O retorno do debate sobre uma reforma administrativa, por Rodrigo Medeiros e Luiz Henrique Faria

Uma reforma administrativa eficaz deveria buscar parceria com servidores públicos, sem exceções. Por Rodrigo Medeiros e Luiz Henrique Faria

Foto: Arquivo/Divulgação

O retorno do debate sobre uma reforma administrativa

por Rodrigo Medeiros e Luiz Henrique Faria

Acreditamos ser possível dizer que o ano político começou a partir do evento do dia 8 de janeiro, quando houve a celebração da resistência contra a tentativa de insurreição da extrema direita brasileira. O evento em questão buscou reafirmar valores democráticos em um país que possui uma das maiores concentrações de riquezas no topo. Ausências em Brasília foram destacadas pela imprensa então, como, por exemplo, a do presidente da Câmara dos Deputados, o deputado Arthur Lira (PP-AL).

Colunista do portal UOL, Jamil Chade recordou pouco antes, no dia 6 de janeiro, que “em julho de 2022, uma reunião entre os chefes da pasta de Defesa do Brasil e dos EUA sinalizou aos militares em Brasília que eles não teriam o respaldo de Washington, caso optassem por uma aventura golpista”. Não dependeu, pelo jeito, exclusivamente da “força” e das convicções das nossas instituições a manutenção da democracia brasileira.

A base de dados World Inequality revela a extrema desigualdade estrutural brasileira, pois o 1% mais abastado concentra 49% da riqueza nacional. Dificilmente se pode alegar que esse seria o justo retrato da meritocracia em um território que conviveu com quase quatro séculos de escravidão e ciclos extrativistas predatórios. “Moinhos de gastar gente” para exportar commodities, escreveu Darcy Ribeiro sobre a formação do Brasil desde os tempos coloniais. Portanto, sabemos bem o que é sermos organizados pelos mercados mundiais.

De acordo com a imprensa, o tema da reforma administrativa retornou ao palco da agenda política em 2024. O texto do governo anterior, expresso pela PEC 32/2020, é defendido pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e é percebido como de interesse dos empresários brasileiros. Para o Ministério da Fazenda, conforme consta na imprensa, a proposta fortalece os militares e os altos cargos e penaliza o servidor comum. Militares das Forças Armadas, entre outras “carreiras típicas” de Estado, foram excluídos da proposta em questão. O candidato Lula (PT) se manifestou publicamente contrário a essa proposta em 2022.

Em artigo de opinião publicado no GGN, em 8 de setembro de 2020, argumentamos que o reformismo regressivo brasileiro, desde 2016, buscava blindar as carreiras típicas de Estado que interpretem leis, processem e julguem, ou que tenham a capacidade de reprimir movimentos sociais a partir do uso da força física. Guardadas as devidas proporções e distâncias históricas, esse foi o caminho chileno sob a ditadura do general Pinochet e que teve como consequência o agravamento da pobreza e das desigualdades sociais naquele país.

Citamos então a Nota Técnica 45, de autoria de Alessandro Casalecchi, da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado Federal, cujo título é “Aspectos fiscais da Estratégia Nacional de Defesa”. A nota em questão discute o custo fiscal de chegarmos a ter 2% do PIB aplicados em defesa nacional. Para o Brasil, as despesas de pessoal somaram 74% das despesas do Ministério da Defesa em 2019, destoando para cima do quadro geral nesses gastos em relação aos países pertencentes à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Em síntese, o Brasil, na comparação com os países que integram a Otan, estava na segunda posição entre as nações que, proporcionalmente, mais gastam com salários e pensões para militares.

Recentemente, no dia 16 de janeiro, em sua edição digital, a Folha de S.Paulo publicou que “as Forças Armadas gastaram 85% de seu orçamento de 2023 com o pagamento de pessoal, impulsionada pelas despesas crescentes com militares da ativa, inativos e pensionistas”. Segundo a matéria assinada por Cézar Feitoza, “o perfil gastador com salários e benefícios para um grande número de militares e familiares distancia o Brasil de sua meta de modernização orçamentária, que usa a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) como modelo”. Dados públicos do Portal da Transparência revelam um quadro merecedor de um forte ajuste em termos de redução de gastos com pessoal nas Forças Armadas, além do necessário estabelecimento do teto para os supersalários das carreiras jurídicas. A figura abaixo foi publicada na matéria da Folha.

