Lutas e canções contra a segregação racial nos Estados Unidos, por Paulo Fernandes Silveira

As freedom songs (canções da liberdade) tiveram um papel fundamental na mobilização popular pelos direitos civis e pela luta contra a segregação racial.

Capa do Jornal Birmingham Post-Herald, 16 de setembro de 1963.

Lutas e canções contra a segregação racial nos Estados Unidos

por Paulo Fernandes Silveira

Para Hermano Vianna

Até meados dos anos 60, uma parte das leis de segregação Jim Crow ainda vigorava na região sul dos Estados Unidos (Civil Rights Movement Archive). A segregação racial atingia homens e mulheres negras de todas as idades, impondo-lhes restrições no acesso ao emprego, à educação, ao transporte e às instalações públicas e privadas. As principais universidades não aceitavam estudantes negros e negras. Lojas, bares, restaurantes e ônibus tinham lugares demarcados. Pessoas negras não conseguiam comprar ou alugar casas em todos os bairros das cidades segregadas. Não era permitido às crianças negras estudar nas escolas reservadas às brancas, não podiam frequentar os mesmos parques e outros espaços de lazer e só lhes era autorizado utilizar determinados banheiros, vestiários e bebedouros.

As freedom songs (canções da liberdade) tiveram um papel fundamental na mobilização popular pelos direitos civis e pela luta contra a segregação racial. A intensa participação de jovens e crianças foi marcada pela alegria das músicas entoadas por todos e todas (LEVINSON, 2012). Esses e essas ativistas adaptaram melodias do spiritual e do gospel às letras com temas e demandas do movimento (REAGON, 1987).   

Essa estratégia da adaptação de antigas canções populares foi desenvolvida pela Highlander Folk School. No início dos anos 30, contra leis e costumes, o educador Myles Horton fundou essa escola integrada no estado do Tennessee. Um dos princípios defendidos por Horton era o de que as pessoas oprimidas têm condições de encontrar respostas para os seus próprios problemas (MORRIS, 1984). A adaptação das canções era ensinada por Zilphia Horton, companheira de Myles, que aprendeu a estratégia em sua militância junto ao movimento operário (DAVIS, 2017).

Nos cursos para trabalhadores e trabalhadoras ministrados na própria escola e em workshops para estudantes secundaristas e universitários oferecidos em vários lugares, Zilphia e os músicos Guy Carawan e Pete Seeger, colaboradores da Highlander, difundiram a “zípper song”, técnica para articular melodias e letras (WELSH, 2021). Algumas das principais lideranças do movimento contra a segregação racial conheceram essa técnica: Septima Clark; Rosa Parks; Martin Luther King; Frederick Shuttlesworth; Ella Baker; Bernice Reagon; Bernard Lafayette, etc.

O trabalho de Zilphia implicou numa extensa pesquisa sobre as canções populares, registrada em diversos songbooks editados pela Highlander. Nos arquivos da escola, encontramos indicações de como instigar os alunos e alunas a comporem uma nova freedom song (Zilphia Horton Folk Music Collection, Suggestions for song leaders). Entre as canções garimpadas e adaptadas por Zilphia estão “We shall overcome” e “This little light of mine”. Com uma letra simples e fácil de memorizar, essa última canção foi gravada, em 1963, pela cantora e ativista Odetta:

Esta minha pequena luz, vou deixá-la brilhar/ This little light of mine, I’m gonna let it shine …

Todos os dias, todos os dias/ Every day, every day…

Vou deixar minha pequena luz brilhar/I´m gonna let my little light shine”

(“This little light of mine”, Odetta, 1963). https://www.youtube.com/watch?v=JbiipsbzPAE

No workshop “Sing for freedom”, de 1964 (CARAWAN; CARAWAN, 1980, 1992), coordenado pelo casal Guy e Candie Carawan, as jovens do trio vocal da Montgomery Improvement Association (MIA) acrescentaram outros versos à canção:

Temos a luz da liberdade/ We’ve got the light of freedom

Vamos deixá-la brilhar/ We’re gonna let it shine”

(“This little light of mine”, Various Artists, 1992).

Em maio de 1954, o movimento contra a segregação racial nos Estados Unidos obteve uma grande conquista. Anos antes, o pastor negro Oliver Brown tentou matricular sua filha Linda na escola primária mais próxima à sua casa, na cidade de Topeka, no Kansas (PATTERSON, 2001). Essa escola era reservada às crianças brancas e o Conselho de Educação de Topeka recusou a matrícula. Com o apoio da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP), Brown levou o caso até a Suprema Corte, que reconheceu a inconstitucionalidade da segregação escolar.

