A longa história de um massacre esquecido e nunca reconhecido por Paris

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Sugerido por Allan Patrick

A longa história de um massacre esquecido

Do Le Monde Paris, no portal VoxEurop

“Aqui afogaram os argelinos”. Quarteirão Conti, em Paris, alguns dias após o massacre de 17 de outubro de 1961

Há 50 anos, cerca de 100 a 200 argelinos que se manifestavam pacificamente em Paris foram assassinados pelas forças policiais. Ocultado durante muito tempo pelo poder, este 17 de outubro de 1961 integra progressivamente a memória coletiva.

Durante as décadas de 1970 e 1980, a lembrança de 17 de outubro de 1961 esteve envolta numa espessa mortalha. Quem se lembra ainda daquele dia de outono em que homens, mulheres e crianças que se manifestavam em família, desarmados, nas ruas de Paris, foram mortos à coronhada pela polícia, lançados vivos ao Sena, enforcados em árvores?

“Depois do século XIX, esta foi uma das raras vezes em que a polícia atirou contra operários, em Paris”, afirma o historiador Benjamin Stora. Nas semanas seguintes, dezenas de cadáveres de argelinos com rostos tumefactos foram retirados do Sena. Benjamin Stora supõe que a repressão fez uma centena de mortos, o historiador inglês Jim House pensa que, “no mínimo”, os mortos foram 120 ou 130, Jean-Luc Einaudi, autor de La Bataille de Paris [A Batalha de Paris], diz que foram mais de 150. Nesse dia, os “franceses muçulmanos da Argélia”, convocados pela federação de França da FLN, manifestaram-se contra o recolher obrigatório que lhes tinha sido imposto pelo diretor da polícia de Paris, Maurice Papon. Habitualmente confinados aos bairros de lata dos subúrbios, mais de 20 mil homens, mulheres e crianças desfilaram, então, pacificamente pelas ruas do Quartier Latin, pelas grandes avenidas e próximo dos Campos Elísios.

A violência da polícia foi inaudita: os agentes esperaram-nos nas saídas do metro e nas ruas para os espancarem e insultarem. “Aos mais fracos, aos que já estavam cheios de sangue, batiam-lhe até à morte, eu vi”, contou Saad Ouazen em 1997. Apesar de não terem oposto a mínima resistência, dezenas de manifestantes foram mortos a tiro, outros foram afogados no Sena. Ao todo, mais de onze mil argelinos foram presos e levados para o Palácio dos desportos e para o estádio Pierre-de-Coubertin. Mantidos durante vários dias em condições de higiene assustadoras, foram violentamente espancados pela polícia, que lhes chamava “porcos árabes” e “ratos”. No Palácio dos desportos, os detidos, aterrorizados, nem sequer ousavam ir à casa de banho, porque a maioria dos que ali iam era morta. Na manhã do dia seguinte, a polícia contava oficialmente três mortos – dois argelinos e um francês da metrópole. A mentira instala-se. O silêncio depressa a cobre. Perdurará por mais de 20 anos.

