Seria preciso que toda professora do ensino fundamental ganhasse R$ 8.800,00 por mês

por Sebastião Nunes

Quando eu era criança, décadas atrás, minhas três professoras do curso primário sugeriam criaturas superiores aos mortais. Não tanto na sala de aula, quando, sérias e superiormente instaladas em sua sabedoria inacessível, nos olhavam de cima para baixo, severas e cobradoras. Não eram fadas, mas também não eram bruxas: eram diferentes. Nem apaixonáveis elas eram, de tão distantes!

            Sugeriam criaturas acima dos mortais não exatamente por serem professoras, mas lá fora, no mundo dos adultos. Pelo modo como desfilavam na passarela das ruas, e pelo nariz empinado e pelo andar firme, via-se que se orgulhavam da profissão e, quase com certeza, ganhavam não só o suficiente para viver bem como para não se sentirem humilhadas por outros profissionais – tão raros naqueles cafundós!

            Que profissionais existiam ali, competindo com elas pelos primeiros lugares na hierarquia da sociedade tacanha? Um juiz, um padre, um sargento e um escrivão. Ah, sim, e um farmacêutico, o doutor pau-para-toda-obra, que não existia outro.

            Quando um sujeito passava os dias no bar jogando sinuca, ou sentado na porta das vendas, de pernas cruzadas, fumando um cigarrinho de palha, não era incomum que fosse chamado de “marido de professora”, tal o prestígio social e econômico de que nossas mestras dessas remotas décadas desfrutavam.

 

TEMPOS MODERNOS

            Todos os meus sete filhos (cinco de fabricação própria e dois enteados) foram alunos de escolas públicas, pelo menos nos anos iniciais da educação fundamental.

            Não era raro que eu os levasse ou trouxesse, a pé ou de bicicleta, antes ou depois do trabalho. Também não era raro que eu me familiarizasse com suas professoras, já agora menos superiormente instaladas em sabedoria e, frequentemente, a meus olhos adultos e desanuviados, trabalhadoras esforçadas de profissão mal remunerada.

            Confrontando-as com as nem-fadas-nem-bruxas antigas, via nelas pouco mais do que serviçais de escassa competência profissional, se comparadas com médicas, advogadas, dentistas e mesmo proprietárias abonadas de pequenas lojas varejistas.

            O termo de comparação mudou bastante. Já não empinavam narizes orgulhosos nem exibiam elevadas prendas culturais como indicativo de status. Nos tempos modernos são pequenas assalariadas pouco instruídas, brigando diariamente para domar moleques malcriados e meninas desbocadas, para dizer o mínimo dos encapetados.

 

PASSADO E PRESENTE

            Décadas atrás, um crime de morte era raro, e quase exclusivamente passional, se e quando ocorria. Que furtos havia, senão de galinhas empoleiradas? Que roubos, senão o raríssimo acontecimento – assunto para vários dias – de uma loja aberta a pé de cabra na madrugada adormecida, com o meliante sendo capturado, com o sol já quente, palmilhando com o produto da façanha a única estrada, de terra, na entrada ou na saída?

            Hoje, a pobre profissional mal paga que se dedica a ensinar em escola pública tem de correr os riscos impostos pela bárbara civilização desenvolvida por nós.

            Num dia, é xingada com cabeludos palavrões por um molecote de 11 ou 12 anos. Noutro, corre o risco de levar uma facada de alguém maiorzinho, de 13, que já traça seu baseado no recreio, quando não cafunga sua carreirinha nos fundos da escola. Como se não bastassem as grávidas sem eira nem beira, mães de pé de muro.

            Deixou, agora, a categoria de nem-fada-nem-bruxa, acima dos alunos, para, infeliz e anônima, se tornar uma pobre coitada suburbana, doida para se aposentar – mesmo que tenha apenas dois ou três anos de concursada ou – pior – de contratada.

 

PROFISSIONAIS LIBERAIS

            Há um verso famoso (entre os leitores de poesia), de João Cabral de Melo Neto, que fala dos profissionais liberais que não se liberam jamais. Está em “Morte e Vida Severina”, o auto de Natal mais pungente que já se escreveu. Retratam também a elas, que nem profissionais liberais chegam a ser, mas apenas seres rejeitados pelo mundo desgovernado que nos atormenta. O mundo do poder, é claro. O mundo da desfaçatez, é lógico. O mundo do faz-de-conta-que-educação-serve-para-alguma-coisa.