Meses depois, em 28 de agosto de 1955, o menino negro Emmett Till (Bobo), de apenas 14 anos, foi barbaramente assassinado em Money, cidade do Mississipi (DARDEN, 2014). O menino teria assobiado numa mercearia para uma mulher branca e casada. Acusados pelo crime, o marido e o cunhado dessa mulher foram absolvidos por insuficiência de provas. No mesmo ano, essa história escandalosa foi narrada numa canção de Madame Bilbrew, gravada pelo The Ramparts:

“Os dois homens foram a julgamento/ The two men went to trial,

Sentaram e sorriram e fumaram e mascaram/ Sat and grinned and smoked and chewed,

Como todas as testemunhas depuseram amedrontadas/ As the fearful witnesses all did testify,

Em sessenta e cinco minutos o júri trouxe o veredito nas mãos/ Jury’s out sixty-five minutes, returned verdict in hand,

‘Inocentes’, foi sua pronta resposta/ ‘Not guilty’, was their prompt reply”

(“The death of Emmett Till”, The Ramparts, 1955).

No velório do seu filho, Mamie Bradley autorizou que o caixão ficasse aberto, expondo os ferimentos no rosto do menino. Essa imagem terrível, publicada na Jet Magazine (1955), revista especializada na história e na cultura negra, marcou toda uma geração de jovens ativistas (KING, 2005). Segundo o sociólogo Aldon Morris:

“A geração de jovens negros que lideraria a ala estudantil do movimento moderno pelos direitos civis estava amadurecendo precisamente na época do linchamento de Till. Este assassinato desempenhou um papel importante na radicalização deles. Eles ficaram chocados com a brutalidade do crime e indignados quando os assassinos foram liberados pelo sistema judicial branco. Muitos deles começaram abraçando ideias de ativismo porque eles próprios se sentiam vulneráveis. Eles estavam bem cientes de que a comunidade branca e muitos adultos dentro da comunidade negra se recusaram a lutar por justiça” (MORRIS, 1999, p. 522).

No dia 1 dezembro de 1955, a atitude destemida de Rosa Parks, uma costureira negra de 42 anos, moradora da cidade de Montgomery, no Alabama, marcaria uma nova etapa no movimento contra segregação (BURNS, 1997). No início da noite, ao retornar de ônibus para sua casa após um dia de trabalho, Parks foi presa ao se recusar ceder o lugar em que estava sentada para um homem branco. Pelas leis estaduais e municipais, negros e negras só poderiam ocupar os acentos da parte de trás do ônibus. 

Além de trabalhar numa loja de departamentos, Parks tinha uma longa experiência como militante pelos direitos civis. Após conhecer, em agosto de 1955, a integração na Highlander, Parks se opôs ainda mais intensamente às leis Jim Crown (BURNS, 1997).  Sua prisão provocou a reação imediata da comunidade negra. Com o apoio de inúmeras lideranças, entre elas, da professora e ativista Jo Ann Robinson, presidenta do Women’s Political Council (WPC), e do jovem pastor batista Martin Luhter King, negros e negras organizaram um boicote aos ônibus que se estendeu por um ano.

O boicote trouxe inúmeras dificuldades para trabalhadores, trabalhadoras e estudantes negros e negras. Muitos e muitas foram presos e perderam seus empregos. Quem não podia contar com as caronas, precisava caminhar para chegar ao serviço ou em outros lugares da cidade. Segundo a jovem Mary Dozier (CARAWAN; CARAWAN, 1992), que se tornou ativista aos 10 anos de idade, as canções de protesto ajudavam as pessoas a persistirem no movimento. A freedom song “Keep your eyes on the prize”, uma das mais populares (VECCHIONE, 1987), refere-se às prisões arbitrárias:

“Paulo e Silas, presos na cadeia/ Paul and Silas, bound in jail.

Não tinham dinheiro para suas fianças/ Had no money to go their bail.

Mantenha seus olhos no prêmio/ Keep your eyes on the prize,

Aguente, aguente! / Hold on, hold on!”

(“Keep Your eyes on the prize”, Various Artists, 1992).

