O foro privilegiado dos torturadores, por Patrick Mariano

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Grupo de extermínio, 1993 (Autores Marcos Alves, João Antônio Barros, Paulo Oliveira, Stela Guedes / Divulgação)
 
Jornal GGN – Enquanto o foro privilegiado foi estampado na última semana como a solução para o problema da impunidade no Brasil, 5.012 pessoas foram mortas no país no último ano por policiais e a legislação federal ainda abriga o chamado foro privilegiado a militares das Forças Armadas.
 
A opinião é do advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP, Patrick Mariano, que publicou artigo na coluna Além da Lei da revista Cult. Acompanhe, a seguir:
 
Da Revista Cult
 
 
Por Patrick Mariano
 

Na vida real, enquanto o STF debatia se parlamentares teriam ou não direito à prerrogativa de foro e a grande mídia pautava o tema como solução para a “impunidade”, assassinos e torturadores, caso fossem militares, podem ter seus processos remetidos da justiça comum para uma justiça particular e interna.

É que desde 13 de outubro de 2017, o foro privilegiado no Brasil tem sido concedido a militares das Forças Armadas que praticam crimes dolosos contra a vida de civis, embora a Constituição de 1988 confira competência exclusiva ao Tribunal do Júri nestes casos.

Ronniely Medeiros de Sousa, pessoa em situação de rua nas entrequadras da asa sul de Brasília, foi torturado em 2 de janeiro de 2013 por três policiais militares para que não denunciasse o envolvimento de policiais no tráfico de drogas. Segundo a denúncia do Ministério Público, Ronniely foi algemado, colocado numa viatura e levado até um matagal. Lá sofreu inúmeras agressões, choques com pistolas a laser no pescoço e no braço e teve o pé perfurado por uma barra de ferro.

Passados cinco anos dos fatos, o processo por crime de tortura contra os policiais estava pronto para ser sentenciado pelo judiciário do Distrito Federal, não fosse um pedido do Ministério Público, com base na lei 13.491 de 2017, para que a Justiça Militar julgasse os policiais.

Agora, a justiça corporativa da PM pode mandar refazer toda a instrução do processo. Assim como neste caso, outras mil ações penais tiveram o mesmo destino migratório. Somente no Estado de Goiás, o Tribunal de Justiça prevê o deslocamento de três mil processos.

O texto enviado pelo Congresso para sanção por Michel Temer delimitava um tempo preciso de duração para a lei até 31 de dezembro de 2016, apenas para atender à “segurança” dos jogos olímpicos. No entanto, por pressão da bancada da bala e das Forças Armadas, Temer vetou este dispositivo da proposta tornando a lei atemporal. O veto, somado ao fato de evidente inconstitucionalidade da proposta, foi questionado no STF que até agora não teve nenhuma pressa para resolver a questão.

No ano de 2017, 5.012 pessoas foram mortas por policiais no Brasil – 790 a mais que em 2016 . A Anistia Internacional analisou o perfil dos homicídios decorrentes de intervenção policial no Rio de Janeiro, entre 2010 e 2013, e conclui que 99,5% das vítimas são homens, 79,1% são negros e pardos e 75% são jovens (entre 15 e 29 anos). A letalidade da polícia brasileira tem um destinatário preciso e identificável, portanto: jovem, pobre e negro.

O foro mais que privilegiado concedido por Temer já foi objeto de decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (caso Rosendo Radilla, no México), que se manifestou contra a ampliação da jurisdição penal militar no Estado Democrático de Direito por evidente risco ao juiz natural, a um julgamento justo e imparcial, ofensa ao princípio da igualdade perante a lei e relativização das garantias do devido processo legal e também as normas internacionais de direitos humanos.

Mas, nada disso parece sensibilizar o STF ou pautar o debate político no Brasil. A letalidade policial é parte da racionalidade do capital para aniquilar, reprimir e sufocar iniquidades sociais. Infelizmente, os crimes contra a vida praticados por agentes do Estado não são meros erros de procedimento ou pontos fora da curva, sua constância e o absurdo quantitativo dos seus números, revelam-se mais como uma deliberada política estatal, daí sua proteção pelo aparato normativo.

Assim, o foro privilegiado que interessa é apenas aquele dos parlamentares – veja que o Supremo manteve intacto o de magistrados e membros do ministério público – e não o de torturadores de pessoas em situação de rua. Aliás, a retirada do foro privilegiado foi comemorada por políticos que, agora, junto à maior influência no sistema de justiça nos seus estados, certamente escaparão de serem responsabilizados.

Se a letalidade policial é parte indissociável da racionalidade do capital em sociedades extremamente desiguais, sua sustentação política e ideológica é o desprezo e a dessacralização da vida de alguns. Ronniely Medeiros de Sousa agora deverá buscar justiça junto aos colegas de farda daqueles que o torturaram. No Brasil, a polícia tortura e mata. Depois, julga.

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

12 Comentários

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  1. Jovem, pobre e preto!!!

    Descrição da maioria dos condenados no Brasil. Então está tudo bem, somente ação preventiva para quem em um futuro próximo irá se tornar um criminoso.

     

    1. Mais quase lógica

      A maioria dos condenados no Brasil é jovem, pobre e preta?

      Sim. Mas isso significa que eles são condenados injustamente? É tudo fruto do racismo?