            Resta talvez hoje, às tristes professorinhas, até à minguada aposentadoria, sofrer no dia a dia das salas de aula, carentes de cultura, de informação e de conhecimentos capazes de formar adultos sábios a partir de moleques em situação de emergência, que é toda a criançada de subúrbio, periferia, adjacências: os desde já futuros sobreviventes.

            De vez em quando, quase religiosamente uma vez todo ano, uma greve bizarra por algo como oito ou 10% de abono salarial, miséria extraída a fórceps dos governos, com a qual se sentem, se não bem pagas, pelo menos vitoriosas na ingloriosa batalha contra um poder que não as libera para uma vida melhor, mais rica e mais bonita.

            Não se liberam jamais e quanto mais o tempo passa menos se liberarão. Porque são muitas, porque os alunos são muitos, porque as redes sociais multiplicam por mil e por milhões seu parco conhecimento e porque nenhum governo – nenhum governo neste pobre país encurralado – se atreverá a pagar-lhes o mínimo que merecem.

            Está, portanto, composto o tribunal da quimérica reivindicação: que se pague o que elas merecem. De onde tirar? Não sei: tirando. Sempre há gente ganhando demais. Tire-se de onde se tirar, elas merecem mais que burocratas, engenheiros, juristas, deputados, senadores, prefeitos, vereadores, governadores e – até – ministros. Se estes ganham mais, é apenas por serem mais espertos, ou mais safados.

            Que são 10 salários mínimos na economia geral dos salários? Algo medíocre para 10% de abonados, e apenas almejado pelos 90% de desafortunados, e para os quais torcem os narizes empinados esses 10% que hoje, como as professorinhas antigas (as minhas e as de Ataulfo Alves), se refestelam nos bem-bons da vida.

            E assim está posta a questão: ou as professoras do ensino fundamental passam a ganhar R$ 8.800,00 mensais, equivalente a 10 salários mínimos, ou seremos sempre um Brasil ignorantíssimo, ou seja: pouco menos que o último país do mundo a merecer o título de civilizado. Com picumã na alma e no cérebro.

 

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Ilustração: Recorte de uma pena belíssima perdida nos desertos da ignorância

Sebastiao Nunes

10 Comentários

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  1. Perfeito, caro Sebastião. Era

    Perfeito, caro Sebastião. Era só reduzir os salários de judiciário, policiais federais e fiscais de renda para o mesmo valor proposto, que haveria dinheiro para todos. E assim diria que todos estariam bem remunerados.

  2. Opção e prioridades

    Se fizermos opção pelo social e estabelecemos prioridades de acordo com isso, é natural que se individualize a professora primaria como absoluta prioridade, aquela que irá formar milhões de novos brasileiros, ainda mais nestes tempos de baixa participação familiar na educação dos filhos. Ninguém que ganhe 10 salários mínimos terá condição de abrir conta no exterior, nem de comprar casa em Miami, ou seja, ocorrerá o mesmo que ocorre com o Bolsa Família, onde o dinheiro não sai do Brasil mas fica irrigando a economia local, em pequenas comunidades. Trata-se de um investimento e não de uma despesa. Sou partidário desse tipo de políticas, como as que já temos e como outras que há muitos anos defende o ex-Senador Suplicy.

  3. Meu pai era professor de

    Meu pai era professor de latim e francês nesse sistema antigo, de que peguei os último suspiros. Ganhava o suficiente para ter uma vida modesta numa cidade de interior. Se eu fosse chutar, diria algo equivalente a 4 mil reais. Talvez 5 – no máximo. A principal diferença não estava no salário, mas na formação dos professores e nas condições de trabalho. Dava aulas todos os dias, mas não em todos os períodos. Num dos períodos, preparava aulas e corrigia provas. Aos domingos, comíamos pizza portuguesa com Crush depois da missa. Nas férias, íamos a Monguaguá. Não tínhamos carro. Pegávamos carona com meu tio, gerente do Banco do Brasil, muito mais bem pago. Havia o prestígio – isso é inegável. Todos o tratavam por “professor”. E havia o orgulho em estudar no Colégio do Estado, onde ele dava aulas. Eu passeava com o uniforme pelas ruas, e sabia a inveja que isso causava à turminha das escolas privadas, feita pra gente “rica, mas burra”.  

  4. Olha, tem gente com saudade

    Olha, tem gente com saudade de algo que nunca existiu.