As casas de algumas lideranças do movimento foram bombardeadas. No início de 1956, advogados da Montgomery Improvement Association (MIA), associação presidida por Martin Luther King, entraram na justiça contra William Gayle, prefeito que mantinha com inflexibilidade a segregação nos ônibus de Montgomery. A petição teve como demandantes cinco mulheres negras que, antes de Parks, também protestaram contra essa segregação. A lista de demandantes foi encabeçada pela ativista Aurélia Browder. No dia 20 de dezembro de 1956, a Suprema Corte tomou sua decisão sobre o caso Browder v. Gayle: a segregação no transporte público foi considerada inconstitucional. No dia seguinte, o movimento encerrou o boicote.  

Influenciados pelos discursos de King em defesa das formas não-violentas de resistência contra a segregação racial (SCHMIDT, 2018), no início de 1960, quatro jovens estudantes da North Carolina Agricultural and Technical, uma universidade estadual  historicamente negra, criaram uma nova estratégia de ação direta: a desobediência civil do protesto sentado (sit-in).   

No dia 1 de fevereiro, os quatro estudantes sentaram-se tranquilamente no balcão de uma lanchonete de Greesboro, cidade da Carolina do Norte. O espaço era reservado para brancos. Seus pedidos foram ignorados e os funcionários da lanchonete sugeriram que os jovens negros se retirassem. Os estudantes se mantiveram sentados no balcão até o horário da lanchonete fechar.

A estratégia foi imediatamente incorporada por estudantes de inúmeras cidades do país. Em meados de fevereiro, alguns protestos dos sit-ins em Naschville, no Tennessee, foram brutalmente reprimidos, primeiro por jovens brancos, depois pela própria polícia. Nas imagens da barbaridade (DOWDEY, 2017), vemos negros e negras sendo cuspidos; esmurrados; chutados; arrastados pelo chão, etc.

Após os protestos, em acordo com as prefeituras, algumas lojas e redes de lanchonetes promoveram a dessegregação em seus espaços comerciais. Ao contrário do que fez no caso Brown v. Bord of Education of Tokeda, sobre a segregação nas escolas, e no caso Browder v. Gayle, sobre a segregação nos ônibus, nesse caso, a Suprema Corte decidiu não considerar inconstitucional essa forma de segregação (SCHMIDT, 2018).   

Os protestos dos sit-ins chamaram a atenção das principais lideranças do movimento pelos direitos civis. Em abril de 1960, a experiente ativista Ella Baker, diretora da Southern Christian Leadership Conference (SCLC), organizou um grande encontro com os sit-ins na Shaw University, em Raleigh, na Carolina do Norte. Uma das propostas aprovadas foi a criação do Student Nonviolent Coordinating Committee (SNCC).

No horizonte dos debates entre os e as estudantes universitárias e outros ativistas sobre suas estratégias de protesto não-violentos, em 1961, Joe Farmer, diretor do Congress of Racial Equality (CORE), sugeriu-lhes a incorporação de uma forma de ação direta já empregada em 1947, na Journey of Reconciliation: as freedom rides, viagens de pessoas negras e brancas em ônibus intermunicipais (ARSENAULT, 2006).

Com dezenove anos de idade, Kwane Ture (Stokely Carminhael), criador do movimento Black Power, foi um dos universitários que participaram dessas viagens pela liberdade (TURE; THELWELL, 2005). Desafiando as leis vigentes, os e as estudantes atravessaram diversas cidades do país em grupos integrados. Nas viagens e nas prisões que a elas se sucederam, rapazes e moças entoaram suas freedom songs (NELSON JR., 2010). https://www.youtube.com/watch?v=HuZQkl09Jho A música era utilizada, entre outras razões, para unir os e as ativistas e para provocar a polícia e demais autoridades. Uma das freedom songs refere-se, justamente, às viagens pela liberdade:

“Estou fazendo uma viagem na linha de ônibus Greyhound/

I’m taking a trip on the Greyhound bus line…

Aleluia, sou um viajante/ Hallelujah I’m a traveling.

Estou viajando pela linha principal da liberdade/ Down freedom’s main line”

(“Hallelujah I’m a traveling”, Congress of Racial Equality – CORE, 1962).

Em 20 de maio de 1961, ao fazerem uma parada na estação de ônibus de Montgomery, os freedom riders foram agredidos por centenas de homens e mulheres da Ku Klux Klan (ARSENAULT, 2006). A polícia não intercedeu. Diversos ativistas foram espancados, entre eles, o estudante Jim Zwerg (NELSON JR., 2010). https://www.youtube.com/watch?v=q5wjYnSL2m0 Quando a multidão viu um jovem branco entre os freedom riders, correram para atacá-lo, esquecendo-se por um momento dos ativistas negros (TURE; THELWELL, 2005). Numa das cadeias pelas quais passou, o grupo vocal do Nashville Quartet, que estava entre os estudantes pegos na emboscada de Montgomery, criaram uma freedom song comparando a violência dos supremacistas brancos ao ataque de cães famintos:

“É melhor deixar a segregação em paz/ You’d better leave segregation alone.

