Nordeste, filosofia, sociologia: o pensamento contra a deseducação, por Marcos Silva

Sobre a indicação de um economista para o Ministério da Educação (Abraham Weintraub), a visão do governo Bolsonaro do Nordeste e as políticas do seu governo pensadas para a região

Por Marcos Silva

O economista Abraham foi nomeado para o Ministério da Educação por Carlos (perdão pelo cacófato!) e em fala anterior ao ato, agiu como se mudasse antecipadamente o nome do órgão para Ministério da Deseducação: anunciou e garantiu que o Nordeste brasileiro não deveria se dedicar a Filosofia nem a Sociologia, e sim a convênios com Israel no campo da Agronomia.

É um trajeto de velocidade espantosa, entre Hermes/Mercúrio (que também cuidava de negócios, embora fosse mais sábio, promovesse relações entre povos, não apenas com um povo) e o personagem de quadrinhos e cinema Flash.

Em termos geográficos, onde é mesmo que se pensa?
Em qualquer lugar! Europa, França e Bahia, na antiga metáfora popular.
E quem escolhe como pensar?
Os Pensadores!
Quem são esses Pensadores?
Todas as mulheres e todos os homens do mundo!

Ministério da Educação (ou da Deseducação, como Abraham parece preferir) pode contribuir para o Pensamento com verbas e profissionais da primeira área (a Deseducação fica a cargo de qualquer burocrata), jamais com normas definidoras de áreas e tarefas. Ministério da Deseducação não pensa no lugar dos outros.

Alguns homens e mulheres, naquela parte do Brasil que costumamos designar como Nordeste, pensaram filosófica e sociologicamente sem autorização de Abraham, bem antes de seu nascimento. Houve mesmo quem se antecipasse ao conceito de Nordeste, às universidades propriamente ditas (mais que soma de unidades de ensino superior dedicadas a diferentes especialidades) e, já no século XIX e no começo do século XX – quando as regiões geográficas começavam a ser discutidas sistematicamente e os cursos de ensino superior no Brasil antecipavam universidades ao abordarem Filosofia e Sociologia nos quadros de Direito, Medicina e Engenharia -, ousasse filosofar ou sociologizar. Sylvio Romero (1851/1914), advogado, foi um deles, escreveu sobre uma cultura brasileira que mesclava elementos portugueses, africanos e indígenas. Manoel Bomfim (1868/1932), médico, combateu o racismo ao debater a História do Brasil nos quadros da América Latina, e comentou criticamente a Educação na sociedade republicana. Depois, já no tempo de região e universidade mais consolidadas, vieram Gilberto Freyre (1900/1987), graduado em Artes Liberais nos EEUU, que falou sobre africanos como formadores do Brasil; Nise da Silveira (1905/1999), médica, que articulou o trabalho terapêutico em Psiquiatria com Arte e Trabalho, tratando loucos com dignidade; Josué de Castro (1908/1973), médico, que mapeou fome e sociedade, saber de combte; Celso Furtado (1920/2004), advogado, que repensou Economia e Região; e Paulo Freyre (1921/1997), advogado, que ressignificou a Educação no universo popular São Pensadores tão diferentes cada um do outro, tão insistentes em percorrerem Sociologias e Filosofias, referências para universidades no Brasil e no mundo! E até hoje, inúmeros outros Pensadores nordestinos transitam por Filosofia, Sociologia e mais campos de saber em seu trabalho cotidiano, agora com cursos específicos, sem estribos governamentais sobre como pensar. Filosofia e Sociologia existem no Nordeste porque os Nordestinos (como os demais homens e mulheres do mundo) pensam!

Não estamos diante de ecletismo ou indefinição intelectual. Quando advogados, médicos e outros profissionais apelam para Filosofia e Sociologia, apenas demonstram que possuem rigorosa formação universitária.

O que é mesmo uma Universidade?

Mais que aglomerado de cursos e tarefas, universidades são conjuntos de núcleos de estudos sobre múltiplos saberes, articulados uns aos outros.

Cada campo de conhecimento está na universidade porque precisa dos outros e é invocado pelos demais.

E o que é mesmo Nordeste?

Existe uma região que é definida administrativamente – órgãos e verbas governamentais, respectivos poderes.

Outra que é invocada ideologicamente, justificativa para práticas de poder.
E também outra nasce inventada pelo preconceito, em nome de dominação e atos de excluir.

