Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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“O Homem Duplo” e a Internet das Coisas

Comentário ao post “A Internet das Coisas ganha equipe de estudos na USP”

 

Uma vez o escritor “maldito” Charles Bukowski” foi questionado sobre o porquê da bizarrice do seu universo ficcional. Para ele, somente o exagero na literatura poderia fazer frente à realidade que parece sempre superar a ficção. O filme “O Homem Duplo” (A Scanner Darkly, 2006, baseado no livro escrito por Philip K. Dick em 1977) parece seguir esse princípio ao criar uma narrativa delirante e paranoica, cujo tom é ainda reforçado pela técnica de animação em rotoscopia. Tornou-se profético, principalmente após as recentes notícias do projeto da CIA em fazer uma “Internet das Coisas” (e a formação de uma equipe de estudos a respeito na USP) a partir da tecnologia de “computação em nuvem”: a ameaça da possibilidade do monitoramento total a partir dos objetos que utilizamos no dia-a-dia.

“O Homem Duplo” narra uma sociedade devastada por uma droga sintética e monitorada integralmente por um “scanner holográfico” e apresenta a paranoia como a única possibilidade de encontrar a “centelha interior” em um mundo estranho onde a tecnologia supera qualquer ficção.

 

Desde 1982 com o filme “Blade Runner – O Caçador de Andróides” roteiristas e produtores de Hollywood passaram a ter um nítido interesse pela obra do escritor de sci fi assumidamente gnóstico Philip K. Dick. As diversas adaptações posteriores dos livros do autor (“O Vingador do Futuro”, “Minority Report”, “O Pagamento” etc.) sempre acabaram ressaltando os atributos heroicos dos protagonistas em tramas movimentadas para se conformar aos ditames de Hollywood. 

Em “O Homem Duplo”, adaptação do livro de 1977 “A Scanner Darkly”, encontramos o mesmo protagonista dividido, tema recorrente em sua obra – como era o próprio autor que tinha a vida marcada pela divisão esquizofrênica: a ambiguidade que as pessoas devem assumir em uma sociedade de vigilância total onde a paranoia diante de um inimigo invisível rege a vida de todos. 

Temos um filme focado não mais nas ações hollywoodianamente heroicas dos protagonistas, mas na paranoia de “losers” imersos em uma sociedade totalitária.

No caso do livro “A Scanner Darkly”, K. Dick foi profético ao mostrar uma sociedade monitorada integralmente por um “scanner holográfico” e ao apresentar a percepção paranoica como a única possibilidade de verdade em um mundo onde a tecnologia supera todos os pesadelos criados pela literatura ou pelo mundo onírico. 

O livro de Philip K. Dick 
de 1977

Principalmente após as recentes notícias sobre os planos muito concretos da CIA em criar a “Internet das Coisas”, técnica de monitoramento baseado na tecnologia de “computação em nuvem” já presente em serviços como o do Icloud da Apple: um mundo em que os eletrodomésticos que usamos, as roupas que vestimos, os talheres com que comemos e tudo o resto que podemos imaginar pode ser identificado e localizado através de uma ligação à rede das redes (clique aqui para ler “Plano da CIA para os eletrodomésticos”). 

 “Tudo o que consideramos como objeto de interesse poderá ser localizado, identificado, monitorado e controlado à distância através de tecnologias como a identificação por rádio-frequência, redes de sensores, minúsculos servidores incorporados e coletores de energia – todas elas ligadas à Internet da próxima geração, através de uma capacidade computacional abundante, de baixo custo e muito poderosa”, descreveu o diretor dos serviços secretos dos EUA David Patreus durante uma reunião da In-Q-Tel, uma empresa de capital de risco ligada aos serviços secretos norte-americanos. 

Em uma sociedade configurada dessa maneira, qual o último reduto de resistência para o indivíduo? A ambiguidade e a paranoia. É o que Philip K. Dick nos descreve nessa estória que se passa em um futuro não muito distante em uma Los Angeles devastada por uma droga sintética altamente viciante chamada apenas “D”. O agente Fred (Keanu Reeves) da delegacia de narcóticos disfarçado em um traje “high tech” (o “scramble suit”, que o faz mudar constantemente de aparência para que sua identidade não possa ser reconhecida pelos scanners holográficos) monitora um grupo de viciados e traficantes, entre eles um homem chamado Bob Arctor. 

