Nada além do discurso neoliberal na reunião do G20, por J. Carlos de Assis

O comunicado final da reunião do G20 em Brisbane reconhece um estado de virtual estagnação ou recessão da economia mundial, em especial nos países industrialmente avançados, com a exceção dos Estados Unidos, da Inglaterra e do Canadá. Estes registram algum crescimento. Entretanto, não se dá ao trabalho de explicar essas exceções. A partir do reconhecimento da estagnação generalizada faz recomendações e anuncia compromissos. Não é possível levá-los a sério, pois são intrinsecamente contraditórios.

Tanto o Comunicado quanto o Plano de Ação recomendam timidamente aumento de gastos públicos, sobretudo em infraestrutura, para estimular a demanda a curto prazo. Contudo, acrescentam imediatamente que isso deve ser feito promovendo a “sustentabilidade fiscal”. Ora, para quem conhece os códigos isso significa alvejar roupas com tinta nanquim: para ser eficaz contra a estagnação o gasto público deve ser deficitário, como ensinou Keynes. Isso implica necessariamente aumentar a dívida pública em relação ao PIB até a retomada, quando será possível começar a pagar a dívida sem grandes sacrifícios.

O fato é que o espectro neoliberal rondou o encontro de Brisbane, assim como a todas as reuniões do G20 desde a de Toronto, em 2010. Foi nessa reunião que os líderes mundiais, revertendo uma linha de compromissos assumidos desde a reunião em Washington no início da crise, em 2008, assumiram plenamente o credo neoliberal sob liderança alemã, abortando a recuperação mundial que estava em curso. Desde então e inclusive agora, comunicados e planos de ação produzidos no encontro refletem sistematicamente o mesmo mantra da chamada sustentabilidade fiscal.

O leitor não especializado imaginará que sem o que chamam de sustentabilidade fiscal haverá necessariamente irresponsabilidade fiscal. Nada disso. Uma política fiscal expansiva significa apenas que o Governo toma emprestado dinheiro que está ocioso nas mãos do setor privado e o converte em investimentos e gastos, espera-se que de forma responsável, ampliando a demanda agregada na economia. Só o Governo é que pode fazer isso já que o gasto público não depende de uma demanda financeira específica, como o privado, mas atende ao interesse geral na infraestrutura ou nos serviços públicos.

Ao estimular a demanda, o gasto público deficitário desencadeia um efeito multiplicador, pois a demanda gerada no setor público estimula o investimento privado, o investimento cria emprego e o aumento do emprego gera mais renda, num círculo virtuoso que provoca mais investimento, emprego e renda, e assim sucessivamente. Note que não falei em recuperação de “confiança” do empresariado como condição de retomada do investimento. Este outro mantra neoliberal faz a recuperação depender de um fator psicológico, “confiança”, independentemente das condições objetivas da economia.

Com efeito, num salto grandiloquente que disfarça a distância entre a retórica e a eficácia, o Comunicado afirma solenemente: “Nós estamos prontos para usar todas as alavancas para suportar a confiança e a recuperação”. Quando se examinam as “alavancas”, vê-se que não passam do discurso ortodoxo convencional e da proclamação de medidas vazias. Faz-se o anúncio de um crescimento mundial no próximo ano de 2% em resposta às tais medidas de restauração de “confiança”, sendo que a credibilidade dessa meta é atribuída ao FMI e OCDE, cujas previsões vem sendo sistematicamente furadas nos últimos anos.

O lado de mais curiosa sutileza política do documento é quando se refere à política monetária. Tratando-se de chefes de Estado e de Governo que, em sua maioria, valorizam ideologicamente a independência dos bancos centrais, não se atrevem a recomendar ao Banco Central Europeu uma linha política específica. Esses homens eleitos e que respondem a seus cidadãos apenas registram que se espera que o banco tomará medidas adequadas para evitar o risco da deflação na Europa. Ou seja, fica consagrado que a política monetária foge ao escopo da cidadania.

Em síntese, não é ainda dessa vez que o G20 estabelecerá um programa de efetiva recuperação da economia mundial. Cada líder político que participou da reunião deve ter saído de lá confiando em ter que continuar recorrendo a suas próprias políticas, sem muita esperança de ver algum esforço conjunto para a recuperação da economia no ocidente e no Japão. Não sei se nas reuniões fechadas chegaram a discutir o motivo da recuperação dos EUA, da Inglaterra e do Canadá. Simples. É que os EUA vem tendo déficits anuais gigantescos (média de mais de 1 trilhão de dólares por anno), desde 2008, e os tem financiado com uma expansão monetária infinita (3,4 trilhões de dólares); a expansão americana puxou o Canadá, e a Inglaterra fez paralelamente seu próprio programa de expansão apoiado em seu próprio banco central. Ou seja, são todos keynesianos.

Quem não pode ser keynesiano é a Europa, notadamente a Europa do euro. Sob a batuta do independente Banco Central Europeu, a eurozona não pode fazer déficits expansivos porque não tem como financiá-los a taxas de juros razoáveis. Como se sabe, a grande virtude do banco central independente é não ajudar os tesouros nacionais a financiar seus déficits. Em outras palavras, quando os tesouros precisam de financiar um déficit são lançados aos leões do mercado, que cobram os juros que querem nas barbas do banco central impassível. Isso, na certa, é uma receita de recessão permanente. E é o que teremos, a despeito dos prognósticos róseos e pouco fundamentados do G20, do FMI e da OCDE!

 

*Economista, doutor pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional da UEPB.

Redação

1 Comentário

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  1. embora concorde com a

    embora concorde com a excelente análise, espero

    que isso não aconteça, sinceramente.

    omais lamentávelé não ter havido uma crítica cidadã

    em relação à política economica europeia.

     

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