Uma campanha de dissimulação

Esta longa ausência, nas consciências, do massacre de 17 de outubro não surpreende Benjamin Stora. “Nessa altura havia [em França] um imenso desconhecimento daquilo a que chamamos o indígena ou o imigrante, ou seja, o outro. Quando se tem esta perceção do mundo, como é que alguém se interessa pelos imigrantes que vivem nos bairros de lata da região parisiense? Os argelinos eram os “invisíveis” da sociedade francesa. A esta indiferença de opinião junta-se, nos meses que se seguiram ao 17 de outubro, uma campanha de dissimulação lavada a cabo pelos poderes públicos. Os relatos que põem em causa a versão oficial são censurados. A amnistia que acompanha a independência da Argélia, em 1962, sela, depois, o silêncio da sociedade francesa: todas as queixas foram arquivadas. Apesar do silêncio, a memória do 17 de outubro sobrevive aqui e ali, fragmentada, explosiva, subterrânea. Continua viva, evidentemente, entre os imigrantes argelinos da região parisiense. “Esses homens conversavam entre si, mas a maior parte deles não transmitiu essa recordação dos acontecimentos aos seus filhos. Na década de 1980, sabem que os seus filhos ficarão em França e têm medo de lhes comprometer o futuro contando-lhe a violência policial a que foram submetidos”, explica o historiador inglês Jim House. Foi necessária a chegada à idade adulta desta segunda geração de imigração argelina para agitar profundamente a paisagem da memória. Estes jovens frequentaram a escola da República, são eleitores e cidadãos franceses, mas intuem que os preconceitos e os olhares desconfiados de  que são vítimas estão ligados à guerra da Argélia. Pouco a pouco, a memória desperta: na década de 1980, Jean-Luc Einaudi inicia um imenso trabalho de investigação. Quando o seu livro sai, no ano do trigésimo aniversário do 17 de outubro, provoca choque: La Bataille de Paris [A Batalha de Paris], que descreve hora a hora o desenrolar dos acontecimentos e o silêncio que se lhe seguiu, gera o debate sobre a repressão contra os argelinos.

O Estado nunca reconheceu o massacre

Com este livro e alguns outros, a memória do 17 de outubro de 1961 começa a entrar no espaço público. Dois documentários vêm, depois, alimentar a recordação do 17 de outubro: Le Silence du Fleuve [O Silêncio do Rio], de Agnès Denis e Mehdi Lallaoui, em 1991, e Une Journée Portée Disparue [Um Dia Perdido], de Philip Brooks e Alan Hayling. No entanto, as autoridades da época mantiveram a versão oficial. Depois dos historiadores e dos militantes da memória, é a justiça que entra em cena: durante o processo do antigo responsável de Vichy, em 1997, em Bordéus, os juízes debruçam-se longamente sobre o 17 de outubro de 1961. Confrontado com Jean-Luc Einaudi, o ex-diretor da polícia acaba por admitir “quinze ou vinte mortos” durante esse “infeliz dia”, mas atribui-os a ajustes de contas entre os argelinos.

Pela primeira vez, o poder faz um gesto: o primeiro-ministro, Lionel Jospin, abre os arquivos. Baseando-se unicamente no registo de entrada do instituto médico-legal – a maior parte dos arquivos da polícia e da brigada fluvial desapareceram misteriosamente –, conclui, em 1998, que houve pelo menos 32 mortos. Dois anos mais tarde, Maurice Papon decide processar Jean-Luc Einaudi por difamação. Desta vez, Papon admite que houve 30 mortos, mas o tribunal não lhe dá razão: prestando homenagem ao caráter “sério, pertinente e completo” do trabalho de Jean-Luc Einaudi, os juízes concluem que “alguns membros das forças da ordem, relativamente numerosos, agiram com violência extrema, sob o império de uma vontade de represálias”. A versão oficial do 17 de outubro está agora desfeita. Chegou o tempo da comemoração. Por altura do 40º aniversário, em 2001, o presidente do município de Paris, Bertrand Delanoë, colocou na ponte Saint-Michel uma placa “em memória dos muitos argelinos mortos durante a sangrenta repressão da manifestação pacífica de 17 de outubro de 1961”. Na região parisiense, cerca de 20 placas lembram, agora, à memória coletiva, esses dias de outono. O quebra-cabeças da memória coletiva acabou por se refazer mas, para muitos, ainda falta uma peça: o reconhecimento do Estado. [O site Mediapart, lançou, com esse intuito, a 12 de outubro, um apelo ao reconhecimento oficial da tragédia de 17 de outubro de 1961, em Paris

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

10 Comentários

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  1. Pois é. Repito minha opinião

    Pois é. Repito minha opinião de outros comentários. Esse primeiro momento é o de condenaçao desses assassinatos, dessa chacina estúpida.

    Num segundo momento franceses e muçulmanos vão ter que discutir a relação. Tenho dúvidas se procurar precedentes é o caminho. Isso não para nunca. Vai até as cruzadas; até Constantino. Isso considerando somente os livros de História. Se considerar os fatos comuns do dia a dia, então….