Pois eles amam a segregação/ Because they love segregation.

Como um cão de caça ama um osso, um osso/ Like a hound dog loves a bone, a bone”

(“You better leave segregation alone”, Various Artists, 1992).

Os freedom riders receberam o apoio de grandes músicos de jazz (MONSON, 2007) e de cantores e cantoras consagradas (FELDSTEIN, 2013). Alguns jazzistas dedicaram álbuns ao tema: Sonny Rollins (1958), Charles Mingus (1959), Max Roach (1960), etc. O baterista Art Blakey (1964) compôs a canção “The freedom rider”, que parece evocar o entusiasmo e a tensão dos protestos. https://www.youtube.com/watch?v=vthIOj4l4QA Nesse período, esses e outros músicos de jazz participaram de diversos shows organizados pelo CORE, pelo SNCC e pela SCLC (MONSON, 2007). A arrecadação desses shows ajudou a financiar as freedom rides. Em 1963, o álbum duplo “A jazz salute to freedom”, organizado e gravado pelo CORE, reuniu canções de vários artistas: Dinah Washington; Sarah Vaughan; Louis Armstrong; Duke Ellington; Dizzy Gillespie; Harry Belafonte; Miles Davis, etc.

Nos anos 60, Birmingham, em Atlanta, era uma das cidades mais segregadas dos Estados Unidos (KING, 2018). Após dezenas de atentados às igrejas e residências de militantes negros, Birmingham recebeu a alcunha de “Bombingham” (ESKEW, 1997). Em 1963, com a participação de King, entidades negras organizaram uma campanha na cidade contra a segregação. Ações diretas não-violentas foram colocadas em prática: além de marchas pacíficas, a campanha promoveu um boicote aos estabelecimentos dos comerciantes brancos. Em abril, King foi preso. Temendo a perda dos seus empregos, muitos adultos abandonaram a campanha.

A partir desse momento, os jovens assumiram o protagonismo dos protestos naquela que ficou conhecida como a Cruzada das Crianças. Em maio, centenas de estudantes, de Birmingham e de outras cidades, os Viajantes pela Liberdade, concentraram-se na Igreja Batista da rua Dezesseis (HOUSTON; HUDSON, 2005). Na igreja, os jovens se juntaram ao coral de Carlton Reese. Idealizado pelo reverendo Frederick Shuttlesworth, o Alabama Christian Movement Choir reformulou antigas canções populares, acrescentando letras que instigam a luta contra a segregação. Uma das canções do coral foi adaptada pela militante Mamie Brown:

“Estou no meu caminho, para terra da liberdade/ I’m on my way, to freedom land (…)

Se você não for, também não tente me impedir/ If you don’t go, don’t hinder me (…)

É uma jornada difícil, mas é o meu caminho/ It’s an uphill journey, but I’m on my way (…) 

Nada do que você possa fazer, me levará mudar de ideia / There´s notyhing you can do, to turn me around” (“I’m on my way, to freedom land”, Alabama Christian Movement Choir, 1963). https://www.youtube.com/watch?v=T2vqd7g9v7E

Como fizeram Ray Charles e outros artistas do r&b e da soul music (HEADLAM, 2002), Brown promoveu uma “integração” entre a melodia da canção gospel “Oh lawd, I’m on my way”, tocada na ópera Porgy and Bess, de Gershwin, e uma letra com aspirações seculares. A estrutura musical da “chamada e resposta” (call and response), comum nos ritos religiosos, ajudava a motivar as marchas.

A Cruzada das Crianças enfrentou uma forte repressão. Após lotar as delegacias e outros espaços públicos com centenas de jovens presos, a polícia passou a atacá-los com jatos d’água e cachorros ferozes. As cenas de violência apareceram nos principais jornais do país. Os levantes de maio despertaram as pessoas para as relações raciais (ESKEW, 1997). Segundo Ture e Hamilton, a primavera de 1963 acendeu a centelha da revolta negra, “as explosões logo foram ouvidas em Harlem, Chicago, Filadélfia e Rochester, em 1964, Watts, em 1965, Omaha, Atlanta, Dayton e dezenas de outros lugares, em 1966” (TURE; HAMILTON, 2021a, p. 185).

