Observatorio de Geopolitica
O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.
[email protected]

Os estertores da Pax Americana: A guerra de duas potências na Ucrânia, por Gilberto Lopes

Reflexões sobre as formas de paz, incluindo as relações da Europa com a Rússia, começam a aparecer, ainda que de forma incipiente.

do Observatório de Geopolítica

Os estertores da Pax Americana: A guerra de duas potências na Ucrânia

por Gilberto Lopes

Esta não é uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia, mas uma guerra em solo ucraniano entre duas potências nucleares, que consideram defender interesses estratégicos essenciais. Essa é a opinião do destacado e veterano diplomata brasileiro, Jorio Dauster, hoje consultor de empresas.

Ou, nas palavras de Luis Cebrián, ex-diretor do jornal espanhol El País, não é uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia, mas uma guerra de correspondência entre a OTAN e a Rússia. Uma guerra da qual ninguém pode sair como perdedor absoluto “se aspirarmos a uma paz duradoura na Europa”, ou para evitar a eclosão de uma terceira guerra mundial.

Para Dauster, o que estamos vendo “é a trágica evolução de um conflito de poder que pouco ou nada tem a ver com o gozo da democracia pelo povo ucraniano”. O que se trata é a impossibilidade da Rússia aceitar a expansão da OTAN até o seu ventre. Nenhum russo – lembra ele – esquece que Napoleão e Hitler chegaram a Moscou atravessando as vastas planícies ucranianas.

Cebrián, em artigo publicado no El País em 13 de agosto, pede para analisar não só as causas próximas dessa guerra, mas também as distantes. Ele cita o patrocínio de Washington ao golpe na Ucrânia em 2014; a invasão russa da Crimeia e a eleição de Jens Stoltenberg como secretário-geral da OTAN, “que tem levado a cabo uma política oportunista de declarações de cooperação com a Rússia e de destacamento de forças nos países da Europa central”.

A consequência imediata desta guerra, disse Cebrián, foi a absorção da União Européia por uma aliança militar.

O que está em jogo

O que estamos vendo na Ucrânia – resumiu Dauster – “é uma tentativa dos Estados Unidos, usando a OTAN como reserva de manobra, de adiar sua gradual perda de poder hegemônico, ameaçado pela impetuosa ascensão da China”.

Os Estados Unidos estavam determinados a impedir que a Alemanha e grande parte da Europa se tornassem uma “colônia energética” da Rússia. Isso explica a destruição dos gasodutos Nord Stream 1 e 2, que abasteciam a Alemanha com gás russo barato, em ataques cujos autores permaneceram em uma sombra bem iluminada.

Milhões de dólares

A isso se soma o pedido de Biden ao Congresso, em 10 de agosto, para gastos emergenciais de mais 40 bilhões, dos quais 24 são para a Ucrânia, incluindo 9,5 bilhões para reabastecer munições para a artilharia ucraniana e outros equipamentos e 3,6 bilhões para apoio militar e de inteligência . Um pacote para atender às necessidades dessa guerra durante o próximo trimestre fiscal dos EUA, que começa em outubro.

O orçamento solicitado por Biden também inclui 12 bilhões para repor as reservas para desastres naturais, após o incêndio que destruiu uma ilha no Havaí.

Mas não são apenas os Estados Unidos. A Alemanha anunciou em meados de agosto que fornecerá ajuda militar anual de US$ 5,5 bilhões à Ucrânia nos próximos três anos.

Várias comparações podem ser usadas para medir essas despesas. Talvez seja útil, por exemplo, fazê-lo com a cifra de 33,2 bilhões que o banco de desenvolvimento dos BRICS administra (a coalizão que agrupa Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, em cuja capital se reunirão em setembro) para infraestrutura e projetos de desenvolvimento sustentável. Quando foi criado, em 2015, o banco estabeleceu um fundo de reserva contingente de 100 bilhões de dólares para enfrentar eventuais problemas de balanço de pagamentos nos países membros.

Os estertores da Pax Americana

Para Dauster, estamos assistindo, “em tempo real, à agonia da Pax Americana”, estabelecida com o objetivo do socialismo no Leste Europeu e na própria União Soviética.