Qual é a razão do silêncio do liberalismo regressivo brasileiro quanto aos elevados gastos com pessoal das “carreiras típicas” de Estado? Do modernismo reacionário não é possível esperar muito mesmo. Há grandes interesses econômicos nas áreas de educação, saúde e previdência, por exemplo e, ademais, são as carreiras típicas que, em última instância, garantem a preservação do status quo. Um país maravilhoso para poucos, para algumas “castas”? Ainda segundo a matéria da Folha, “as Forças Armadas gastaram quatro vezes mais com o pagamento de pensão militar (R$ 25,7 bilhões) do que com investimentos”. Estado de bem-estar para poucos e de mal-estar para muitos?

A Nota Técnica 69, de 19 de maio de 2021, da Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado Federal, trouxe algumas análises relevantes sobre a PEC 32/2020. O documento apresentou os impactos fiscais identificados. Segundo consta no documento, “o primeiro impacto fiscal que vislumbramos com a aprovação da PEC 32/2020 é o aumento da corrupção na administração pública”. São citadas a eliminação das restrições atualmente existentes à ocupação de cargos em comissão e funções de confiança, além de novas possibilidades para os contratos de gestão.

O documento abordou ainda a captura do Estado por interesses privados, que, no entender da nota técnica, será facilitada pela aprovação da PEC 32/2020. A ampliação da contratação de pessoal sem concurso público é citada. Como é de conhecimento público, o clientelismo e o patrimonialismo são velhas práticas políticas no Brasil para garantir as governabilidades e a permanência de grupos políticos no poder. Segundo a nota técnica, “a PEC 32/2020, assim, permitirá um nível inédito de aparelhamento”. A proposta de limitação do instituto da estabilidade no cargo público também é outro fator que fragiliza o serviço público. Ela impactará na fragilização e na redução da resistência da burocracia profissional em se opor a ordens que visem a satisfação de interesses privados de grupos políticos e econômicos.

O piso da estimativa da nota técnica é que a aprovação da PEC 32/2020 poderá gerar um dano anual aos cofres públicos da ordem de R$ 115 bilhões pela captura do Estado por interesses privados. Destaca-se no documento que “o risco central é a desestruturação dos órgãos públicos, que se tornariam muito mais vulneráveis à interferência política, pois sua força de trabalho poderia ser em grande parte substituída a cada ciclo eleitoral”. Como síntese, a nota técnica apontou que “estimamos que a PEC 32/2020, de forma agregada, deverá piorar a situação fiscal da União, seja por aumento de despesas ou por redução de receitas”. Há também a perspectiva de efeitos que aumentam as despesas dos governos subnacionais no documento.

Uma reforma administrativa eficaz deveria seguir a lógica de buscar, em parceria com os servidores públicos, sem exceções para as “carreiras típicas”, entregar mais e melhores serviços para a cidadania, a partir do mapeamento e da redução dos desperdícios nos seus processos, estimulando a profissionalização contínua e o maior controle social na prestação desses serviços. A onda da transformação digital, por sua vez, é bem promissora em termos de ganhos de produtividade e eficiência para a administração pública, para as atividades-meio e fins. Afinal, queremos a calcificação de um Estado de bem-estar para poucos?

Rodrigo Medeiros e Luiz Henrique Faria são professores do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes)

Rodrigo Medeiros

1 Comentário

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  1. Politicas publicas saude, educacao, assistencia social sao oferecidas pelas prefeituras e todos servidores deste nivel de assistencia serao destruidos com pec32. Fim dos concursos.Causa assombro q tal proposta ainda esteja na pauta.Avançar sobre orçamentos públicos, privatiza-los. É disso q se trata. Exceções? Claro: MP, judiciário e militares.

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