Mas Fred e Bob são a mesma pessoa: um não sabe da existência do outro. Por necessidade de se infiltrar na rede do tráfico, Fred teve que voluntariamente se viciar pela droga fazendo-o viver em um constante estado esquizofrênico repleto de lapsos de memória. Através do scanner observa gravações de si mesmo no dia-a-dia de conversas de absoluta paranoia “non sense” com seus amigos. No livro de K. Dick, os viciados atribuem o poder devastador da droga a três opções de conspirações: seria uma droga criada pela União Soviética como parte de um plano comunista para destruir a resistência dos EUA; teria sido enviada por alienígenas para iluminar ou escravizar a humanidade; ou ainda seria um complô do governo ou das grandes corporações para dominar a população. 

A técnica de rotoscopia digital aplicada ao filme pelo diretor Richard Linklater (animação que “pinta” os atores e cenários reais adicionando novas cores e texturas à película, aplicada em seu filme anterior “Waking Life”, de 2001) reforça ainda mais o clima onírico, distorção psíquica e estados alterados de consciências dos personagens. 

O que os scanners podem ver? 

Certa vez o escritor norte-americano “underground” e maldito Charles Bukowsky foi questionado sobre o porquê do exagero e bizarrice dos temas e até títulos de seus contos: “em um mundo onde as notícias e acontecimentos são tão estranhos que acabam superando a ficção, somente o exagero retórico da ficção para fazer frente à realidade”. 

Pois se em 1977 K. Dick imaginava uma sociedade totalitária monitorada a partir de uma tecnologia de escaneamento do cotidiano sob o pretexto de combate às drogas, agora vemos notícias sobre o projeto da CIA sobre uma internet que integre os objetos cotidianos com sensores e micro-servidores que permitam um monitoramento cotidiano sob o pretexto do combate ao terrorismo. 

Como em toda sua obra, K. Dick explora o estado alterado de consciência da paranoia como uma arma para furar o véu da ilusão da realidade. A paranoia surge da cisão esquizofrênica, isto é, da luta interior entre a introjeção do “inimigo invisível” da vigilância total e a “centelha interior”, o verdadeiro Eu. 

A verdadeira arma do indivíduo é a consciência de que o scanner nada mais consegue ver além de nosso comportamento, atitudes, hábitos e escolhas. Por isso, nada consegue dizer sobre o nosso interior como afirma Fred no filme: 

“O que um scanner vê? Quero dizer, o que realmente vê? Um scanner de infravermelho passivo me vê – nos vê – clara ou obscuramente? Eu espero que ele veja claramente, porque eu mesmo não consigo me ver ultimamente. Eu vejo somente um borrão. Um borrão do lado de fora, um borrão por dentro. Eu espero, pelo bem de todos, que os scanners sejam melhores. Porque se um scanner vir apenas obscuramente, como eu mesmo vejo, então estamos amaldiçoados e permaneceremos amaldiçoados até a morte, conhecendo muito pouco e entendendo errado até esse pequeno fragmento”. 

O scanner nada mais vê do que a própria obscuridade interior da qual somos vítimas. Sem conseguirmos enxergar a nossa centelha divina que nos guie (a gnose) continuamos prisioneiros da ordem totalitária (no caso do filme a ordem mantida pela corporação Newpath através da droga “D”). Por isso o gnosticismo de Valentim (professor gnóstico em torno de 100 DC, aluno de São Paulo, fez uma interpretação gnóstica da mensagem de Cristo) dá uma atenção especial a esse especial estado alterado que traria a iluminação: o agressivo questionamento do status quo a partir da radical suspeita sobre a realidade reinante. Uma paranoia especial, muito diferente da narcísica (“o mundo conspira contra mim”), mas que negue a realidade “in totum”. 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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