Mas não é possível esquecer a região recuperada por dominados e preconceituados, contra essa prática, como afirmação de poderes alternativos e críticos, presente tanto no cotidiano dos designados como paraíbas ou baianos quanto na produção artística reflexiva.

O Nordeste de administração e ideologia pode dispensar Filosofia e Sociologia porque essa é sua lógica instrumental e produtora da ignorância. Algo semelhante ocorre no mundo do preconceito, alheio ao Pensamento. Mas o Nordeste crítico, dos preconceituados, contra os dominantes, reivindica para si aqueles e outros universos de Pensamento porque… pensa.

Nordeste não é apenas um lugar físico do mapa, é um universo de homens e mulheres portadores de culturas que são mais que região e estão além daquele recorte. Nordestinos estão em New York e Paris, assim como New York e Paris estão nos Nordestes – textos, imagens, danças, cantos, lutas… E regiões não apagam Gêneros, Classes Sociais, Etnias e tantas outros faces de experiências humanas.

O desejo de Abraham não sobreviverá ao fazer crítico dos Nordestes. Filosofia e Sociologia existem ali porque os Nordestinos pensam, contra a Deseducação governamental e preconceituosa.

Convênios universitários podem e devem ser feitos com todos os países, inclusive Israel e Autoridade Palestina. Convênio não é parasitismo: existem pesquisas no Brasil sobre irrigação e outros campos de Agronomia. O Nordeste recebe pesquisadores estrangeiros nessa e noutras áreas de estudos e envia seus pesquisadores para tantos outros país. Existem Filósofos e Sociólogos em diferentes universidades do Nordeste brasileiro e do resto do planeta, assim como Físicos, Linguistas, Historiadores, Psicólogos e demais pensadores gabaritados.

Todo apoio aos convênios entre as universidades brasileiras nordestinas (e de outras regiões do país) e suas congêneres do mundo inteiro. Universidade é para isso mesmo, para ser universo.

*Marcos Silva é do Departamento de História da FFLCH/USP

Leia também: Se o MEC com Vélez Rodriguez não estava bom, com Weintraub ficará pior, avalia Daniel Cara

Redação

4 Comentários

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  1. os déspotas dão uma de valentão quando em meio a suas hordas. Quando se sentem solitários apenas com suas paranoias fazem como Hitler em reportagem de hoje do Observador:
    “Os meus generais traíram-me. Os meus soldados não me querem seguir. E eu já não posso continuar. Podia ficar no bunker mais alguns dias, mas tenho medo que os russos nos atirem gás”, disse Hitler.

    https://observador.pt/2019/04/10/a-ultima-confissao-de-hitler-disse-ao-piloto-que-se-suicidava-para-escapar-ao-exercito-russo/

  2. Para variar, mais uma discussão essencial sub-debatida em destaque no fundamental Democracy Now!: entrevista com docente de ensino superior, representante da categoria nos USA, sobre liberdade acadêmica, liberdade de expressão, a invasão da extrema-direita nas universidades como forma de legitimação de seu discurso e esvaziamento/desvio – financeiro e institucional – de sua missão à medida que grupos marginalizados aumentam sua participação no espaço universitário. Nesse cenário de remake retrógrado e de refluxo conservador com DNA fascista e fenótipo mimético/emético, o que há de novo nas trincheiras acadêmicas das universidades públicas brasileiras?

    Democracy Now! (USA) – Academic Freedom at Risk After Decades of Attacks and Underfunding from Right Wing
    https://www.youtube.com/watch?v=Z0qfuzkAWdY

    Legião Urbana – Mais do mesmo (Renato Russo, saudades e gratidão).
    https://www.youtube.com/watch?v=rKC2FD046_Y

    Sampa/SP, 10/04/2019 – 13:58

  3. Eu, sou especialista em bioética, graduado em filosofia e terminando a especialização em letramento digital.
    Não comungo do pronunciamento desse admistrador de meia tigela, que de uma hora pra outra virou “Ministro da Educação”. Ele é uma pessoa totalmente desinformada da vida humana.
    No meu ponto de vista o Nordeste brasileiro tem bons sociólogos e filósofos , que sabem olhar as coisas com mais critérios do que esse simples administrador que faltou nas aulas de filosofia e sociologia do curso que ele é formado.
    O artigo que o Marcos escreveu foi bem na lata desse administrador de meia tigela.
    Agora cabe aqui os sociólogos e filósofos brasileiros marcarem um encontro com ele, e fazer uma sabatina sobre educação.
    Pois, ele está no lugar errado.
    O lugar dele é atrás do balcão da loja dele, se tiver….

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