Um mês após as marchas dos estudantes, o estado do Alabama passaria por um novo conflito racial. Por determinação da Suprema Corte, a Universidade do Alabama deveria começar um processo de integração a partir de 1963, admitindo seus primeiros alunos e alunas negras. Como procurador-geral, Robert Kennedy foi pessoalmente ao estado para garantir o cumprimento das ordens do tribunal federal. Todavia, George Wallace, governador do Alabama, que havia prometido: “segregação agora… segregação amanhã, segregação sempre” (CARTER, 2000, p. 11), fez tudo o que pôde para barrar a integração na universidade.

Em junho de 1963, Vivian Malone e James Hood apresentaram todos os requisitos acadêmicos para ingressarem na Universidade do Alabama. Sem obter sucesso em suas diversas investidas para evitar a integração, Wallace vai até a porta da universidade para tentar impedir a entrada dos estudantes negros. A encenação do governador não teve maiores consequências, Malone e Hood conseguiram efetivar suas matriculas no dia 11 de junho. Horas depois, o presidente John Kennedy (1963) fez um contundente discurso em rede nacional defendendo os direitos civis.

Na manhã seguinte, Medgar Evers, secretário da NAACP, foi assassinado por um integrante de um grupo supremacista branco. Evers tomou um tiro em frente à sua casa, em Jackson, cidade do Mississipi. Esse crime foi retratado na canção “Only a pawn in their game”, de Bob Dylan (1964). A partir de melodias de antigos spirituals (GWIN, 2013, p 140), o quarteto The Freedom Singers (1963) criou a freedom song “They laid Medgar Evans in his grave”.

Em 28 de agosto de 1963 ocorreu a Marcha em Washington por trabalho e liberdade. Mais de duzentas mil pessoas foram às ruas protestar contra a segregação. A cidade recebeu Viajantes pela liberdade de todo o país. Nessa ocasião, Martin Luther King (2006) fez seu célebre discurso “Eu tive um sonho”. https://www.youtube.com/watch?v=smEqnnklfYs Coube à Mahalia Jackson (1976), rainha do gospel e ativista (CUSIC, 2002), entoar a canção que antecedeu o discurso de King: “I’ve been buked and I’ve been scorned”. Uma das artistas que participaram da marcha, Joan Baez cantou a freedom song:

“Nós superaremos, nós superaremos/ We shall overcome, we shall overcome.

Um dia, nós superaremos/ We shall overcome some day.

Oh, no fundo do meu coração, eu acredito/ Oh, deep in my heart I do believe.

Um dia, nós superaremos/ We shall overcome some day”

(“We shall overcome”, Various Artists, 1964a; CARAWAN; CARAWAN, 1964).

A resposta da Ku Klux Klan chegou em setembro de 1963. Numa manhã de domingo, uma bomba foi lançada na mesma Igreja Batista de Birmingham que tinha recebido os e as estudantes em maio. A explosão feriu dezessete pessoas e tirou a vida de quatro meninas negras: Denise McNair, 11 anos; Carole Robertson, 14 anos; Cynthia Wesley, 14 anos; e Addie Collins, 14 anos (BIRMINGHAM POST-HERALD, 1963).

Nesse período, contemplada com uma bolsa de estudos, Angela Davis fazia intercâmbio numa faculdade francesa. Davis soube do atentado de Birmingham, sua cidade natal, pela reportagem do Herald-Tribune: “Ao passar os olhos pelo jornal, vi uma manchete sobre quatro garotas e o bombardeio de uma igreja. No início, tive apenas uma vaga consciência das palavras. Então, me dei conta! Senti tudo desmoronando à minha volta” (DAVIS, 2019, p. 135).

Pelas análises de Judith Butler (2016), a vulnerabilidade não é o oposto da ação política. Ela é uma forma de receptividade atrelada à capacidade de oferecermos uma resposta. Logo após o atentado, John Coltrane (1964) compôs “Alabama”, música inspirada na cadência dos discursos de King (COLE, 1975). No mesmo ano, Nina Simone escreveu um desabafo musical:

“O nome desta toada é maldito Mississipi/ The name of this tune is Mississipi goddam.

E eu quero dizer cada palavra/ And I mean every word of it.

Alabama me deixou muito chateada/ Alabama’s gotten me so upset.

Tennesse me fez perder o sossego/ Tennesse made me lose my rest.

E todo mundo sabe sobre o maldito Mississipi/ And everybody nows about Mississipi goddam”

(“Mississipi goddam”, Nina Simone, 1964).

