos cinco anos, o país ocupa a penúltima colocação, superando apenas a Papua Nova Guiné. Temos aqui mais um sério candidato a “inimigo”.

O câmbio serve justamente para compensar as diferenças competitivas entre duas economias. O fato da economia brasileira ser menos competitiva do que outras economias é argumento a favor da desvalorização cambial, não da valorização. É um cabeção sem tamanho!

Em resumo, a apreciação cambial brasileira não é um fenômeno recente. São quatro os fatores que determinam a evolução do câmbio real: termos de troca, passivo externo líquido, gasto do governo, e produtividade. Nos últimos anos os quatro registraram movimentos compatíveis com a apreciação cambial registrada. A melhora dos termos de troca foi consequência de um choque externo favorável e a redução do passivo externo líquido foi resultado de uma bem sucedida ação de política econômica. Não deveriam ser considerados “inimigos”. Já o gasto público e indicadores de produtividade têm registrado forte deterioração e se constituem nos verdadeiros “inimigos” a serem combatidos. Se o país está perdendo competitividade isso não parece ser consequência da ação deliberada de outros países e sim resultado de erros de política econômica e da estagnação da agenda de reformas. Os “inimigos” não são externos, são domésticos; o que significa que reverter essa situação depende de nós mesmos.

É do manual do perfeito idiota neoliberal latino-americano. Como ele mede a produtividade? Relação salário/faturamento. O câmbio apreciado deteriora essa relação.

Não por acaso outros países da região que também registram significativa valorização cambial, como Peru (posição 36 no DB2011 ante 46 no DB2010) e Chile (posição 43 no DB2011 ante 53 no DB2010), além de terem posição fiscal sólida, estão focados na agenda de melhoria da produtividade. O país precisa recuperar o tempo perdido.

E os economistas precisam dparar de perder tempo com bordões e trabalharem em teses minimamente criativas. Até para não comprometerem o nome da instituição atrás da qual se escondem.

Gino Olivares, doutor em Economia pela PUC-Rio, é economista-chefe da Brookfield Gestão de Ativos.

Luis Nassif

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