      O racismo sem dúvida existe. Mas concluir que ele é o responsável pela condenação costumaz de jovens pobres e pretos é mais um exemplo de quase lógica. Para ter certeza, é preciso investigar os crimes que eles cometem e de que são vítimas. Esses crimes têm motivação racial? Os matadores de jovens pobres e pretos são brancos racistas?

      Quem afirma que a maioria dos criminosos no Brasil é jovem, preta e pobre não está sendo preconceituoso. Está dizendo uma coisa que é verdade. É claro que isso não permite concluir que pretos são mais propensos ao crime (temos aí outro exemplo de quase lógica). Sabemos que por razões históricas, a maioria dos habitantes das regiões de alta criminalidade têm este perfil. Mas também são jovens, pretos e pobres a maioria das vítimas dos criminosos jovens, pretos e pobres.

        1. Não foi é o racismo…

          Não é o racismo que condena os negros a viverem uma sub-vida, é a condição de vida de boa parte dos negros em locais onde o acesso ao crime é franqueado para qualquer um, independente de sua raça. Culpar o racismo por tudo é uma abstração. Os negros não foram escravizados em razão de sua raça, mas por razões puramente econômicas: eram a fonte supridora de escravos mais próximas dos mercados consumidores. O racismo só surgiu depois, já no fim da escravidão.

  2. Se o debate seguir esse

    Se o debate seguir esse caminho,vai piorar.

    No contraponto: Por que vc não pesquisou  quantos policiais foram assassinados covardemente no mesmo período ?

       Vamos conversar pra acabar com isso.–dos dois lados.

    E não ficar escrevendo de um lado só.

    1. se….

      Esquerdopatia não tem cura mesmo. Advogado? Então personagem mencomunado com Entidade Ditatorial. Lacaio desta imposição ditatorial ou cúmplice dela. Nos dois casos submisso à entidade que se diz democrática, mas farsante ditadura de federações. A espinha dorsal das ditaduras nacionais, a partir da inaugural Getulista, que fundou tal organização. Surgida na aurora de uma Ditadura Militar, diz muito sobre tal entidade. A maioria dos Chefes destas Policias, Comandante-em-Chefe são Membros de alta representação dentro de OAB. Então por que o silêncio? Temer, esta escória que deveria já estar preso é OAB. Antonio Fleury, que comandou o Massacre do Carandiru é OAB. Por que culpar um Trabalhador Brasileiro, defendendo a Sociedade, tentando preservar a vida dos Cidadãos e a sua própria? Por que silenciar frente aos Mandantes? Covardia ou Hipocrisia? País dos 100.000 assassinatos por ano. Que são subnotificados, para parecerem nas estatisticas como sendo apenas uns 75.000. Governos e governanates aplaudem tais estatsiticas. A Policia com apenas 5% destas mortes é que será acusada por tamanha violência? O Progressismo, democracia e socialismo não transformariam a Sociedade Brasileira a partir de Anistia de 79? da Redemocratização de 82? Da Constituição Cidadã de 88? As cadeias e os cemitérios estão lotadas de jovens que nasceram sob o véu de tamanha democracia, liberdade e Constituição Cidadã. Sob governos ininterruptos de Covas, Montoro, Brizola, Collares, Dutra, Genro, Serra, FHC, Lula, Teotonio, Ciro, Erundina, Wagner, …A culpa é da Policia? É muita canalhice. 

      1. 10 x 1, a goleada policial

        Para cada 10 pessoas mortas por policiais em 2017, 1 policial foi morto. Os policiais estão dando de goleada, são muito bons de bala.  Antes da Constituição Cidadã o gerentão dos assassinatos na época do Geisel, o J. Fig., que detestava as esquerdas, promulgou a anistia dos assassinos. Os assassinos fardados ficaram livres, leves e soltos da silva. A impunidade dessa cambada foi muito proveitosa e segue fazendo escola, com o beneplácito da omissão do STF. Tem saudosista dessa época que pode até virar presidente da república.

        1. Mas se você coloca no mesmo nível…

          Se você coloca a polícia como se fosse uma facção entre outras, então faz sentido, ela realmente mata muito mais do que morre. Só que como o comentarista colocou acima, a polícia não é uma facção, a polícia é o Estado. Se você a coloca em pé de igualdade com as quadrilhas de criminosos, então acabou-se o Estado e estamos em uma guerra de todos contra todos.

          Não importa se a proporção é 10 ou 100 contra 1. O que importa é a legitimidade. Enquanto braço do Estado, a polícia tem o respaldo da sociedade para matar os bandidos, mas os bandidos não têm o respaldo da sociedade para matar os policiais. Temos a lamentar é que, ao ivés de 10 X 1, não tenha sido 10 X 0.

          1. Polícia não é pelotão de execução!

            A polícia não tem o respaldo da sociedade para matar “bandidos”. Até por que a polícia não sabe quem são os “bandidos”, quem decide isso é o Judiciário.

            A polícia tem o respaldo da sociedade para cumprir a lei. E a lei em lugar nenhum diz que “matar bandido” é função da polícia.

            Policial que “mata bandido” (exceção feita às excludentes normais, legítima defesa ou estrito cumprimento do dever legal, as quais aliás têm de ser provadas em juízo, e não dispensadas por um “auto de resistência”) é tão bandido quanto o bandido que ele matou.

    2. Lado quem tem é triângulo

      Se a polícia é um “lado”, estamos perdidos. A polícia é Estado, não é quadrilha. Se os seus próprios defensores a colocam no mesmo patamar que o criminoso comum, acabou-se o Estado, estamos em plena guerra de todos contra todos.

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