Pacote anticrime de Moro: remédio ou veneno?, pergunta IBCCRIM

O pacote proposto, segundo a entidade, é de uma arrogância sem igual. Os novos artigos foram apresentados sem diálogo prévio com a academia e sociedade civil, sem justificativa ou fundamentação.

Jornal GGN – O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, IBCCRIM, em editorial no seu site, critica o pacote anticrime de Sergio Moro, titular do Ministério da Justiça, e sua ineficácia travestida de fetiche normativista, cujos efeitos são mera venda de ilusão.  Aumentar penas, endurecer regimes e dar mais ‘efetividade’ ao processo penal não vai resolver o problema, é uma fórmula fracassada. E, pior, é que muita gente acredita que isso poderia funcionar.

O pacote proposto, segundo a entidade, é de uma arrogância sem igual. Os novos artigos foram apresentados sem diálogo prévio com a academia e sociedade civil, sem justificativa ou fundamentação. E, inacreditavelmente, Sergio Moro acredita que sua obra é um ‘marco zero’ de compreensão, ignorando um Projeto de Código de Processo Penal, que tramita há mais de 10 anos, desconsidera o Projeto de Código Penal e seus substitutivos, e ignora que exista um Projeto de Reforma da Lei de Execuções Penais aprovado desde 2017 pelo Senado, aguardando na Câmara.

Leia a nota a seguir.

da IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

Pacote anticrime: remédio ou veneno?

Infelizmente, estamos diante de mais um Projeto de Lei que pretende ‘reduzir a violência/criminalidade’ por meio do fetiche normativista (Binder), do efeito simbólico e sedante, da venda de uma ilusão: a de que aumentar penas, endurecer regimes e dar mais ‘efetividade’ ao processo penal (leia-se: utilitarismo e eficientismo punitivista) vai ‘resolver o problema da criminalidade’. Não é preciso fazer uma longa anamnese legislativa e política para ver que essa é uma fórmula fracassada. Incrivelmente, contudo, seguem a utilizá-la e – o que é pior – muita gente continua acreditando que isso realmente irá funcionar.

O Pacote do Ministério da Justiça – e assim deve ser pensado, ainda que convenientemente tenha sido desmembrado – inicia por uma arrogância sem igual: os diversos “novos” artigos foram apresentados ao público sem qualquer diálogo prévio com a academia e com a sociedade civil, sem justificativa ou mínima fundamentação. É o mais extraordinário exemplo de “solipsismo legislativo” (parafraseando Lenio Streck e toda a crítica fundada que faz ao “solipsismo judicial”). Inacreditavelmente, o Ministro Sérgio Moro parece pensar que sua obra é um “marco zero” de compreensão, na medida em que desconsidera completamente a existência de um Projeto de Código de Processo Penal que tramita há mais de 10 anos; desconsidera também o Projeto de Código Penal e seus substitutivos, e ainda ignora que existe um Projeto de Reforma da Lei de Execuções Penais aprovado desde 2017 pelo Senado, aguardando deliberação da Câmara dos Deputados.

É preciso advertir que se trata de “mais uma reforma pontual”, ainda que ambiciosa por sua extensão, em nosso tão combalido e retalhado ordenamento. No que toca ao Código de Processo Penal, todas essas reformas pontuais contribuíram para gerar uma “colcha de retalhos”, um Frankenstein jurídico, pois lhe falta coerência sistêmica, ainda que muitas reformas tenham sido elaboradas por comissões compostas por juristas bem intencionados. Não é esse o caso agora, já que não se conhece (se é que existe) a comissão que teria elaborado a proposta encampada em um ato individual pelo Ministro. De toda forma, obviamente, a boa intenção não bastaria. Reformas pontuais servem para manutenção da estrutura autoritária do Código de 1941, seja por conveniência, seja por não encontrarem força para rompê-la.

A arrogância da proposta é tamanha que, já de largada , propõe-se a ‘resolver’ a complexa pendenga criada pelo STF no HC 126.292 – a famigerada e inconstitucional execução antecipada da pena – por meio de uma lei ordinária. Inacreditável! Mas isso não é algo isolado. O pacote repristina temas com inconstitucionalidade já reconhecida pelo STF, como a vedação à concessão de liberdade provisória (art. 310), já declarada inconstitucional no HC 104.339/SP. Na mesma linha de inconstitucionalidade está a proposta de novamente estabelecer o regime inicial fechado obrigatório, considerado inconstitucional no Agravo em RE 1.052.700 e na Repercussão Geral 972.

Talvez por isso o Ministro, ao apresentar seu Projeto, fez questão de dizer que buscava efeitos ‘práticos’ e não ‘agradar’ professores de processo penal, consciente de que qualquer professor de processo penal minimamente comprometido com a Constituição desconstruiria sua proposta. Mas esse recado também é sintomático (e novamente vêm a arrogância e o solipsismo) de que, para muitos juízes brasileiros, a academia e a doutrina são absolutamente desconhecidas ou despiciendas.

O projeto quer criar marcos interruptivos para evitar a prescrição. Ignora que, antes da prescrição, existe o direito de ser julgado em um prazo razoável (art. 5º, LXXVIII da CF), que se orienta por prazos significativamente inferiores aos prescricionais. O Brasil, por conveniência dos magistrados, adotou a “teoria do não prazo”; aproveitando-se da ausência de previsão legal sobre prazos fatais para os juízes, e somando-se à leniência sobre o controle dos prazos para a acusação, o cumprimento de prazos, na prática, é exigido apenas da defesa.  Uma alteração nos já longos prazos prescricionais, nesse contexto de absoluto descontrole sobre a duração do processo, permitirá que os processos demorem ainda mais. Ora, essa é uma fórmula surrada que, além de ir de encontro ao eficientismo pretendido, só gera mais demora jurisdicional.

Diversos são os pontos polêmicos e inadmissíveis, que vão muito bem tratados pelos autores dos artigos deste Boletim, mas existe ao menos um que constitui o “ovo da serpente”, perigoso e sedutor: o plea bargaining.

A ampliação dos espaços de consenso é uma tendência inexorável e necessária, diante do entulhamento da justiça criminal em todas as suas dimensões. Contudo, é preciso compreender que nosso sistema jurídico (civil law) impõe limites que não permitem a importação de uma negociação tão ampla e ilimitada no que se refere à quantidade de pena que se assemelhe ao plea bargaining norte-americano (common law). Uma negociação dessa magnitude representa o fim do processo penal, na medida em que legitima em larguíssima escala a aplicação de pena privativa de liberdade sem processo (o que é incontestavelmente inconstitucional). Nos Estados Unidos, “acordos” assim são realizados em mais de 90% dos casos. Significa dizer que nove de cada dez casos criminais são resolvidos com a aplicação de uma pena sem processo, sem contraditório e sem produção de provas.

Assim, acerca desse tema, o ponto nevrálgico é: qual o espaço de negociação que nosso sistema admite e tolera, sem prejuízo grave para a qualidade da administração da Justiça? É preciso pensar esse limite a partir da compreensão da nossa realidade social marginal e do estado de coisas inconstitucional que vige no sistema prisional. O plea bargaining no processo penal brasileiro pode se constituir como um perverso intercâmbio. Não é pouco provável que o acusador público, disposto a constranger e obter o acordo a qualquer preço (até por comodismo), utilize a acusação formal como um instrumento de pressão, solicitando altas penas e pleiteando o reconhecimento de figuras mais graves do delito, ainda que sem fundamento. A tal ponto pode chegar a degeneração do sistema que, de forma clara e inequívoca, o saber e a razão são substituídos pelo poder atribuído ao Ministério Público. O processo, ao final, é transformado em um luxo reservado a quem estiver disposto a enfrentar seus custos e riscos de sofrer a aplicação de penas duríssimas. Do contrário, o sistema negocial perde força, pois seu poder está exatamente na gestão de riscos. O problema é que o processo penal constitucional deve ser uma garantia para o cidadão e não uma aventura perigosa.

Schünemann critica o suposto princípio de consenso, frequentemente invocado para legitimar o modelo negocial, taxando-o de “eufemismo” por trás do qual se ocultaria uma sujeição do acusado à medida de pena pretendida pelo acusador, colocando-se a pessoa acusada em posição de submissão por meio da pressão exercida pela Justiça Criminal. É uma ficção desde o ponto de vista prático, conclui o autor. Não existe consenso ou voluntariedade, porque não existe paridade de armas. Existe uma submissão do acusado a partir de uma visão de redução de danos (para evitar o “risco” do processo). Existe semelhança com um “contrato de adesão”, onde não há liberdade plena e real igualdade para negociar, mas apenas de aceitar o que lhe é imposto ou arcar com as consequências de desejar exercer o direito ao devido processo legal.

Mais um questionamento: já foi elaborado um sério e profundo “estudo de impacto carcerário” da expansão do espaço negocial no Brasil? A expansão da possibilidade de concretização antecipada do poder de punir, por meio do reconhecimento falsamente consentido da culpabilidade, não representará um aumento significativo da nossa já gigantesca população carcerária?

Ao que parece, o Ministério da Justiça quer que legislemos primeiro, para vermos o que vai ocorrer depois. Nunca é demais lembrarmos que o plea bargaining levou os Estados Unidos a terem a maior população carcerária do mundo. Aliás, se a sujeição aos Estados Unidos parece ser uma tônica do atual governo, nos parece que seria o caso de copiarmos experiências positivas daquele país, e não as negativas. No que diz respeito às questões de Justiça e Segurança, não há por que apontarem-se os Estados Unidos como exemplo, já que aquele país, a par da incomensurável população prisional e expansão dos mecanismos penais de controle, mantém taxas proporcionais de homicídios que superam 500% aquelas de outros países com nível socioeconômico similar, como Alemanha, França, Itália, Coreia do Sul e Reino Unido.

