Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
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Governo Lula: governança sistêmica para o bem estar social, por Ion de Andrade

É preciso ter projetos estruturantes que ao serem construídos consubstanciem uma nova ordem e produzam a necessidade de uma nova coerência.

Governo Lula: governança sistêmica para o bem estar social, por Ion de Andrade

A maior diferença entre uma lanterna e uma lâmpada é que a essa última ilumina tudo e permite que esse universo iluminado seja conhecido como um todo e não em partes.

A gestão pública no Brasil é extremamente fragmentada, de tal forma que, em geral quando se fala de moradia pouco se fala de equipamentos coletivos para a Cultura, o Esporte e o Lazer, (isto está mudando), quando se fala de Saúde, o bem estar social que é parte do seu conceito, desde 1948, está fora do escopo da governabilidade do SUS, quando se fala da questão indígena esquecemos do direito dos índios à contemporaneidade e ao futuro enquanto um vir a ser, mas tendemos a considerar, no melhor caso, o direito ao passado e à ancestralidade…

A gestão pública no Brasil, quando opera em favor do povo, como agora, mais se parece, portanto, guiada por um conjunto de lanternas, cada uma focada na sua área de interesse do que com uma luminária.

Mas o desenvolvimento é, imperativamente, um processo sistêmico, centrado na tentativa de resposta às aspirações e necessidades dos cidadãos (múltiplas por natureza) e, ou é um fenômeno multidimensional e coordenado ou não existe. Decifra-me ou te devoro.

Ora o bem estar social contido no conceito de Saúde utilizado pelo SUS, seria estruturante para a sociedade como um todo, mas as suas alavancas estão hoje muito mais nas mãos, por exemplo, do Ministério das Cidades, no da Cultura, ou no do Esporte, áreas que, no entanto, não têm no bem estar social um norte conceitual e pouco dialogam entre si. Elas estão, pois, cada uma concentrada na sua práxis complexa a partir da qual a fragmentação não é enxergada e jamais poderão enxergar-se como parte desse todo, pois as áreas circunvizinhas são percebidas como distantes.

Se tomarmos a questão indígena como exemplo, o desenho a ser buscado é o da conexão entre uma dada etnia e a contemporaneidade na construção de um futuro em que memória, ancestralidade estejam imbricados de forma definitiva. Alguns povos (originários nos seus territórios) conseguiram isso; os japoneses, os do norte da Europa, os etíopes com a sua Igreja ortodoxa e sua língua original e alguns outros. Esses povos conseguiram conciliar uma identidade ancestral com uma contemporaneidade e com uma noção de futuro e aquilo em que inovam não agride ou destrói a sua identidade, ao contrário age para fortalecê-la e a rejuvenescê-la. Por essa ótica, cada etnia no Brasil abre uma oportunidade semelhante de futuro.

Tudo isso é complexo demais para o exercício de um Poder fragmentado como o que se exerce no Brasil no qual quem cuida de uma coisa não cuida da outra.

A saída do mal estar de sociedade em que estamos, no entanto, vai exigir respostas sistêmica que conciliem, por exemplo, o direito à cidade a índios, quilombolas, periféricos e população rural. Um bem estar social entendido como direito difuso e, para os nossos povos originários, que signifique ao mesmo tempo a ancestralidade e o futuro (vir a ser) reconciliados.

Como construir isso?

É preciso ter projetos estruturantes que ao serem construídos consubstanciem uma nova ordem e produzam a necessidade de uma nova coerência.

O bem estar social é um desses projetos estruturantes no qual a diversidade multidimensional originada da complexidade vai sendo parte orgânica de um todo onde as questões ambientais e as sociais, por exemplo, vão encontrando respostas integradas numa nova totalidade.

O processo, obrigatoriamente participativo, à medida que avança vai “se” descobrindo, pelo fato de que, sendo aberto será fonte permanente de novas respostas, que por sua vez podem influenciar o projeto em sua globalidade. A busca desse bem estar social pode ensejar, portanto, uma práxis complexa que só poderá ser construída numa espécie de mutirão nacional.