    Professores no Brasil nunca foram bem remunerados. Era uma profissão de prestígio, sobretudo no Brasil rural, porque era profissão de mulher; as professoras, que eram poucas, eram frequentemente irmãs do prefeito, filhas do juiz, primas do dono da fazenda. Salário era bobagem. Era um sistema que só funcionava por que escola era para poucos, muito poucos. A maioria da população era, e devia continuar a ser, analfabeta.

    A ditadura militar democratizou a escola, continuando, radicalizando e multiplicando um processo iniciado nos governos populistas da Segunda República. Infelizmente, nivelou por baixo: para proporcionar escola para todos, rebaixou os salários e massificou a profissão de professor, permitindo inclusive a multiplicação dos “professores leigos” – professores sem sequer a Escola Normal. Disso resultou a proliferação das escolas particulares: com a escola pública brutalmente rebaixada, tanto do ponto-de-vista pedagógico, com professores sem formação adequada, quanto do ponto-de-vista social, com o acesso de milhões de pés-rapados aos bancos escolares, multiplicaram-se e revalorizaram-se os estabelecimentos privados, para atender uma classe média sequiosa tanto de educação minimamente decente quanto de distância dos pobres urbanos. Escola particular, nas décadas de 60 e 70, deixou de ser o lugar dos filhinhos de papai incapazes de acompanhar o ritmo, então muito mais forte, das escolas públicas de qualidade, o lugar dos repetentes, dos problemáticos, dos indisciplinados e indisciplináveis, para se tornar o espaço da educação por excelência, onde se pagava para sair da escola pública cada vez mais degradada.

    Foi um processo traumático, sem dúvida, e mais traumático ainda, com certeza, pela mão pesada, pela mentaliade repressiva e pela incompetência do governo ditatorial. Mas foi um processo necessário, por que o país não podia seguir tendo uma escola pública voltada exclusivamente ao atendimento das elites, o que era o caso até a década de 50 ou 60.

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    Ideia maluca a de que se tira do salário do juiz para se colocar no salário do professor. Salário não funciona assim. Reduza pela metade o salário do burocrata, e o resultado mais provável é que o salário do professor, em vez de aumentar, diminua também. A não ser que haja uma mudança cultural muito importante e decisiva, através da qual a sociedade passe a entender que professor precisa ganhar bem ou muito bem. Mas isso é impossível enquanto tivermos um sistema educacional duplo, em que as escolas públicas servem para reproduzir, não o conhecimento, mas a exclusão social. Por que reproduzir a pobreza não é um trabalho que demande uma remuneração decente, na visão daqueles a quem aproveita a reprodução da pobreza.

    1. é isso mesmo…

      Acho que foi exatamente isso que o autor do artigo disse, ou seja, é preciso que haja mudança cultural, e que seja importante e decisiva.

      Todos entendem que tirar salário dos burocratas para repassar a professores é apenas uma forma de expressar a indignação, e que isso não funciona de modo tão simples. E quem escreve um artigo como esse provavelmente está atento a isso.

      O importante, no meu ver, é a busca pelos valores, e foi assim que entendi o texto.

  5. Quando um presidiário (aqui

    Quando um presidiário (aqui no Facebook não é espaçõ para desenvolver teses das causas) custa mais para o Estado (ou os trabalhadores que pagam impostos na renda) do que professores é sinal que estamos numa nação doente.

     

  6. Parece que vc leu minha mente…

    Semana passada estava refletindo a política educadora do governo do PT e vejo o erro cometido na investidura do ensino superior. Não se forma cidadão a partir das universidades e sim até os 10 anos. Se o PT tivesse implantado o ensino fundamental Federal (sememlhante aos moldes do Cristovan, ave Maria), o governo do PT estaria colhendo os frutos de uma geração de crianças diferentes, seja na formação cidadã ou até esportiva.

    Sobre o salário de 8800,00 o salário nem é o mais interessante, mas o retorno ao respeito deste profissional mais importante para uma nação prosperar.

    Falta tudo: salário, professores, pessoal de apoio, espaço, tempo, material, única coisa que não falta é a criançada a ser trabalhada. 

    14 anos de política educacional jogada no lixo.

  7. Aqui no Brasil não é

    Aqui no Brasil não é assim.

    Aqui quem ganha este salário são batedores de carimbo, concurseiros de nível médio.

    Professores ganham muito menos.

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