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Também cabe a nós compreender como se materializa nas cidades a desigualdades de classe, raça e gênero. Isto para sabermos ouvir as vozes dos personagens que entram em cena e protagonizam um novo ciclo de lutas
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Educação popular na periferia brasileira, por Marcelo Karloni

O direito à cidade como direito à educação é a mais urgente tarefa para a esquerda após as eleições

Acervo Oxfam

do BrCidades

Educação popular na periferia brasileira

por Marcelo Karloni

A oferta de educação de qualidade em espaços vulneráveis quanto às condições de habitação, acesso a serviços públicos, mobilidade urbana e escassez de equipamentos públicos deve ser prioridade máxima nas estratégias das bases sociais de enfrentamentos à sustentação do autoritarismo no Brasil.

Espaços esquecidos pelo Estado estão ainda expostos ao assédio de estruturas clientelistas urbanas nas quais se incluem as milícias, o tráfico e muitos grupos religiosos radicais. São essas rugosidades urbanas que devem ser privilegiadas como parte de um projeto amplo de educação verdadeiramente popular. Eis o que será demonstrado a seguir.

EDUCAÇÃO POPULAR  COMO PROJETO POLÍTICO

A defesa da educação não é propriedade exclusiva da esquerda. Assim como esta, a direita também reconhece o potencial da educação como ferramenta de transformação social. Entretanto, é necessário indagar sobre o tipo de educação que seria capaz de construir um modelo civilizatório original e popular. Assim, tal educação seria condição sem a qual mesmo setores à esquerda poderiam cair em um discurso conservador com roupagem progressista, por isso, a necessidade em usar essa qualificadora, a popular. O currículo é um instrumento político.

Há um relato que diz-se ter sido encontrado após fim da Segunda Guerra Mundial que ilustra o que se argumenta aqui: “sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem deveria ver. Câmaras de gás construídas por engenheiros formados. Crianças envenenadas por médicos diplomados.(…) Assim, tenho minhas suspeitas sobre a Educação”.

O que fica claro após essa leitura é que o diploma não corresponde, necessariamente, ao sucesso de um projeto de educação, podendo significar até mesmo o fracasso de um modelo de civilidade fundado na noção de universalismo tão cara aos direitos humanos.

EDUCAÇÃO E EUGENIA

 “Que tipo de sociedade queremos construir? “. A educação é um projeto político e responder a essa pergunta é fundamental para indicação de rumos.

O Estado brasileiro compreende essa variável da questão, tanto o é que, na virada do século XIX para o XX, empreendeu uma política de educação que visava dar sustentação a uma política maior, a higienização do espaço urbano. A política de embranquecimento que orientou a queima de arquivos da escravidão no Brasil, a criminalização da prática da capoeira nas periferias e conduziu também a formação de educadores e profissionais para a higienização do espaço.

É de Octávio Domingues em “A hereditariedade em face da educaçãoo trecho que melhor define talvez o papel da educação para essa política no Brasil.  “ Esse é um dos urgentes e preciosos auxílios que a eugenia está solicitando da educação: explicar, convencer o homem, o cidadão, que as más heranças só se acabarão se o indivíduo geneticamente mau não procriar”.

CONTENÇÃO E ISOLAMENTO POPULAR

Absolutamente nenhuma política de educação higienista ocorre sem o desenho correspondente de espaços públicos de contenção e isolamento. Por isso mesmo, tais espaços que se formam à margem dos serviços de infraestrutura e mobilidade são estratégicos para a construção de uma política de educação popular e emancipatória.

A questão social e urbana, notadamente, liga-se à construção também de um projeto de educação popular, isso porque a constituição desse espaço periférico e precário tem na “vilanização” dos seus habitantes um dos alvos principais em uma sociedade de exceção. A pobreza passando a ser punida e o população com origens que remetem à senzala brasileira sendo encarcerada e privada da educação, eis o status conferido a um processo social que se transmuta na sociedade da exceção em processo natural.

O processo que se deu nos Estados Unidos na década de 1980 e investigado por Loic Wacquant ao discutir a política de encarceramento lá posta em andamento é ilustrativo do que ocorre no Brasil da atualidade. Ao lado de uma política de isolamento espacial via segregação de espaços periféricos nas médias e grandes cidade do Brasil, caminha uma dupla operação pelo Estado que necessita ser autoritário para que essa tenha sucesso: primeiro, o apelo ao endurecimento das leis penais e construção de equipamentos de segurança; segundo, a redução dos gastos com educação e programas sociais com a correspondente construção de presídios privados com exigência de ocupação mínima das celas, inclusive negociada na Bolsa de Valores de Nova York. Punir e vigiar a periferia é algo lucrativo.

Na dimensão da educação, haverá um impacto imediato para além da redução de investimentos. O matriculado no sistema de educação desse tipo de sociedade destinada a punir e vigiar o pobre terá no seu currículo tudo, menos uma educação que o humanize. A finalidade é a constituição de consumidores, não de cidadãos. Consumidores da cidade que, caso vejam seus meios de realização do consumo limitados, serão punidos e destinados a instituições de “ressocialização”, mas nunca de educação.

Eis a razão pela qual nas periferias brasileiras haja o apelo eloquente pela ação policial ostensiva, mas não pela construção de escolas. A periferia espacial nas cidades do tipo de sociedade que Wacquant investiga se torna, assim, quase um depósito de novos ocupantes das celas negociadas em bolsas de valores, mas nunca como alvo de ações de educação popular.

A obra de Friederich Engels de 1845, “A Situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, contém uma transcrição de uma carta enviada ao jornal de Manchester que revela parte desse caráter higienizador que falamos acima.

Diz a carta : “Senhor diretor: já há algum tempo, nas ruas principais da nossa cidade se encontra uma multidão de mendigos que, ou vestindo farrapos e aparentando aspecto doentio ou expondo chagas e deformações repugnantes, procuram despertar a compaixão dos transeuntes de um modo desagradável e até indecoroso “.

Detém a classe proprietária em qualquer espacialidade, seja originária de países do capitalismo avançado como a Inglaterra do século XIX – seja do capitalismo periférico como o Brasil atual – um incomodo persistente e a reivindicação por cidades “limpas”.

AGENDA EDUCAÇÃO POPULAR 2023.

Haveria frente a essa lógica privatista atravessadora de séculos de exploração duas indicações para um projeto de educação a partir de 2023:

1. A educação tem que ser popular.

Somente um projeto de educação popular, centrado na formação de núcleos de formação básica e política, especialmente nos espaços de periferia no Brasil, poderá oferecer alternativas a eugenia ainda em vigor, disfarçada mas em andamento, no país;

2. A formação do urbanista popular é um item da formação política e não uma agenda isolada

O postulado que funda essa questão é: o direito à cidade é o direito à politica e à educação popular. Sendo assim, é imprescindível que as universidades rediscutam seus currículos de graduação na formação de arquitetos, geógrafos, sociólogos e áreas afeitas ao estudo e intervenções no espaço urbano. A extensão nesse sentido ocupa lugar central nessa reformulação, uma tarefa para a graduação e a pós-graduação no país.

Caso não se opte por um projeto de educação popular sob essas bases aqui expostas sob a perspectiva freiriana, poderemos estar apenas adiando no médio e longo prazos a consolidação de uma sociedade fascista e genocida neste país, ainda que com a eleição da coligação JUNTOS PELO BRASIL.

Marcelo Karloni é Doutor em Geografia pelo programa de pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Pernambuco na área de Dinâmicas Territoriais e Regionalizações, Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e membro da Rede BrCidades.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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