Lembranças do 11 de setembro no Chile

 

Começo a lembrar o meu Chile de infância e adolescência. Muitas dessas memórias tinham ficado meio escondidas da minha consciência esses anos todos. São, ao todo, 42 anos de distância desde o começo dessa minha  primeira experiência como cidadã do planeta Terra – em 1969 saimos do Brasil, uma aventura de fuga, uma mãe e três crianças, rumo ao desconhecido já que o conhecido não nos permitia ficar em segurança. O Brasil estava em plena ditadura, perseguições políticas crueis que também nos atingiam. Formalmente, iamos só passar o final de ano em Bariloche, Argentina, destino chique da classe média abonada. Catulo e Titina, um casal de velhos tios avós, comunistas de cepa e muitas lutas, desconfiaram e, num momento disseram: “que boa idéia, nós vamos juntos”. Assim, saimos de São Paulo, Brasil, no 29 de dezembro de 1969, de avião, com destino a Buenos Aires, Argentina, e de lá, de ônibus, atravessamos os pampas até Bariloche onde encontramos o final de ano. Lindas paisagens, lagos, montanhas nevadas e a incerteza. Eu tinha onze anos bem vividos e sentidos – na infância, no Brasil, já tinha participado de algumas atividades clandestinas. Me lembro de reproduzir, em lapis de cera, uns posters do Che, para divulgação – eu os fazia no meu quarto, janelas fechadas, ouvidos atentos aos barulhos externos. Ninguém podia saber, e não sabiam mesmo. Vagamente me lembro também de ter ido a pontos de encontro transmitir mensagens a companheiros que estavam já na clandestinidade. O perigo era real, claro, mas uma criança chamava menos a atenção. Sempre deu certo, que bom.

Para mim, essa viagem de final de ano era uma incógnita. Minha mãe, Zillah, não nos tinha contado os verdadeiros motivos que nos levavam a viajar nessa época – eramos muito crianças mesmo: Isabel mal tinha 9 anos e Alexandre, recém cumpridos os 7. Nós também não perguntávamos nada, só iamos em frente, carregando nossas malinhas cheias de lembranças. Em Bariloche, lembro de mamãe dizer, como se fosse uma idéia maluca nova: “que tal se a gente for conhecer o Chile, é tão lindo e está tão pertinho?”. E fomos. Atravessamos a Cordilheira dos Andes, em ônibus, pela passagem que une a Argentina a Osorno. Foram 2142 km de estradas em regiões que, na época, eram bastante desertas, com pequenas “fincas” cujas entradas viamos desde a estrada principal. Não me lembro de produção agrícola nesse trajeto. Mais parecia que estavamos atravessando um deserto de pedra vermelho-rosada, com grandes “cuestas” que ficavam à direita da estrada. Paisagem impressionante de se ver à luz da lua, na noite estrelada. Inesquecível!

Atravessar os Andes, com seus despenhadeiros de pedra, com sua paisagem cinza e árida, e os picos nevados sob um céu maravilhosamente azul, também foi inesquecível. Minhas memórias desta viagem estão firmadas em cores e sensações, o entendimento da alma, sem nenhum vínculo lógico que me permitisse entender que estávamos saindo definitivamente da nossa vida quotidiana no Brasil.

Osorno nos apresentou ao Chile, porta de entrada com um magnífico cartão postal, o Vulcão Osorno com o seu cume sempre branco.

De Osorno a Santiago, uma estrada comprida por um pais desconhecido, um povo simpático, hospitaleiro, falando uma lingua engraçada (que já desde muito tempo é a minha segunda lingua de expressão).

Santiago, chegamos, ficamos. Meus tios avós se despidiram, pegaram o avião de volta para o Brasil. Nós quatro lá ficamos numa pensão familiar. Minha mãe saía todos os dias para procurar trabalho. Eu cuidava dos pequenos, e escondia meus medos (até de mim mesma). 