Num discurso em Cleveland, feito em abril de 1964, Malcolm X (2021) questionou as estratégias de luta não-violentas daqueles e daquelas que pensam ser possível mudar o mundo cantando “We shall overcome”. Afinal, muita coisa mudou, apesar de toda violência dos supremacistas brancos. Todavia, muita coisa ainda precisa ser mudada no combate ao racismo e à segregação. Ao refletirem sobre o movimento dos direitos civis, Ture (2021b) e Davis (2018) retomaram uma canção dos anos 60, quem sabe esse seja um caminho, a luta constante:

“Dizem que a liberdade é uma luta constante/ They say that freedom is a constant struggle.

Oh Senhor, lutamos há tanto tempo/ Oh Lord,, we’ve struggled so long (…)

Oh Senhor, choramos há tanto tempo/ Oh Lord, we-ve cried so long (…)

Oh Senhor, lamentamos há tanto tempo/ Oh Lord, we’ve sorrowed so long (…)

Oh Senhor, lastimamos há tanto tempo/ Oh Lord, we’ve moaned so long (…)

Dizem que a liberdade é uma luta constante/ They say that freedom is a constant struggle.

Oh Senhor, morremos há tanto tempo; Oh Lord, we’ve died so long.

Devemos ser livres, devemos ser livres/ We must be free, we must be free”

(“Freedom is a constant struggle”, Various Artists, 1964b).

Bibliografia

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Documentários e séries

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John Coltrane (1964). Live at Birdland. New Jersey: Van Gelder Studio.

Mahalia Jackson. (1976). How I got over. New York: Columbia Records.

Max Roach. (1960). We insist!. New York: Nola Penthouse Sound Studio.

Nina Simone (1964). Nina Simone in concert. New York: Philips.

Odetta. (1963). Odetta sings folk songs. New York. RCA Victor.

Sonny Rollins. (1958). Freedom suíte. New York: WOR Recording Studio.

The Fredoom Singers. (1963). The freedom singers sing of freedom now!. Chicago: Mercury Records.

The Ramparts. (1955). The death of Emmett Till. Los Angeles: Dootone Records. 

Various Artists. (1963). A jazz salute to freedom. New York: CORE (Congress of Racial Equality).

Various Artists. (1964a). We shall overcome! Documentary of the march on Washington. Washington, D. C.: Folkways Records.

Various Artists. (1964b). The broadside singers. New York: Broadside Records.

Various Artists. (1980). Lest we forget, Vol. 2: Birmingham, Alabama, 1963 Mass Metting. Washington, D. C.: Folkways Records.

Various Artists. (1992). Sing for freedom: the story of the civil rights movement through its songs. Washington, D. C.: Folkways Records.

Paulo Fernandes Silveira (FE-USP e IEA-USP)

Redação

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  1. Na década de 1870, o Brasileiro Engenheiro Negro André Rebouças viaja aos EUA, aqui relatado quase 1 século depois. Elite Negra e Miscigenada Brasileira que representava a vanguarda e evolução da Humanidade junto às idéias liberais, democráticas e republicanas do 2.o Império e projeto da 1.a República, República Paulista construída através do PRP e Cátedras da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. O Mundo inveja tamanho Projeto de Nação que sinaliza o rumo de avanços que o restante da Humanidade ainda precisará alcançar mais de meio século à frente. E que ainda não alcançou nem nos dias de hoje, muito menos dentro do EUA, como demonstra a reportagem. Ainda hoje tem Doutrinados que se inspiram e usam os EUA como exemplo para Nós. Doutrinação do Revisionismo Histórico do Golpe Ditatorial Esquerdopata-Fascista de 1930, que implode e sabota esta Nação de André Rebouças e ideais da Faculdade de Direito de São Paulo, submetendo a Nação Vanguarda Mundial ao Higienismo, Xenofobia, Racismo NorteAmericano e Europeu, transformando o projeto e visão desta Nação Miscigenada numa Caricatura de Mulher Branca Europeia com fruteira na cabeça e Papagaio Malandro em símbolos da Cultura Brasileira. Algo palatável para as Políticas Racistas Brancas NorteAmericanas e Européias. Tornamo-nos párias e anedota mundial para satisfazer o gosto e políticas racistas ao quais nos submetemos a partir de 1930. O tal Mundo Civilizado que diz nos livrou do nazismo, mas que coloca bombas entre Crianças dentro de Escolas Dominicais.

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