Cesar Locatelli
César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.
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“O desafio do Brasil não é fácil, mas temos por onde começar”, por César Locatelli

O olhar de Tânia Bacelar (UFPE) sobre saídas para o atoleiro em que nos encontramos

Reprodução Redes Sociais

“O desafio do Brasil não é fácil, mas temos por onde começar”

por César Locatelli

Sim, o Brasil tem jeito! Revela, logo no início do seminário, a professora Tânia Bacelar. A herança que recebemos do século XX foi “uma potência com pés de barro”. Já fomos a oitava economia industrial do mundo. Saímos da condição de país rural primário exportador para um país urbano industrial. “No século XXI, nós tentamos consertar aquilo que não fizemos no século XX: mudamos a forma de dinamizar a economia, mas continuamos a ser  um país muito desigual.” Nossa capacidade de também realizar mudanças no campo social foi evidenciada nesse século, mas é preciso muito mais, completa ela.

Não se pode, no entanto, menosprezar os obstáculos. Ela destaca “a dificuldade do Brasil de distribuir ativos estratégicos como terra e como conhecimento”. Essas travas têm sido fortalecidas, mais recentemente, pela hegemonia da mentalidade rentista que nos “garroteia” desde os anos 1990: engatamos numa dinâmica especulativa e não produtiva. Ela confessa esperança, por ter visto, recentemente, “uma luzinha no fim do túnel, quando o novo presidente da Fiesp, filho de José de Alencar, propôs uma nova política de industrialização para o Brasil”.

Um curto prazo “impregnado de emergências”

Quatro propostas para o curto prazo “impregnado de emergências” foram apresentadas por ela no seminário “Um projeto de desenvolvimento para o Brasil”.

A primeira relaciona-se ao “inaceitável” retorno do país ao mapa da fome da ONU: “Como é que um país que é uma potência exportadora de alimentos convive com a fome de milhões de brasileiros? Para mim esse é o primeiro problema emergencial que já fomos capazes de atenuar. Não eliminamos, mas tiramos o Brasil do mapa da fome.” Pelo lado da oferta, ela aponta incentivos e tecnologia para a agricultura familiar “produzir alimentos para acabar com a fome” e cita as cooperativas do MST na produção de arroz orgânico como exemplo.

Há, entretanto, a necessidade de também se equacionar o lado da demanda. A população carece de renda para consumir. O país já conta com uma estrutura que facilita atingir esse objetivo. “Eu sou de uma geração em que a assistência social era coisa de primeira dama. A constituição de 1988 criou a LOAS, à imagem do SUS, e o sistema de assistência social brasileiro é muito bem estruturado. Ele está sendo desmontado, mas tem um germe muito positivo”. Temos de onde partir.

“A segunda intervenção que eu faria é na área de saúde… Nós temos estruturas consolidadas muito boas. O SUS provou isso na pandemia.” Nesse âmbito, conjugam-se uma ação social emergencial e uma proposta econômica de maior prazo. O complexo industrial da saúde pode se tornar “o coração da retomada da economia brasileira”. Ela cita o diretor da Fiocruz, Carlos Gadelha, que tem chamado a atenção do país para a necessidade de se encarar a saúde como um complexo industrial (e terciário, ela complementa) com enorme potencial para romper a dependência que temos de importados, por exemplo fármacos, ao mesmo tempo em que damos um enorme impulso que a economia carece já há tempos.

Antes de entrar na terceira proposta, Tânia Bacelar ressalta que tanto a agricultura familiar quando a saúde são áreas que demandam investimento em ciência e tecnologia, além de empregarem muitas pessoas. “Além da fome, o nível de desemprego e subemprego também é inaceitável, Já tivemos padrões muito melhores, há muito pouco tempo”.

Para evitar uma nova exclusão social, sua terceira proposta refere-se a digitalização da sociedade: “Não podemos permitir que a exclusão digital avance. Sentimos na pandemia, quem não pôde ter aula porque não tinha um computador, porque não tinha internet… O Brasil tem sim capacidade de investir nessa área e combinar o investimento em infraestrutura econômica, em atividades ligadas à nova era digital com o acesso da grande maioria da população brasileira ao mundo digital.”

A quarta proposta está ligada à questão ambiental. Já contamos com uma matriz energética com grande participação de energia limpa. Aqui também, lembra a professora, há a necessidade de, via investimentos em ciência e inovação, atrelar as estratégias de curto prazo com aquelas de longo prazo.

Ela imagina que durante a execução dessas propostas será necessário repensar o Brasil, numa ampla gama de discussões semelhante a um processo constituinte. “Depois das eleições vamos ter a oportunidade de construir um debate sobre o futuro do Brasil. E um grande desafio aí é quebrar a mesmice da mídia corporativa… porque um grande desafio é a comunicação para fazer esse debate. Como é que discutimos com o povão quando temos uma mídia que só conta uma história, não permite a divergência, não promove o debate? Na área de economia, que é onde eu labuto, só se escuta os mesmos. Não tem discussão. A gente precisa quebrar isso.”

A herança de submissão dos tempos coloniais

“Como um país deixa de refinar petróleo para importar dos outros?” A indignação vivida pela professora Tânia Bacelar por descasos como este aos nossos interesses, levaram-na a concluir que há brasileiros que desistiram do Brasil. Como os que vivem dos rendimentos sobre o capital financeiro acumulado, os rentistas, que não dependem do país ir bem ou mal. Complementa ela:

“Paulo Guedes tem compromisso com o Brasil? Ele tem compromisso com as aplicações dele no exterior. Ele não consegue nem entender o Brasil. Esse tipo de elite nós não vamos trazer [para o debate]. Eles já desistiram do Brasil… Uma parte dos empresários, eu diria, são mais oportunistas do que empresários. Eu conheço empresários verdadeiros que tem compromisso com o Brasil. Aquele dono da Havan representa a elite empresarial brasileira?”

