“Superterça” e a geopolítica americana, por Bruno Alcebino da Silva

Trump, com seu estilo disruptivo e divisivo, pareceu consolidar sua posição como o líder incontestável do Partido Republicano.

Reprodução Infomoney

“Superterça” e a geopolítica americana

por Bruno Fabricio Alcebino da Silva

A ressaca da “Superterça” eleitoral dos Estados Unidos ainda ecoa nos corredores políticos, lançando luz sobre o preocupante vazio de liderança entre os principais candidatos à presidência. No epicentro desse vácuo político estão dois protagonistas polarizadores: o incendiário Donald Trump e o envelhecido Joe Biden.

A votação realizada ontem (05/03) trouxe consigo a confirmação de muitas expectativas. Trump, com seu estilo disruptivo e divisivo, pareceu consolidar sua posição como o líder incontestável do Partido Republicano. Enquanto isso, Biden, muitas vezes rotulado como “o candidato da continuidade”, enfrentou o desafio de manter sua base de apoio em um cenário político cada vez mais fragmentado.

No dia em que 15 estados votaram nas primárias do Partido Republicano, Trump confirmou seu favoritismo, conquistando vitórias em 11 estados, incluindo Virgínia, Carolina do Norte, Tennessee, Oklahoma, Maine, Alabama, Massachusetts, Arkansas, Texas e Minnesota. As projeções indicam margens confortáveis de vitória, consolidando ainda mais sua posição como líder incontestável do partido.

A rival de Trump, Nikki Haley, que obteve sua única vitória em Washington, não foi páreo para o ex-presidente, acumulando apenas 52 delegados contra os 493 de Trump. A expectativa é que Haley anuncie sua desistência, abrindo caminho para a confirmação da candidatura de Trump na convenção republicana em julho.

Enquanto Trump celebra seu desempenho, o atual presidente democrata, Joe Biden, enfrenta desafios em seu próprio partido. Embora tenha vencido facilmente as disputas democratas (obtendo vitórias em 14 estados), a baixa popularidade de Biden, evidenciada por uma pesquisa do Times/Siena Poll, levanta questionamentos sobre sua capacidade de inspirar confiança.

A liderança vacilante de Biden se reflete na desaprovação de 47% dos eleitores, sendo considerado “muito velho” por 73% dos entrevistados. Mesmo vencendo as primárias, Biden enfrenta críticas sobre seu alinhamento irrestrito a Israel no conflito de Gaza, causando descontentamento em parte de sua base, especialmente entre os mais jovens.

Diante do esvaziamento de liderança, a “Superterça” também destaca a possibilidade de uma terceira opção, com eleitores considerando candidaturas independentes em meio às fragilidades dos candidatos dos dois grandes partidos. Enquanto Trump e Biden se preparam para enfrentar desafios internos e externos, o cenário político nos Estados Unidos permanece incerto, refletindo um elenco que talvez não esteja à altura da história em curso.

A retórica inflamada e muitas vezes controvertida de Trump o manteve como uma figura dominante dentro de seu partido, apesar das vozes dissonantes que ecoam em alguns círculos republicanos. Sua estratégia de polarização tem sido tanto uma bênção quanto uma maldição, galvanizando sua base enquanto aliena um número significativo de eleitores independentes e moderados.

Por outro lado, Biden, muitas vezes retratado como o candidato seguro e previsível, enfrentou críticas por sua aparente falta de dinamismo e energia. A desconfiança crescente dentro de sua própria base democrata reflete-se não apenas nas urnas, mas também nas sondagens de opinião, onde sua popularidade parece estar em declínio.

O esvaziamento de liderança entre esses dois candidatos de destaque levanta questões cruciais sobre o futuro da política americana. Enquanto Trump continua a polarizar e dominar as manchetes, Biden enfrenta o desafio de recuperar o ímpeto e a confiança de seu eleitorado.

A “Superterça” revelou apenas uma parte do que está por vir. À medida que a corrida presidencial avança, será interessante observar como esses candidatos enfrentam os desafios que se apresentam. Em um momento de incerteza e divisão, a liderança eficaz e inspiradora é mais importante do que nunca. No entanto, parece que essa qualidade está em falta entre os principais concorrentes à Casa Branca.

Geopolítica e a eleição

Para entender a geopolítica dos Estados Unidos sob a administração de Biden em comparação com a era Trump, é essencial considerar os conceitos de teóricos como Halford Mackinder (1861-1947) e Nicholas Spykman (1893-1943), que oferecem perspectivas sobre o papel dos EUA no cenário global. Mackinder, com sua teoria do Heartland, argumentava que o controle do coração da Eurásia era essencial para a dominação mundial, enquanto Spykman, com sua teoria do Rimland, destacava a importância das regiões costeiras e das áreas periféricas do continente eurasiano.

Sob a presidência de Trump, a abordagem geopolítica dos Estados Unidos foi caracterizada por uma postura mais nacionalista e unilateralista. Trump adotou uma política externa da “América em primeiro lugar”, buscando reverter acordos multilaterais, fortalecer o protecionismo econômico e desafiar as instituições internacionais. Sua visão refletia uma ênfase na segurança nacional e na soberania, com uma abordagem transacional nas relações internacionais.

Em termos de aplicação das teorias geopolíticas, a administração Trump tendia a se concentrar nas áreas consideradas estrategicamente vitais pelos teóricos de Rimland, como o Oriente Médio e o Sudeste Asiático. A decisão de retirar as tropas americanas do Afeganistão e do Iraque, assim como a tentativa de desengajamento na Síria, exemplificou essa abordagem centrada na contenção de ameaças regionais.