Se Dauster estiver certo (e me parece que sim), existem dois cenários a serem observados se quisermos entender o estado de um jogo – como o xadrez – que está em seu meio-jogo.

Uma, mais imediata, é o desenvolvimento da guerra, cenário do conflito. A outra requer luzes mais longas e um olhar para horizontes diferentes, aos quais teremos que voltar em outro artigo.

Quanto ao desenrolar da guerra, não há outro recurso senão recorrer à abundante e diversa informação pública disponível.

Samuel Charap, cientista político sênior da Rand Co., deu o título a um artigo controverso, publicado na revista Foreign Affairs em 5 de junho, “Uma guerra invencível”. A ideia de uma guerra “invencível” não agrada aos governantes ou aliados da Ucrânia. A própria Relações Exteriores promoveu uma discussão em torno da proposta de Charap e nos indicou três textos que poderiam servir de pano de fundo para o debate.

Uma delas, publicada em outubro do ano passado, foi a de Andriy Zagorodnyuk, ministro da Defesa da Ucrânia entre 2019 e 2020, onde apontou o caminho para a vitória de seu país. Para vencer – afirmou – “a Ucrânia não precisa de um milagre; só precisa que o Ocidente aumente o fornecimento de armamento sofisticado”. Ficou claro para ele, um Putin desesperado, que estava perdendo no campo de batalha, que não poderia vencer a Ucrânia e que não tinha chance contra a OTAN. E acrescentou que só a derrota da Rússia poderia pôr fim às crescentes ambições de Putin que, em caso de vitória, se espalhariam pela Europa, para além da Ucrânia.

Uma visão que Steven Myers, um veterano da Força Aérea dos EUA e membro do Comitê Consultivo de Política Econômica Internacional do Departamento de Estado por dois governos, não compartilha. Falando ao USA Today em julho passado, Myers afirmou que as táticas militares russas eram “absolutamente inconsistentes” com a conquista da Ucrânia e de outros territórios. Em sua opinião, “a agenda era, é e sempre será manter a Ucrânia fora da OTAN a qualquer custo”.

Com farol alto

Talvez valha a pena dar uma olhada um pouco mais atrás. Andrei V. Kozyrev, chanceler russo entre outubro de 1990 e janeiro de 1996, durante o governo de Boris Yeltsin, hoje residente nos Estados Unidos, forte crítico de Putin, previu uma mudança de regime na Rússia, em artigo publicado no New York Times em 20 de julho de 2015. Um ano antes, após o golpe na Ucrânia, a Rússia anexou a Crimeia, após um referendo de grande maioria a favor da mudança.

Kozyrev analisou a situação e concluiu que “a mudança de regime na Rússia é inevitável, talvez iminente”. O governo russo – acrescentou – “é simplesmente incompatível com as reformas necessárias para um desenvolvimento econômico sustentável, que requer liberalização e competitividade”. Dito isso em julho de 2015!

Oito anos depois, em julho de 2023, o Foreign Affairs voltou a colocar em discussão se a Ucrânia deveria ou não negociar com a Rússia. “O debate sobre como acabar com a guerra” era o subtítulo do texto.

Aliba Polyakova, presidente do Centro de Análise de Política Europeia, e Daniel Fried, ex-embaixador dos EUA na Polônia, defenderam a ideia de que “a Ucrânia deve buscar a vitória, não o compromisso”.

Se o objetivo é impedir que a Rússia ameace as democracias em todo o mundo, diria Dmytro Nattalukha, presidente do Comitê de Assuntos Econômicos do parlamento ucraniano, conseguir um armistício na Ucrânia não ajudaria muito. O objetivo seria conseguir uma Rússia menos antiocidental e, por isso, “Putin não pode continuar no poder”.

Um cessar-fogo nas condições atuais significaria “vitória para a Rússia e um triunfo pessoal para Putin”, disse Mikhail Podoliak, conselheiro de Zelensky, logo após a “conferência de paz” realizada no início de agosto na Arábia Saudita.