    Em uma rixa os dois lados têm que assumir suas reponsbilidades e reorientar suas ações.

    Coversando com um francês (na verdade, belga) que frequenta o boteco, não parece muito ser o ânimo dos franceses. Resumo a fala dele ao seguinte: o episódio serviu pra unir a França; ELES vão ter que se ajustar. Se não, não se sabe no que vai dar.

    1. Lucinei, tua observação

      Lucinei, tua observação estaria correta de algum dia qualquer império mussulmano tivesse invadido a França e matado alguns franceses.

      É como um assassino que matou uma centena de pessoas e se diga, vamos esquecer porque estes assassinatos já mataram muitas pessoas no passado e o passado deveremos esquecer.

      1. Eu entendo isso, rdmaestri.

        Eu entendo isso, rdmaestri. Mas a pergunta que eu faço é: como seguir adiante? Não chego ao ponto de afirmar que é necessário esquecer o passado, mas o presente e o futuro não podem ser desconsiderados.

        Há uma população enorme de muçulmanos que estão integrados na sociedade francesa. Alguém lembrou muito bem: o policial que também foi assassinado era um franco argelino. O que fazer com todos, mandar pra Argélia?

        1. O fato é que franceses terão

          O fato é que franceses terão que conversar e negociar com franceses. Sim, porque não se trata mais de imigrantes Argelinos mas dos seus descendentes que nasceram na França, portanto, com nacionalidade francesa.  

  2. Maurice

    Maurice Papon (Gretz-ArmainvilliersSeine-et-MarneFrança3 de Setembro de 1910 – Pontault-CombaultSeine-et-Marne17 de Fevereiro de 2007), foi um oficial do Governo Francês de Vichy, que colaborou com o Regime Nazi durante a Segunda Guerra Mundial.

    Depois da guerra, conseguiu ocultar o seu papel no Governo de Vichy e teve uma carreira de sucesso na política até a emergência de detalhes sobre o seu passado, tendo sido condenado por crimes contra a Humanidade, em 1997 e 1998.

    Era o Prefeito da Polícia de Paris durante o massacre de 1961.

  3. Charlie encore

    Lembro-me perfeitamente deste massacre mas para o mundo dito civilizado foi como se nada tivesse acontecido. “Dieu le veut” dizia Pierre l’Ermite, percorrendo os mais longinquos rincões da França para convocar os cruzados contra o Islam. Dizem que a lei do retorno é inexoravel e ela, mesmo adormecida, pode ressurgir como a fúria de um vulcão. O que ainda virá por aí só Deus sabe.

  4. Não esquecer dos marroquinos

    Não esquecer dos marroquinos decapitados por franceses porque acreditaram que tinham “liberdade de expressão” para criticar o colonialismo francês no século XIX.

  5. a história é cheia de

    a história é cheia de violencias.

    essa é arrepiante.

    são dessas ruínas escancaradas que se deve buscar o diálogo

    – impossível? -,

    as transformações do presente e do futuro. 

  6. Memória e verdade

    Caramba!

    Nunca tinha ouvido referências a esse massacre!

    Remanescentes da França colonialista, com a Guerra da Argélia, a do Vietnã, …

    Como é que a cidade que 7 anos depois explodiria em Maio pode ocultar tal barbárie? Eurocentrismo dos rebeldes de 68?

    O Mandela deu uma resposta  às dúvidas que o Lucinei nos apresenta: Comissões de Memória, Verdade e Justiça; introduziu assim um procedimento que foi utilizado por nossos vizinhos do Cone Sul e que para nós ainda não causou o impacto esperado, pela pusilanimidade de nosso aparato judicial.

    A África do Sul segue como modelo para pacificações.

    Não sei se a cultura do ressentimento arraigada principalmente na Europa Mediterrânea vai permitir a lavagem do colonislismo num momento em que o eurocentrismo fascistizante tem sua revanche no meio da crise.

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