Cracolândia: resumir solução à segurança pública aprofunda o problema, que é humanitário

Ana Gabriela Sales
Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.
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O GGN conversa com especialistas sobre as iniciativas políticas repetidamente frustradas na tentativa de eliminar fluxo de usuários de drogas no centro de SP

Foto: Lilian Milena/Direitos reservados

Na última campanha da corrida pelo governo de São Paulo, uma promessa ambiciosa foi feita à população: “a Cracolândia vai acabar!”. Logo, ao assumir o governo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) se reuniu com o prefeito Ricardo Nunes (MDB) para cumprir a sua jura sobre o chamado “fluxo” de usuários de drogas que sobrevivem há três décadas no Centro da capital.

A promessa, apesar de ambiciosa, é conhecida por sua falácia. Não foi a primeira vez e não deve ser a última que um político diz que irá exterminar o limbo a céu aberto. Em 2008, o então prefeito da cidade, Gilberto Kassab, garantiu: “A Cracolândia não existe mais”. Quase dez anos depois, em 2017, o prefeito João Doria (PSDB/MDB), não hesitou em anunciar: “A Cracolândia acabou!”.

Em suma, as iniciativas estaduais e municipais têm a força policial e a revitalização urbana como pilar de toda a frustração. Em 2017, Doria aprofundou o caos com sua política higienista, o que dispersou a população de usuários e consequentemente aumentou a insegurança da região. Resumindo o problema à segurança pública, a repressão, mais uma vez, foi adotada como solução.

As grandes iniciativas contra a Cracolândia começaram com as atitudes higienistas na época da Copa do Mundo e das Olimpíadas, porque queriam deixar o lugar bonito para o turista passar, além da especulação imobiliária. Ali foi a primeira vez que a Cracolândia foi espalhada“, explica o psiquiatra e pesquisador em redução de danos, Marcelo Niel, ao GGN

“Há interpretações de uma psicologia coletiva de que aquilo tem um corpus, tem uma alma, que se mantém e se restabelece. Você limpa, mas a alma continua e as pessoas voltam”, acrescenta.

(Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

A atuação de Doria foi uma resposta injusta ao programa De Braços Abertos, do prefeito Fernando Haddad, lançado em 2013, que se tornou referência mundial para iniciativas de redução de danos. Segundo dados da prefeitura, a partir do conjunto de políticas integradas, 88% dos usuários de crack da região diminuíram o uso da substância tóxica, o que levou a redução de 80% na frequência de pessoas na Cracolândia, entre 2014 e 2016.

Agora, Tarcísio promete resolver o problema com um conjunto de políticas de saúde, urbanísticas, econômicas e, claro, de segurança, com operações contra o tráfico de drogas, novas vagas de internação em comunidades terapêuticas, novas moradias, ajuda financeira para as famílias que prestem acolhimento aos usuários, além da transferência da sede do governo para o Palácio dos Campos Elíseos, a fim de revitalizar a região e atrair comerciantes. Contudo, após 10 meses do anúncio o que se vê são ações resumidas às forças de segurança para dispensar a população de usuários, com o aumento da repressão.

Para uma transformação de territórios precisamos refletir sobre como buscar as mesmas soluções para os mesmos problemas. A Cracolândia é emblemática nesse sentido, porque há anos existem soluções relacionadas à segurança pública como um eixo central da população, apesar de já se saber muito que é uma questão de saúde pública”, explica a pesquisadora Letícia Canonico, que atuou no programa De Braços Abertos.

Os estudos populacionais ou de urbanismo mostram que toda cidade no mundo tem a sua Cracolândia. Toda grande cidade, principalmente as capitais, onde tem exclusão, onde tem capitalismo, onde tem desigualdade e pobreza. Mas os projetos de urbanização mostram que não se resolve essas questões com a segurança local, com prédios comerciais ou da prefeitura, porque a revitalização não é só estética. A reabilitação é humana e precisamos pensar no cuidado dessas pessoas”, pontua Niel.

O jornalista e educador social Ricardo Carvalho, membro do coletivo Craco Resiste, vai mais a fundo e cobra um olhar humano sobre a questão. “O centro sempre teve essa questão de revitalização, mas já tem muita vida, tem muitas pessoas que têm histórias (…) O grande problema da Cracolândia, não é o crack. É a miséria, a má distribuição de recursos, a falta de planejamento, aquelas PPPs [parceria público-privada] que chegam trazendo um juízo e não agregando as pessoas do próprio território”, explica.

Não precisamos ir longe. Não precisamos ver a guerra de Israel para mostrar a crueldade humana. Temos ela aqui, cotidianamente“, completa Carvalho.

Esta é a primeira reportagem de uma série sobre a Cracolândia. Na próxima edição será abordada a solução promissora, mas ainda utópica à sociedade brasileira: a redução de danos.

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