Apenas alguns dias depois, Stian Jenssen, chefe de gabinete do secretário-geral da OTAN, Jens Stoltemberg, disse em um fórum na cidade norueguesa de Arendal que uma possibilidade de encerrar o conflito seria a Ucrânia concordar em ceder território à Rússia, mudar para se juntar à OTAN. . A proposta foi rejeitada pela Ucrânia. O próprio Podoliak descreveu isso como “ridículo”, obrigando Jenssen a explicar o que foi dito.

Podoliak teve que entrar novamente no debate, rejeitando uma proposta do ex-presidente francês Nicolas Sarkozy de realizar referendos “sob estrito controle internacional” nas quatro regiões reivindicadas pela Rússia e na Crimeia, como fórmula para resolver o conflito.

Podoliakk os descreveu como “fantásticos” e “criminosos” e reiterou que a única maneira de acabar com o conflito é com a derrota da Rússia.

Uma visão semelhante à de Lawrence Freedman, professor emérito de estudos de guerra, no King’s College London. Para Freedman, Putin está ficando sem opções na Ucrânia, onde em todos os cenários – militar, econômico e diplomático – os resultados são negativos para Moscou.

Uma vitória russa “seria uma catástrofe” para a OTAN, diz Freedman, que acredita que seria melhor se ela fosse expulsa da Ucrânia e seus militares rebaixados no processo.

Mas as avaliações ainda muito otimistas sobre as chances da Ucrânia publicadas até junho ou julho têm enfrentado uma realidade diferente.

Para o presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko, um aliado próximo de Moscou, os objetivos da “operação militar especial” russa já foram alcançados. Quando esta guerra acabar, a Ucrânia nunca mais será tão agressiva contra a Rússia como antes, será diferente, estimou. Ele acrescentou: “A Ucrânia precisa parar a guerra e começar a reconstruir seu estado em uma base mais saudável, antes que deixe completamente de existir.”

É o mesmo tom de Moscou, que propôs aos militares ucranianos, na última sexta-feira, 18 de agosto, derrubar o regime de Kiev ou depor as armas.

Um acordo negociado?

Não há dúvida de que a Ucrânia enfrenta uma ameaça existencial, de acordo com John Mearsheimer, professor de ciência política da Universidade de Chicago e um dos “mais famosos críticos da política externa dos EUA desde o fim da Guerra Fria”, segundo a revista The Atlantic.

Mearsheimer não acredita em um acordo negociado. Cada lado vê o outro como uma ameaça existencial, a ser derrotada no campo de batalha. Nessas condições, há pouco espaço para acordos. “Os russos vão conquistar mais de 23% do território ucraniano que já conquistaram”, o que deixará a Ucrânia um estado disfuncional, incapaz de travar uma grande guerra contra a Rússia. “A melhor solução, por enquanto, é um conflito congelado”, estimou.

Mas Podoliak se perguntou: – por que propor congelar o conflito, como quer a Rússia, em vez de acelerar o fornecimento de armas para a Ucrânia?

Neste ponto, não parece uma opção capaz de mudar o rumo da guerra. Nas linhas de frente, em meados de agosto, a avaliação de Moscou era de que os esforços militares da Ucrânia para romper suas linhas haviam falhado. Segundo o Ministério da Defesa da Rússia, desde junho o exército ucraniano perdeu mais de 43.000 homens e cerca de 5.000 equipamentos pesados, incluindo dezenas de tanques ocidentais, americanos e alemães.

Reflexões sobre as formas de paz, incluindo as relações da Europa com a Rússia, começam a aparecer, ainda que de forma incipiente. Mas, sobretudo, seus efeitos em um cenário internacional como o percebido por Dauster, com os Estados Unidos tentando adiar sua gradativa perda de poder hegemônico, com o mundo assistindo aos estertores da Pax Americana, instaurada com o fim do socialismo neste europeu e da mesma União Soviética.

Nesse cenário, construir a paz exigirá mais sabedoria do que decidir ir à guerra.

Gilberto Lopes – Jornalista (Rio de Janeiro, 1948), com um mestrado em Ciências Políticas e um doutorado em Estudos da Sociedade e da Cultura, Universidad de Costa Rica. Seu livro mais recente é Crisis Política del Mundo Moderno (Uruk ed. CR)

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Observatorio de Geopolitica

O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador