Observatorio de Geopolitica
O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.
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Friedrich Engels: guerra e revolução, por Eduardo Barros Mariutti

Seus insights ainda são muito úteis, como a sua ênfase no modo como as táticas e estratégias militares se mesclam com a dinâmica da sociedade

do Observatório de Geopolítica

Friedrich Engels: guerra e revolução

por Eduardo Barros Mariutti

            Friedrich Engels sempre nutriu um profundo interesse pela história militar. E, por conta disto, adquiriu ao longo dos anos um conhecimento técnico muito apurado sobre o assunto. Conhecia minuciosamente as táticas de artilharia, cavalaria e infantaria, bem como as características técnicas e operacionais dos principais armamentos de sua época. Parte deste saber veio de sua experiência pessoal como militar, quando serviu como voluntário em um Regimento de Artilharia em Berlin (1842). Mas, ao que tudo indica, o seu interesse sobre a necessidade de se pensar a guerra de uma perspectiva revolucionária ocorreu depois de sua experiência nas insurreições de 1848-49, onde lutou como oficial ao lado de Johan August Ernst von Willich.

            Foi após esta data que ele passou a escrever com mais rigor sobre o tema, motivado por uma questão fundamental: entender as razões táticas da derrota do levante revolucionário que participou. Creio que ele passou a se debruçar com afinco sobre o problema do militarismo e sua relação com a dinâmica mais geral da sociedade exatamente por ter enfrentado o problema prático de lutar contra um exército regular e bem treinado contando apenas com forças revolucionárias irregulares, heterogêneas e, em grande medida, improvisadas. Esse tema aparece em primeiro plano em A Guerra Camponesa na Alemanha publicado pela primeira vez em 1850, na Nova Gazeta Renana. O argumento central gira em torno de uma curiosa comparação entre o levante camponês de 1525 e a revolução de 1848-49. Engels afirma que, em ambos os casos, os movimentos fracassaram pela combinação entre as “traições de classe”, a falta de disciplina dos insurretos e o desconhecimento das principais táticas de combate por parte das lideranças que comandavam as forças revolucionárias. Um oponente que dispõe de tropas obedientes, bem treinadas e que pode contar com um quadro de oficiais com conhecimento tático dificilmente poderia ser derrotado por uma multidão, mesmo que muito mais numerosa e enfurecida.

            A análise de Engels sobre o jacobinismo reforça essa percepção. Embora derrotado, este foi o primeiro levante popular que desembocou em uma guerra genuinamente de massas e, por conta disso, exigiu transformações táticas importantes que forçosamente tiveram que ser replicadas pelos outros Estados, ajudando a consolidar o “sistema moderno de Guerra”, ancorado no vínculo entre a mobilidade e o grande volume de recursos necessariamente envolvidos na campanha militar. No caso, por trata-se de uma guerra revolucionária, os franceses desenvolveram a capacidade de se mover à frente do apoio logístico, em marcha rápida, conquistando novas posições e utilizando os recursos ali presentes para abastecer as tropas. Trata-se, portanto, de um tipo de guerra que utiliza regularmente a pilhagem como tática e, deste modo, elimina a distinção entre alvos civis e militares e, ao mesmo tempo, subverte o princípio “clássico” de que o avanço da infantaria deve se dar no ritmo do apoio logístico.

            Um aspecto importante, ressaltado por Engels, é que essa “surpresa tática” consolidou a necessidade de utilizar exércitos muito mais numerosos, fato que exigiu o apoio da indústria ao esforço de guerra e a necessidade prática de forjar um novo tipo de combatente: o soldado-cidadão. Esta necessidade se impôs pela primeira vez na França em agosto de 1793, com o objetivo de tentar repelir as tropas da primeira coalizão que pressionavam a república por terra e por mar, configurando um dos primeiros exemplos de uma Guerra Total. Reorganizar as forças armadas neste novo molde não era uma tarefa fácil, dadas as múltiplas reações que isto despertava, em um arco que ia desde alguns quadros da aristocracia às camadas camponesas mais humildes (que eram uma das principais fontes de soldados) que, por sua vez, reagiam desertando ou criando motins. No entanto, a despeito destas dificuldades, esta nova forma de recrutamento acabou vigorando e se impôs a praticamente todas as potências europeias do século XIX. Não deixa de ser paradoxal o fato de que uma das principais ameaças ao sistema interestatal foi absorvida e emulada pelos Estados mais poderosos, sendo transmitida até o nossos presente.

            Tendo este quadro em mente, Engels mostrou ao longo de sua obra uma preocupação constante com as implicações destas novas formas de guerra para a luta revolucionária. Tal como ocorrera na derrota de 1849, ele imaginava que as forças revolucionárias vindouras provavelmente serão menos numerosas e terão armamentos inferiores aos das forças da ordem. Portanto, o exército revolucionário precisa aprender a agir rápido, explorar ao máximo a dimensão estratégica e, essencialmente, dominar a técnicas de batalha mais avançadas para conseguir neutralizar as vantagens numéricas do inimigo e, deste modo, manter a iniciativa a qualquer custo. Este aspecto é importante: uma guerra revolucionária precisa ser ofensiva e, neste caso, a velocidade é uma característica fundamental. Do contrário, só restam as técnicas de guerrilha que, embora eficazes em uma guerra assimétrica, não podem consolidar uma revolução.

            É evidente que nos dias de hoje o quadro é radicalmente diverso daquele em que Engels formulou o seu pensamento. Contudo, seus principais insights ainda são muito úteis, particularmente a sua ênfase no modo como as táticas e estratégias militares se mesclam com a dinâmica da sociedade e, também, a ideia de que uma insurreição só pode ter sucesso se combinar forças regulares com táticas de guerrilha. Isso fica particularmente claro em Anti-Dühring, por exemplo. Queria aqui explorar uma tensão, que divide seus leitores. Embora Engels insista recorrentemente na questão da necessidade de liderança e disciplina, não fica claro como esta liderança deve se materializar. Os tiranos que o leram (e todos eles adoram o livro Anti-Düring), invariavelmente, usaram os seus argumentos para defender a instituição de um comando central opressivo e violento que, infelizmente, tornou-se um traço definidor das trágicas experiências pseudosocialistas do século XX. Mas Engels é bastante ambíguo a esse respeito. É indubitável que ele defende vigorosamente a necessidade de inculcar alguma disciplina e treinamento para o combate no maior número possível de potenciais insurgentes quando se enfrentam exércitos organizados. Mas isto não implica a construção de um comando central dotado de um planejamento rígido destinado a conduzir todos os aspectos da conduta da revolução. Parte do seu respeito por Napoleão deriva exatamente do fato dele ter reorganizado as forças armadas criando unidades de combate com mais independência e capacidade de decisão. Creio que este é um bom ponto de partida para se repensar o vínculo entre guerra e revolução em uma era permeada por sistemas descentralizados de vigilância e de projeção de poder, mas que ainda se escoram em forças armadas organizadas de forma piramidal.

Eduardo Barros Mariutti – Professor do Instituto de Economia da Unicamp, do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas da UNESP, UNICAMP e PUC-SP e membro da rede de pesquisa PAET&D.

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