Ousamos acreditar que vemos uma ponta desse novelo.

O bem estar social é o andar de cima das lutas de uma cidadania cuja rudeza da exclusão social no Brasil obrigou a garantir, em primeiro lugar, o andar de baixo, fundamental, obviamente, da sobrevivência.

Portanto, em primeiro lugar o projeto sistêmico para o bem estar e a emancipação social, capaz de projetar o Brasil num outro patamar de desenvolvimento, de forma a incluir, numa mesma lógica sistêmica a problemática dos povos originários e os das periferias brasileiras,  para ser compreendido e depois materializado, deve ser percebido como a resposta ao conjunto de necessidades que estão para além da sobrevivência. Os desafios da sobrevivência deverão, obviamente, ser enfrentados e resolvidos, mas esse processo tem uma importância tática prévia ou concomitante, para a execução da etapa seguinte que é a do bem estar social.

Para exemplificar, o enfrentamento da mortalidade infantil e da fome entre os Yanomami, cruciais para a sobrevivência daquele povo, não está no escopo desse projeto sistêmico para o bem estar social, pois isso é “cronologicamente” prévio a ele. No caso do bem estar social, o propósito é a garantia de um processo no qual a memória e a ancestralidade dos Yanomami alimentem um projeto autêntico de acesso deles à contemporaneidade e de futuro guiado por eles. A presença do Estado deve ser a do apoio material e orçamentário para a materialização desse projeto emancipatório que emerge de uma comunidade que, sim, obviamente, deverá ter superado, como premissa, os desafios da sobrevivência.

Portanto estamos falando de um processo no qual o ator comunidade dialoga com um Estado que entendeu o seu papel e materializa um projeto de desenvolvimento local, com equipamentos coletivos e políticas locais cujo produto é o bem estar e a emancipação social original de uma dada comunidade num dado território.

Entre os Yanomami aquilo que no futuro será provavelmente conhecido como genocídio, ocorrido no governo Bolsonaro, foi precedido de dificuldades que sob nenhuma hipótese podem continuar e que remetem tanto aos desafios da sobrevivência quanto aos da emancipação definitiva daquele povo.

Essas dificuldades encontram identidade com a omissão do Estado no conjunto das periferias e zonas rurais do Brasil, fato, aliás, que permitirá diferenciar o genocídio das injustiças sociais crônicas, “corriqueiras” e até aqui sem remédio no Brasil.

O genocídio, de fato, rompeu o “pacto macabro pela sobrevivência” que constitui a maneira pela qual o povo é mantido vivo e pronto para o mercado de trabalho em toda parte por um Estado que é a Casa Grande eterna. Por esse pacto o brasileiro não morre, nem vive, apenas sobrevive. Foi esse “equilíbrio” que foi rompido e pode fundamentar a comprovação do genocídio.

Os Yanomami oferecem ao governo Lula uma extraordinária oportunidade de construir ali o projeto de desenvolvimento sistêmico e emancipatório de um povo originário no seu território, ouvindo-alo e levando adiante as suas ideias.

Imagino que não almejem apenas a ter soro antiofídico nas prateleiras das enfermarias longínquas, mas venham a querer uma rede de comunicação que integre as aldeias, sua língua ensinada em escolas decentes e modernas, talvez um museu etnográfico. São ELES que têm que dizer.

Nas periferias dá-se o mesmo. Falamos de água, luz e saneamento mas os desafios estratégicos são a inclusão social e o direito à cidade que materializam o bem estar social e o acesso à contemporaneidade. Sem querer ser categórico, pois o modelo de desenvolvimento é aberto, parte e é guiado pela consulta às comunidades, o grosso dessa demanda, para além da sobrevivência, passa pelo acesso a equipamentos coletivos e políticas para a Cultura, o Esporte, o Lazer e o acolhimento dos vulneráveis. Essa nova rede de equipamentos e políticas (clique aqui para conhecer) tem potencial para produzir cidadania a cento por um e produzirá, portanto, o protagonista cidadão cuja ação na sociedade fará o lastro político futuro para a continuidade da implantação desse projeto sistêmico em condições melhores e para a estabilidade da democracia.

