Medo e xenofobia em uma Europa envelhecida e dividida, por Flávio Aguiar

Jornal GGN – Em artigo para a Rede Brasil Atual, Flávio Aguiar fala sobre a escalada dos movimentos xenófobos e de extrema-direita, em uma Europa envelhecida e dividida. Ele aborda os movimentos das elites de alguns países europeus para abandonar a União Europeia.

Embora reconheça que “a UE parece hoje muito mais um condomínio gerido por e para um sistema financeiro que dobrou as soberanias nacionais em função de seus próprios projetos e da gerência de suas dificuldades”, o autor entende que, em se concretizando a debandada do bloco, quem vai pagar as contas são os trabalhadores.

“O campo de referência do ‘sair’ é uma classe média ‘high brow’ (de elite, alta classe média), ciosa de suas prerrogativas que sente ameaçadas pelas levas de estrangeiros que chegam ‘aos magotes’; ou uma classe média baixa, que se sente ameaçada em seus empregos e futuro pelo mesmo motivo. Também há neste campo trabalhadores de média e baixa renda que se sentem ameaçados pela mesma razão. Ou seja, por mais que os líderes do ‘sair’ esperneiem em contrário, o que une e consolida a proposta é o medo e a xenofobia.

Da Rede Brasil Atual

A União Europeia desce aos infernos

Por Flávio Aguiar

A UE parece hoje muito mais um condomínio gerido por e para um sistema financeiro que dobrou as soberanias nacionais em função de seus próprios projetos e da gerência de suas dificuldades

Hoje (quinta-feira 23) é dia de plebiscito no Reino Unido sobre a permanência ou não na União Europeia (UE). O país está rachado (mais que dividido), os nervos em todo o continente estão à flor da pele, os ânimos estão acirrados. As últimas pesquisas dão resultados apertados, para uma ou outra proposta, sair ou ficar. Esta semana registrou um avanço do “ficar”, graças ao impacto do trágico assassinato da deputada trabalhista Jo Cox por um extremista de direita.

As campanhas mostram, para além do empenho de ambos os lados, o mal-estar que tomou conta do continente nos anos recentes. A campanha do “sair” foi sendo progressivamente ocupada por referências de extrema-direita: xenofobia, medo ante a chegada de mais imigrantes do antigo Leste europeu ou de refugiados do Oriente Médio e áreas próximas, desejo de afirmação de uma soberania ampliada frente às instituições da UE (Parlamento, Comissão, Conselho e Banco Central Europeu).

Segundo analistas britânicos, há até um elemento de nostalgia imperial britânica, pois alguns dos líderes do “sair” têm seguidamente falado na antiga proeminência mundial da velha Albion (nome clássico da Inglaterra na Antiguidade). Talvez isto explique um desenho curioso que as pesquisas vêm apontando: na Inglaterra (England, stricto sensu) propriamente dita, o “sair” tem mais sucesso do que nos “territórios associados”, ou seja, País de Gales e Escócia.

O campo de referência do “sair” é uma classe média “high brow” (de elite, alta classe média), ciosa de suas prerrogativas que sente ameaçadas pelas levas de estrangeiros que chegam “aos magotes”; ou uma classe média baixa, que se sente ameaçada em seus empregos e futuro pelo mesmo motivo. Também há neste campo trabalhadores de média e baixa renda que se sentem ameaçados pela mesma razão. Ou seja, por mais que os líderes do “sair” esperneiem em contrário, o que une e consolida a proposta é o medo e a xenofobia.

Do lado do “ficar” a situação também é complicada. Os argumentos apresentados se baseiam igualmente no medo, não em algo positivo. O establishment financeiro do país, com a chamada City Londrina à frente, se posicionou contra o “sair”. Motivo: saindo da UE, o Reino Unido teria de refazer acordos, não só com os países membros, mas também com os Estados Unidos, a Ásia (China, Japão e Índia, sobretudo), além de reposicionamento na OCDE, na OMC… Enfim, perda de tempo, o que se traduz por perda de lucros.

Os conservadores estão divididos. O primeiro-ministro, David Cameron, está a favor de “ficar”, mas há muita dissidência entre seus correligionários, que se sentem pressionados pelo avanço do separatista Ukip (Partido da Independência do Reino Unido).

Entre os trabalhistas as dissidências são menores, embora também as haja, porque o setor mais à esquerda, hoje no comando, liderado por Jeremy Corbin, acabou chamando o voto para “ficar”. Para o “establishment de esquerda” a conclusão é óbvia: se houver reajustes devido à vitória do “sair”, quem vai pagar a conta serão os trabalhadores; a City Londrina vai se acomodar, e não perderá o apoio dos outros grandes centros financeiros.

Este desenho mostra que a questão está sendo abordada por argumentos que são sempre “do contra”. Os argumentos dos “saintes” são suicidas: a Europa, um continente em envelhecimento rápido, não sobrevive sem as divas de novos migrantes. Mas os dos “ficantes” não têm nada de positivo a oferecer, senão a ideia de que se não “ficarmos”, tudo será muito pior.

Uma conta muito negativa para uma proposta (a UE) que se apresentava, quando de sua adoção, em novembro de 1993, como uma conquista da humanidade em um continente historicamente devastado por guerras fratricidas e contínuas.

A UE parece hoje muito mais um condomínio gerido por e para um sistema financeiro que dobrou as soberanias nacionais em função de seus próprios projetos e da gerência de suas dificuldades. Nada de muito entusiasmante.

O que fomenta os movimentos xenófobos e de extrema-direita, que, independentemente do resultado de hoje, vão continuar sua escalada.

Redação

1 Comentário

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  1. A esquerda light e suas ilusões

    Num ponto a extrema direita está certa: a união européia, hoje, é um projeto tecnocrata-neoliberal para ferrar o povo da Europa e nada aponta para um futuro melhor, muito pelo contrário.

    Por que, então, as esquerdas alimentam este conto de fadas da união dos povos e pedem aos europeus para continuarem nessa canoa furada?

    Na identificação dos culpados (árabes, banca judia, europeus do leste, africanos), é claro que a extrema direita está, como sempre, errada. É o velho bode expiatório para onde as massas desviam sua fúria, se recusado ver as causas verdadeiras do desastre europeu.

    Mas a esquerda light (sociaistas e sociais-democratas) também está errada em identificar as causas da derrocada do projeto europeu. Ela culpa a banca e seus políticos que, em algum momento da década de 90, resolverm seguir o neoliberalismo de Reagan e Thatcher por pura ganância, abandonando a economia fordista/keynesiana e adotando o a economia das bolhas financeiras.

    Então, a causa que a esquerda encontra para a decadência do capitalismo europeu é moral: a ganância das elites, particularmente os banqueiros

    (Obs.: daí para a condenação da banca judia é um pulo – a esquerda, assim, flerta com o facismo – “eles são o mal, a degradação” – quem se lembra aonde vai dar esta história?)

    As causas (da derrocada da Europa, das crise política dos EUA, do colapso econômico global) são as contradições do próprio capitalismo, é a dinâmica cega do capital. Nem Europa unida, nem desunida vai salvar os povos europeus ou do mundo…

    Mas talvez o desligamento do bloco europeu e de vários mecanismos da globalização (como o fluxo desregulado do capital), acompanhado de políticas defensivas de proteção social, possa minorar o sofrimento dos povos.

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