Além disso, Trump adotou uma política de confronto com potências rivais como China e Rússia, vendo esses países como desafios à hegemonia americana. Isso se manifestou em uma guerra comercial com a China, a retirada do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF) com a Rússia e uma retórica beligerante em relação aos dois países.

No entanto, a abordagem de Trump também foi criticada por sua falta de consistência e previsibilidade, o que levou a incertezas e tensões no cenário internacional. Sua política de “tweet first, think later” muitas vezes gerou confusão e desconfiança entre aliados e parceiros dos EUA.

Por outro lado, a presidência de Biden trouxe uma mudança significativa na abordagem geopolítica dos Estados Unidos. Biden adotou uma postura mais tradicional, buscando restaurar alianças e compromissos multilaterais que foram enfraquecidos durante a administração Trump. Sua ênfase na diplomacia e no engajamento internacional reflete uma visão mais cooperativa e inclusiva da liderança americana.

Em termos de aplicação das teorias geopolíticas, a administração Biden parece estar retornando a uma abordagem mais alinhada com os princípios de Spykman, com uma ênfase renovada nas alianças e parcerias no Rimland e além. A ênfase na “diplomacia climática” e no fortalecimento das instituições internacionais reflete um reconhecimento da interdependência global e da necessidade de cooperação para enfrentar desafios transnacionais, como as mudanças climáticas e a pandemia de Covid-19.

Além disso, Biden tem adotado uma postura mais assertiva em relação a países como China e Rússia, buscando competir de forma mais estruturada e coordenada, em vez de adotar uma abordagem puramente confrontacional. Isso inclui esforços para construir coalizões de apoio e pressionar por normas e padrões internacionais em áreas como comércio, direitos humanos e segurança cibernética.

No entanto, a administração Biden também enfrenta desafios significativos, incluindo a necessidade de equilibrar as demandas domésticas e externas, lidar com uma China cada vez mais assertiva e lidar com as consequências da retirada americana do Afeganistão. Além disso, a polarização política interna nos EUA e a erosão da confiança nas instituições americanas representam obstáculos para a eficácia da política externa de Biden.

Em suma, as diferenças na geopolítica dos Estados Unidos entre as administrações de Trump e Biden refletem diferentes interpretações das teorias de Mackinder e Spykman, bem como diferentes visões sobre o papel dos EUA no mundo.

Ucrânia e Israel na pauta

À medida que as eleições de novembro se aproximam, a influência da abordagem geopolítica na escolha dos candidatos nos Estados Unidos se torna cada vez mais evidente. Os eventos geopolíticos recentes, como a guerra na Ucrânia iniciada em 2022 e o conflito Israel-Palestina acirrado em outubro último, têm desempenhado um papel significativo no debate político, moldando as perspectivas dos eleitores em relação aos candidatos.

O cenário global, marcado por desafios complexos e ameaças crescentes, tem sido central nas discussões eleitorais. Os candidatos, cada um à sua maneira, apresentam visões distintas sobre como os Estados Unidos devem se posicionar no palco internacional.

Em relação à guerra na Ucrânia, que teve início em 2022, a postura dos candidatos em relação à Rússia e à resposta americana ao conflito tem sido um ponto crítico de debate. Enquanto um candidato pode advogar por uma abordagem mais assertiva, incluindo sanções mais rigorosas e um apoio militar mais substancial às forças ucranianas, o outro pode preferir uma abordagem mais diplomática, buscando um equilíbrio entre a defesa dos interesses americanos e a manutenção de canais de comunicação abertos com Moscou.

O conflito Israel-Palestina, historicamente uma questão sensível, também desempenha um papel crucial nas eleições. O desgaste político de apoiar Israel sem questionamentos têm sido objeto de críticas ao governo Biden, especialmente em meio a eventos recentes que levantaram preocupações sobre os direitos humanos. Os eleitores avaliam como os candidatos abordam a questão, considerando a necessidade de equilibrar o apoio a um aliado estratégico com a promoção dos valores democráticos e dos direitos humanos.

Um balanço crítico dos dois candidatos em relação à geopolítica revela nuances em suas abordagens. Enquanto Trump enfatiza a importância de uma liderança forte e unilateral, buscando proteger os interesses americanos a qualquer custo, Biden prioriza a diplomacia multilateral, fortalecendo alianças e instituições internacionais para enfrentar desafios comuns.

Além disso, é crucial avaliar como os candidatos abordam as complexidades das relações internacionais, especialmente em um mundo interconectado. Questões como mudanças climáticas, segurança cibernética e pandemias transcendem fronteiras e exigem abordagens colaborativas.

Em última análise, a influência da abordagem geopolítica nas eleições de novembro reflete a necessidade de os candidatos apresentarem estratégias claras e viáveis para lidar com os desafios globais. Os eleitores, cientes da interconexão entre eventos globais e o bem-estar dos Estados Unidos, buscam líderes capazes de equilibrar interesses nacionais e responsabilidades internacionais. O desfecho eleitoral dependerá, em grande parte, da capacidade dos candidatos de articular visões de geopolítica que ressoem com as preocupações e aspirações do eleitorado.


Bruno Fabricio Alcebino da Silva – Bacharel em Ciências e Humanidades e graduando em Ciências Econômicas e Relações Internacionais pela Universidade Federal do ABC (UFABC). Pesquisador do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB).

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