Temos dinheiro para isso? Sim! Antes não tivéssemos…

O Sistema Único de Saúde mostra o caminho através do seu processo de territorialização que permite a implantação das Redes Assistenciais de forma capilarizada e em alguns casos com acesso universal, por exemplo à Atenção Básica sob orçamentos sustentáveis.

Uma equipe da Estratégia Saúde da Família, por exemplo, que cobre uma população de três a quatro mil pessoas, é dotada de um médico, uma enfermeira, um dentista, duas técnicas de enfermagem e cinco agentes de saúde. Está ambientada numa Unidade de Saúde que conta ainda com o pessoal administrativo e de serviços gerais. Além da remuneração dos profissionais, os custos dessa célula da Atenção Básica, envolvem ainda os insumos, medicamentos e material médico-hospitalar, além da logística da referência e da contra referência. Tais custos, elevados fazem parte da paisagem do Sistema Único de Saúde e foram convertidos, como manda a lei, em direito de todos e dever do Estado.

Se utilizarmos, para materializar as células do bem estar social e do direito à cidade, territórios cinco vezes maiores do que os da Estratégia Saúde da Família, dotados de 20.000 habitantes (cinco vezes maiores que as áreas das equipes de Saúde da Família) situados no terço mais vulnerável da nossa população e se investirmos 2,5 milhões de reais por ano (o suficiente para a construção de um equipamento coletivo com cerca de 1.000 metros quadrados, que temos utilizado como unidade de medida) chegaremos ao seguinte custo no orçamento geral da União:

  1. Brasil: 210 milhões de habitantes
  2. Terço mais vulnerável: 70 milhões de habitantes
  3. Territórios com 20.000 habitantes em 70 milhões de habitantes: 3.500 territórios com 20.000 habitantes
  4. Investimento anual por território (liquidez para decisão executiva da comunidade): 2,5 milhões de reais por ano (A unidade de medida equivale a um bom equipamento coletivo com 1.000 metros quadrados ou outra benfeitoria ou política definida pela comunidade)
  5. Investimento anual global em todas os 3.500 territórios: 8,7 bilhões de reais.
  6. Orçamento Geral da União: 5,0 trilhões de reais com a dívida pública (que pode financiar essas obras públicas)
  7. Ou: 2,4 trilhões de orçamento executável (excluída a dívida pública)
  8. Isso representa valor que oscila entre 0,2 e 0,4% do Orçamento da União a cada ano!

No caso dos Yanomami, com seus 30.000 habitantes, o financiamento desse projeto de virada, conforme a proposta, lhes daria uma liquidez anual de 2,5 milhões para os primeiros 20.000 habitantes e 1,25 milhões para os restantes 10.000 habitantes perfazendo 3,75 milhões de reais de liquidez por ano para a comunidade construir o seu projeto emancipatório.

A dinâmica anual da oferta do financiamento proposta se assemelha ao tratamento de uma doença infecciosa que não irá embora após a primeira dose do tratamento e visa o projeto estratégico em que a comunidade construirá, ao longo do tempo e com o apoio público um projeto (orçamentariamente sustentável) em que a sua ancestralidade dialogue com as suas aspirações de futuro.

Válido para eles, válido para o restante da população brasileira que vive nas cidades e no campo uma exclusão social em tudo comparável a deles.

A construção desse projeto é complexa, mas por ela vamos desatando o nó que nos prende ao atraso e desenrolando o novelo do desenvolvimento sistêmico no Brasil no seu aspecto qualitativo mais estratégico: o que produzirá cidadania a cento por um, estabilizará a democracia e permitirá que essa roda continue rodando.

Ion de Andrade é médico epidemiologista e professor e pesquisador da Escolas de Saúde Pública do RN, é membro da coordenação nacional do Br Cidades e da executiva nacional da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela democracia

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. A publicação do artigo dependerá de aprovação da redação GGN.

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

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