No “Valor” de 16/04/2007
Por Fábio Wanderley dos Reis
Em artigo recente em “The New Republic” a propósito de certa “santificação” de Barack Obama na imprensa dos Estados Unidos (“The Character Issue”), David A. Bell cita um ensaio de Stephen Greenblatt sobre Shakespeare do qual destaca uma observação: “Em Shakespeare, nenhum personagem dotado de clara visão moral mostra vontade de poder e, ao revés, nenhum personagem fortemente inclinado a exercer poder sobre os outros tem desígnios eticamente adequados”. Há reflexões clássicas sobre a política, como as de Harold Lasswell, que de certa forma vão mais longe, apontando suas raízes psicopatológicas. De todo modo, divergindo da interpretação do próprio Greenblatt, que liga a “visão trágica” de Shakespeare à ausência de instituições democráticas em seu tempo, Bell propõe que a ausência importante era antes a de instituições “republicanas”, entendidas como “instituições especificamente destinadas a controlar os políticos ambiciosos e inescrupulosos e a evitar o mal que possam fazer”. E assinala que os “pais fundadores” da república estadunidense, elaborando a Constituição e os “freios e contrapesos” como aparelhagem institucional orientada pela preocupação de neutralizar as deficiências éticas e os egoísmos variados, conheciam bem o seu Shakespeare.
Um primeiro ponto a notar diz respeito ao sentido atribuído à idéia de “republicanismo”. Enquanto vemos com frequência a expressão associada, entre nós, com a virtude cívica, ela surge aqui ligada à necessidade de lidar de forma realista e eficiente com a falta de virtude. Tenho aderido a essa perspectiva, contra certo moralismo difuso que espera como que a “conversão” moral (e ideológica) das pessoas para que pudéssemos ter a boa política.
Mas tenho também introduzido uma ressalva importante, em que o caráter e a exemplaridade, ao menos de lideranças políticas maiores, surgem como requisitos da própria eficiência da construção institucional – se não por inspirar no plano propriamente moral os demais, quando nada por seu efeito sobre as expectativas gerais. Bell incorpora essa ressalva, com a distinção entre a moralidade privada e o sentido politicamente relevante do caráter do homem político.
A distinção é ilustrada pelo contraste entre Roosevelt, de moralidade privada questionável mas “capaz de buscar e alcançar altos objetivos morais na vida da nação”, e George W. Bush, com quem teríamos o inverso. Deixo ao leitor a avaliação, desse ponto de vista, do equilíbrio entre realismo e exemplaridade eficiente na atuação dos candidatos recentes a grandes líderes que temos tido no país.
As ramificações desse confronto de perspectivas são muitas e complicadas. Entre vários outros temas específicos, é possível ilustrá-las com o debate em torno das emendas parlamentares. Em artigo merecidamente premiado no ano passado (“Processo orçamentário e comportamento legislativo”), Fernando Limongi e Argelina Figueiredo examinam os dados sobre os votos dos parlamentares contra ou a favor do governo à luz da suposição, que integra a imagem negativa do Congresso, de que as emendas ao orçamento, e a barganha clientelista em torno delas, seriam o fator decisivo do apoio ao governo. O que a análise mostra, porém, é que a filiação partidária explica melhor o voto do parlamentar do que a barganha sobre emendas. Em princípio, talvez tenhamos aí algo que autorize ver de maneira mais positiva o processo político-institucional e as relações entre os poderes; mas qual o alcance real dos problemas envolvidos?
Para começar, se a referência ao partido é supostamente melhor que a barganha imediatista em torno de interesses estreitos (o que, de passagem, é relevante para o voto secreto ou aberto no Congresso: o voto aberto não favorecerá a pressão dos currais eleitorais interessados nas emendas?), existe a possibilidade, da qual as denúncias sobre o “mensalão” são clara evidência, de um clientelismo (ou pior) conduzido em termos partidários. Mas, pensando bem, o próprio partido ideológico e presumidamente mais consistente opera em correspondência com interesses. Duas observações se seguem.
Em primeiro lugar, a de que, nessa óptica, o que o mensalão tem de inaceitável é a forma pecuniária da troca de interesses. Se isso não torna menos ruins as práticas envolvidas, certamente permite ver com olhos menos negativos a barganha de que tratam os autores e cuja importância factual seu artigo procura contestar ou reduzir. Em segundo lugar, cabe relacionar, sem dúvida, o caráter menos ou mais “ideológico” de um partido com o contraste entre condenável “particularismo” e elogiável “universalismo” nos princípios que orientam as ações; mas como decidir entre os dois casos? Os pequenos partidos que representem pouca gente, ainda que se trate de todos os membros de um dado grupo de interesses, ou de sacrossantas identidades coletivas, serão particularistas ou universalistas, por contraste com os partidos empenhados em agregar maiorias diversificadas? Além disso, do caráter ideológico podem brotar o sectarismo e o maquiavelismo que ameaçam levar justamente à arrogância e à adesão ao vale-tudo de práticas como o mensalão. Corremos o risco de que não sobre, do lado “do bem”, senão um idealizado partido identificado com o “interesse público”, entendido como o interesse da coletividade abrangente (nacional, ou talvez mundial) como tal.
Em síntese, não há como escapar, na política, de certa dialética entre solidariedade e interesses – e do caráter equívoco do equilíbrio entre virtude e vício no jogo que opõe a suposta crueza dos interesses à nobreza e ao altruísmo (relativos) da solidariedade.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais.
Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.
O Nicolau não tinha nada de
O Nicolau não tinha nada de maquiavelismo.Foi um observador
muito fino e lúcido do comportamento político a sua volta e
da sua época.Não dá para imaginar
Maquiavlel nos dias de hoje ,fazendo
coro com as multidões,como o
caro professor e brilhante cientista
político,a ponto de embarcar nesta
história do mensalão ! É muito
primário para meu gosto o desperdício do seu latim ,quando
já está mais do que desmascarada
toda aquela orquestraçao golpista
pré eleitoral.Hoje um Maquiavel está
fazendo uma falta dramática ,para
dar os nomes aos bois.É que muita
coisa nova apareceu depois dele,
como por exemplo os cientistas
políticos,tantos deles muito cultos
más tambem muito míopes…
Uma análise
Uma análise interessante.
Mas eu afirmo que as coisas mudam quando a água chega no pescoço.
Eu diria que hoje, a água está na altura da cintura.
Como sempre, o professor
Como sempre, o professor Fábio Wanderley mantém a coragem de analisar a política sem concessões ao politicamente correto.
É uma leitura distoante do que oferece usualmente o nosso pobre star system de – da esquerda e da direita.
Cada um com seus acentos e ênfases peculiares, vestindo surradas fantasias de clowns ou de pregadores no deserto, as vedetes do commentariat nativo capricham na retórica indignada e seletiva para exigir dos desafetos a correspondência a ideais-limite de retidão republicana e desprendimento pessoal que devem ser perseguidos como uma meta na chamada , mas que todos sabem estar fora do alcance do da política.
Parabéns, portanto, pelo destaque ao artigo do prof. Fábio Wanderley, que há algumas semanas publicou no Valor outro excelente texto sobre as perigosas ilusões da .
Gostei do detalhe: ” … os
Gostei do detalhe: ” … os “pais fundadores” da república estadunidense … ”
Alguém está abandonando a denominação “americanos” para designar pessoas de alguma forma ligadas ao país “Estados Unidos da América”!