Mas, uma parte da elite, acredita ela, ainda conserva o interesse em crescer e contribuir para o desenvolvimento do país. O debate precisa contar com eles, com os jovens, com os estudantes e a com população pobre. “Nossa força tem que ser buscada, especialmente, naqueles que não podem desistir do Brasil”, acrescenta.

A dificuldade reside em como trazer para o debate aqueles que não sentem a presença do Estado. “Não consigo avaliar até que ponto o ataque ao Estado conquistou corações e mentes. Como o Estado não chega a grande parte do povão, eles não vão defender o que não conhecem. E sem um Estado forte e reorganizado, nós não sairemos do atoleiro em que estamos. Nosso desafio não é fácil, mas temos por onde começar.”

Serviço

 – Seminário: “Um projeto de desenvolvimento para o Brasil” (disponível no canal da Coordenadoria do Futuro no YouTube)

– Promovido pela Coordenadoria Futuro, ligada ao Centro de Estudos Avançados da Universidade Federal de Pernambuco, e a Academia Pernambucana de Ciência

– Palestrante: Tânia Bacelar – Doutora em Ciências Econômicas pela Universidade de Paris I/Panthéon-Sorbonne, a professora Bacelar foi Diretora de Planejamento Regional da SUDENE, Diretora de Economia da Fundaj, Secretária de Planejamento e Secretária da Fazenda do Estado de Pernambuco, Secretária de Políticas de Desenvolvimento Regional do Ministério da Integração Nacional, e Secretária de Planejamento da Prefeitura do Recife. Atualmente, a professora integra o corpo docente dos cursos de graduação e mestrado em Geografia, Ciência Política, e Desenvolvimento Urbano e Regional, da Universidade Federal de Pernambuco.

Cesar Locatelli – Economista e mestre em economia

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Cesar Locatelli

César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.

2 Comentários

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  1. Por falar nisso…
    Peço venia para compartilhar aqui o presente texto, de Mino Carta, na VEJA de 8/9/1971

    “Carta ao leitor
    Lembro-me das minhas primeiras aulas de jornalismo, recebidas do meu pai, jornalista, quando eu, menino de reações tão óbvias quanto as previstas pelos livros de psicologia, desejava ser igual a êle. Meu pai era bastante irônico, sobretudo em relação a si mesmo, e temia as frases importantes e empolgadas — ainda assim tinha os seus momentos, já não recordo se nos dias de sol. E então dizia que a obrigação do jornalista é informar e ao mesmo tempo oferecer ao leitor a possibilidade plena de entender a informação em todos os seus significados, não apenas por obra de um texto claro, mas também relacionando-a com outras que com ela tivessem a ver e extraindo-lhe as causas e antecipando-lhe os desenvolvimentos.
    No comêço de 1968, muitos anos depois dessas aulas, ao ser convidado para dirigir a redação de uma revista que haveria de chamar-se VEJA, eu percebi que dificilmente voltaria a ter uma oportunidade semelhante de pôr em prática aquêles ensinamentos de meu pai. Aceitei o convite, pronto a saborear a oportunidade. Mas o gôsto dela, no princípio, não foi agradável, para mim e para todo o pessoal de VEJA. No cardápio dos nossos propósitos o prato de resistência era a ambição de criar uma fórmula brasileira para o gênero de semanário imaginado há 48 anos por dois moços, nos seus passeios pelas alamêdas de uma universidade americana: Britton Hadden e Henry Lute, os inventores de “Time”.
    Logo, ao ser lançada exatamente há três anos, VEJA revelou-se uma tarefa muito mais imponente do que supunham mesmo aquêles, entre nós, que vinham de longos anos de profissão. E enquanto ensaiávamos penosamente um estilo original e adequado ao público que pretendíamos atingir, mais penosamente ainda procurávamos cobrir a distância que separa um jornalismo satisfeito com a simples descrição dos fatos de um jornalismo voltado para as razões e as conseqüências desses fatos. Verificamos que o caminho é perigoso antes que comprido — e percorrê-lo valeu por uma escalada. Mais do que tudo, pagamos pela nossa ousadia. Hoje sabemos o que VEJA é e o que dela queremos: descobrimos a nossa receita e se, de quando em quando, não podemos usar todos os temperos, mesmo assim mantemos um cardápio variado, capaz de agradar a diversos paladares.
    Esta edição de aniversário, que coincide com o 149.° da Independência, é um bom exemplo dos objetivos de VEJA. A exaltação patriótica provocada pela vitória do futebol brasileiro no México; a proliferação de lemas ufanistas; o apoio popular à regulamentação do decreto das 200 milhas de mar territorial; o orgulho das classes empresariais diante da conquista de novos mercados — são alguns dos fatos que convocaram a atenção de VEJA e a estimularam a investigar um fenômeno manifestado até pelas alegres marchinhas que cantam as belezas do Brasil. Seria uma simples onda de patriotismo? Seria o nascimento de um sentimento nacionalista?
    Durante três meses uma equipe de repórteres garimpou terrenos diferentes e, alguns, bastante originais. O resultado desse trabalho está na reportagem de capa (da página 35 à 82): é a descoberta de um nôvo tipo de nacionalismo, que se orgulha do desenvolvimento do país, diametralmente oposto ao de dez anos atrás, que se orgulhava de apontar desgraças.
    Mais uma vez, VEJA buscou identificar as leis que regulam o fluir dos acontecimentos. Com a humildade daqueles que não se dizem objetivos, pois a objetividade não é uma qualidade humana, é a característica dos robôs. Mas com a certeza de ter sido, sempre e acima de tudo, honesta. M.C.”

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