Tal coerção apelidada de “acordo”, no Brasil, seria ainda muito mais grave que nos Estados Unidos, na medida em que o acusado ficará preso em um sistema prisional ainda mais violador de direitos que o norte-americano; e onde o risco de morte é real e concreto. Um dia de prisão cautelar no Brasil pode representar uma pena de morte, sem qualquer exagero.

Enfim, trata-se de um retrocesso que pode representar o fim do processo penal brasileiro e o agravamento não dimensionado do superencarceramento, especialmente dos clientes preferenciais do seletivo sistema penal. Em suma, cuida-se mais uma tentativa de dar respostas fáceis a problemas complexos por meio do punitivismo populista: penas mais graves, regimes mais duros e processo utilitarista. Como cantava o poeta Cazuza, vemos o “futuro repetir o passado”, sendo que o pacote do Ministro Moro, em resumo, não passa de um “museu de grandes novidades”.

Redação

2 Comentários

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  1. 1-Chamar de arrogância e solipcismo as propostas do juiz-ministro, é eufemismo. É ignorância mesmo.
    2-Criar marcos interruptivos para evitar a prescrição, como bem demonstrado, só se houver alteração constitucional, já que todo o cidadão têm o direito ao razoável andamento de seu processo.
    O juiz-ministro, no desempenho de seu mister, demonstrou que tanto o andamento do processo, quanto o ato de julgar são de cunho puramente pessoal, podendo o juiz apressar ou dilatar prazos a seu bel prazer, SQN!
    3-O espaço de negociação que nosso sistema admite e tolera, sem prejuízo grave para a qualidade da administração da Justiça, existe, e vem sendo aplicado diariamente na através da Lei 9099/95, que criou os Juizados Especiais Civeis e Criminais, onde as partes litigantes se equiparam e têm oportunidade de se compor.

    Lei 9099/95

    Art. 1º Os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, órgãos da Justiça Ordinária, serão criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para conciliação, processo, julgamento e execução, nas causas de sua competência. Ver tópico (70075 documentos)

    Art. 2º O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação. Ver tópico (456280 documentos)
    https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/103497/lei-dos-juizados-especiais-lei-9099-95

    4-O que não se pode admitir é o juiz-ministro pretender que na relação Estado persecutório e cidadão, esteja o cidadão no mesmo patamar do estado.
    Essa relação, sobejamente assimétrica, coloca o cidadão como hipossuficiente absoluto diante do estado, podendo por ele ser esmagado impiedosamente.
    Talvez por não ter contado com uma formação abrangente o juiz-ministro não saiba que negociação entre as partes implica em equivalência.
    O estado não tem como rebaixar-se para negociar com o cidadão, tampouco o cidadão tem a grandeza do estado, então ele (o estado) só poderia funcionar como mediador.
    Esperar que se componham nessa assimetria é colocar o lobo negociando com o cordeiro, onde qualquer negociação resultante seria viciada, o que tanto no âmbito civil quanto no âmbito penal leva à nulidade do ato.
    Moro não precisa do plea bargain, o que ele precisa é de uma ” flea bargain”.
    Que se lhes troquem as pulgas picantes do poder por um bom inseticida.

    5- A menos que ele tenha sociedade oculta com algum administrador particular de presídio , não há motivo para se desejar o aumento da população carcerária.

  2. E lá vamos nos de novo.
    Quem defende ser inconstitucional a prisão do réu antes do transito em julgado da sentença o faz sem nenhuma base jurídica forte.

    Em primeiro lugar tem de interpretar a palavra “culpado” pela palavra “preso” no inciso 57 do art. 5º para dizer que a Constituição Federal veda a prisão antes do transito em julgado.

    Oras, prisão e culpa são dois conceitos totalmente diversos, tanto é que o inciso 57 cuida da culpa e o inciso 61 esse trata especificamente da prisão, ambos do art. 5º.

    Não é por outro motivo que o Sr. Reinaldo Azevedo, quando derrama toda a sua esbornia jurídica NUNCA cita referido inciso 61 porque esse inciso derruba o argumento de inconstitucionalidade.

    O inciso 61 trata especificamente de autorizar a prisão mesmo antes da condenação e do transito em julgado.

    LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;

    Assim existe a prisão antes do transito em julgado, autorizado pelo inciso LXI do art. 5º.

    Interpretar a palavra “culpado” do inciso 57 como “preso” deixa dois dispositivos constitucionais conflitantes pois se poderia opor o inciso 57 a qualquer prisão antes do transito em julgado destruindo o sistema penal brasileiro.

    A boa técnica de interpretação de normas constitucionais é a de se harmonizar a interpretação da norma constitucional de forma a não deixar que uma norma entre em conflito com outra.

    Além disso, ao se interpretar a Constituição há de se atentar para não se deixar ampliar a interpretação – no caso se interpretar a culpa como prisão – se na própria constituição existe uma norma de conteúdo específico à prisão.

    A mudança na interpretação também cria uma sobrecarga terrível aos tribunais superiores que virariam uma corte revisora de todas as condenaçoes penais do Brasil, desvirtuando as suas funções principalmente do STF.

    Voltar-se atras apenas por causa da condenação do ex presidente Lula, isso é casuísmo inconsequente.

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