De repente, alvoroço no país! Allende ganhava as eleições. O senado tentava impugnar. A união das forças da Democracia Cristã deram a vitória avassaladora da Unidad Popular. Ai a vida ficou colorida. Revolução. Atividades sem fim. Entramos na escola e, quase ao mesmo tempo, nas organizações estudantis das juventudes da Unidad Popular. Meu primeiro vínculo militante, as Juventudes Comunistas de Chile. Não me recordo porque não deu certo. Eu era muito novinha, é verdade, e não conhecia nada da vida. Foram poucos meses de reuniões e algumas saídas à noite, com a Brigada Ramona Parra. Terminei o ano, entrei na secundária e também na Juventude Socialista, mais diretamente ligada a Allende. Era 1971 e já começavam os movimentos contra – greve de caminhoneiros, falta de alimentos, muitas manifestações imensas, um milhão de pessoas na avenida, Allende ao microfone, “el que no salta és momio” a gente gritava e, o povo, como um só, com a gente, pulava na rua que nem bolinha de borracha. Andávamos quilómetros para chegar às manifestações, não haviam autocarros pois, todos estavam indo para o centro, onde Allende nos chamava a mostrar a força da união, o poder do Povo Unido. Pouco me lembro de aulas, quase não dava tempo mas, mesmo assim, estudava, passava de ano aprendendo o que a vida me trazia. 1972 foi o ano do terremoto no Chile, seguido por outro, pavoroso, no Perú. Muita gente morreu, muita gente ficou desabrigada, trabalhamos muito para arrecadar remédios, alimentos, roupas, que eram enviadas aos centros de desabrigados. O Chile, na solidariedade pura do seu povo, enviava o pouco que tinha para os peruanos, que estavam em piores condições – a cordilheira tinha escorregado em massa tremenda de pedra, terra e neve, arrasando vilarejos e cidades. E nós, estudantes, trabalhavamos como voluntários nas várias campanhas do Governo de Allende: descarregando trens com mantimentos, enchendo caminhões para distribuir nas comunidades mais carentes, coletando ajuda (remédios, roupas, comida) nos bairros para enviar aos centros de distribuição às vítimas dos dois terremotos. As escolas estavam paralisadas, a direita estava nas ruas, atacando de todas as formas possíveis e imagináveis. A CIA financiava toda agressão contra o Governo da Unidad Popular, legítimo governo do povo chileno que orientava mudanças históricas na sociedade. Foram 3 anos de luta intensa, de esquecer-se de si mesmo em benefício do trabalho coletivo. Tudo era difícil – levantar de madrugada, escuro, frio, para fazer fila na padaria onde se podia comprar um quilo de pão por família; correr ao supermercado do bairro, enfrentar uma fila enorme para receber os bens essenciais que o governo estava distribuindo com tarjetas; palmilhar a cidade para acompanhar mais uma manifestação em apoio à Unidad Popular, ao programa do governo. Nesse anos foram nacionalizadas as riquezas naturais do Chile, passo importantíssimo para a soberania nacional: o cobre, o salitre, o ferro. No campo, na reforma agrária, a discussão era ferrenha – por um lado, os agrários e suas imensas propriedades, por outro os mapuches, indígenas que ocupavam grandes extensões de terra ao sul e, por outro lado ainda, os pequenos proprietários – nenhum desses grupos viam com bons olhos a socialização do campo, claro. Pelo que me lembro, a maior força operária do Chile eram os mineiros, e com eles organizados as nacionalizações por decreto presidencial foram possíveis.

No Chile aprendi o valor de se estar mobilizado em uma causa comúm, justa, digna. No Chile aprendi o que é se pertencer a um povo unido que jamais será vencido. No Chile aprendi a cantar com os Quillapayun e outros grupos. No Chile aprendi a amar.

No Chile de Allende me encontrei com Eduardo, um jovem estudante de secundária, dois anos mais velho que eu, com uma grande capacidade de liderança e uma coragem maior que lhe inundava o peito. Firme, decidido, liderava seu grupo do Liceu nº 7 de Homens, de Ñuñoa, nas campanhas voluntárias em que participávamos. Um dia nos encontramos: ele com seu grupo de compañeiros acorria ao pedido de ajuda que eu, dirigente estudantil no Liceu nº 19 de Meninas, de La Reina, havia feito. A palavra de ordem era tomar as escolas, pendurar faixas de apoio ao Governo da Unidade Popular, sair em manifestação pela rua e nos reunirmos todos, os vários grupos de estudantes dessa região de Santiago, no parque que margeava a Avenida Tobalaba. De lá seguiriamos para o centro onde uma grande manifestação se organizava. Allende chamava a todos em apoio ao governo legítimo, contra as movimentações dos partidos direitistas (“Los Momios”). Meu grupo fechou a escola, organizou os estudantes, as faixas e, no momento de saída do patio, demo-nos conta de que os portões tinham sido fechados com cadeado pela diretora, uma professora profundamente reacionária e autoritária. Enfim, vieram os meninos do 7, arrombaram os portões. A partir dai só me lembro de correrias, manifestações, sustos, aviões voando baixo, estouro de bombas, e o Palacio de La Moneda em chamas, Allende lutando de metralhadora em punho, ao lado dos seus auxiliares do GAP – grupo de amigos do presidente – valentes guerreiros, assessores, operários, médicos, muitos dos quais morreram ali mesmo.

Hoje ainda procuro saber sobre Eduardo, El Pollo, meu valente namorado de então. Quero conhecer sua história, honrar sua memória de forma a que os jovens de hoje o conheçam também, e gostem dele, assim como eu.

Mas, isso não é tudo. O tudo é a gente seguir em frente, e conseguir ensinar nossos filhos a serem tão valentes e comprometidos como ele sempre foi. É dessa estirpe de gente que surgirá o homem novo, aquele que é necessário para se concretizar, um dia, uma sociedade humana verdadeiramente justa.

(Agradeço por qualquer informação sobre o destino de Eduardo José Muñoz Olivos, el “Pollo”; favor enviar para [email protected])

Luis Nassif

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