O impasse da violência política, por Yakov Rabkin

Apesar de sua retórica socialista, os colonos sionistas na Palestina mantiveram-se à parte da população local, da qual desconfiavam

O impasse da violência política

por Yakov Rabkin[1].

Tradução do inglês: Abel de Castro[2]

Publicado originalmente 01/11/2023 em Pressenza.com: https://www.pressenza.com/2023/11/on-the-impasse-of-political-violence/

Na noite do ataque de 7 de outubro de 2023 no sul de Israel, eu estava passando a noite na casa do meu sobrinho em São Petersburgo, no apartamento em que cresci, antes de emigrar da União Soviética, há mais de cinquenta anos. Na manhã seguinte, enquanto caminhava pelo bairro localizado bem no centro da antiga capital imperial, lembrei-me dos nomes soviéticos das ruas ao meu redor. Percebi que a maioria homenageava teóricos e praticantes do terrorismo político do final do século XIX: Pyotr Lavrov, Ivan Kalyaev, Stepan Khalturin, Andrei Zhelyabov e Sofia Perovskaya. Eles tinham orgulho de se autodenominarem terroristas e estavam envolvidos em vários atos de violência. Percebi que essas ruas ficam a poucos minutos de caminhada da Igreja do Salvador do Sangue Derramado. A igreja multicolorida com cúpula em forma de cebola, tão incomum na austera paisagem urbana de Petersburgo, foi erguida para homenagear o imperador Alexandre II perto do local de seu assassinato em 1881 por alguns dos revolucionários cujos nomes essas ruas tinham durante o período soviético.

Para esses terroristas, os assassinatos eram um meio de promover mudanças sociais e políticas. Seu objetivo era aterrorizar os círculos dominantes na ausência de eleições ou de quase qualquer forma de participação pública na administração do país. Esses revolucionários triunfaram em outubro de 1905, quando o czar Nicolau II foi forçado a conceder direitos políticos limitados à população. Suas concessões se mostraram insatisfatórias para muitos revolucionários convictos, e eles continuaram sua campanha de assassinatos.

Esses grupos terroristas atraíram um número desproporcional de minorias: Poloneses, judeus, letões, etc. No Império Russo, eles sofreram dupla opressão: política e étnico-religiosa. Os judeus foram particularmente visados após o assassinato de Alexandre II, o que desencadeou uma onda de pogroms, tumultos populistas antijudaicos e massacres. Ondas de pogroms continuaram a se abater sobre os judeus nos primeiros anos do século XX, principalmente no que hoje é conhecido como Ucrânia e Moldávia, onde a violência antijudaica era virulenta e generalizada. Alguns grupos de autodefesa judaica foram organizados para evitar os pogroms, mas a insegurança era endêmica. Cerca de dois milhões de judeus emigraram, a maioria para as Américas.

Foi nesse contexto que alguns judeus, em sua maioria jovens, abraçaram a nova ideologia do sionismo e a incorporaram às suas convicções socialistas. Alguns milhares desses revolucionários chegaram à Palestina otomana com a intenção de edificar uma nova sociedade socialista e educar novos homens e mulheres hebreus, fisicamente fortes e espiritualmente livres de crenças religiosas. Eles estavam prontos para o trabalho físico, iniciaram comunidades agrícolas socialistas (kibutz em hebraico) e adquiriram armas para defendê-las. Ao contrário da maioria dos judeus emigrados da Rússia para a América, que ansiavam por se adaptar ao novo país, os colonos sionistas da Palestina buscavam estabelecer sua própria sociedade independente.

Esses jovens sionistas socialistas chegaram à Palestina com entusiasmo e um forte desejo de romper com o passado, inclusive com a impotência que haviam experimentado no Império Russo. Eles abandonaram seu iídiche nativo e se esforçaram para falar a nova língua sionista, o hebraico moderno. Eles abandonaram a religião, construindo uma nova identidade como hebreus seculares. Embora muitos tivessem sido proibidos de trabalhar com a terra no Pale of Settlement da Rússia, a única parte do Império Russo onde os judeus tinham permissão para residir até 1917, na Palestina eles se tornaram agricultores.

Eles trouxeram duas experiências forjadas no seu antigo país: usos políticos do terrorismo e o trauma de sofrer violência aleatória de não judeus. A maioria dos colonos havia vivido em cidades e vilas judaicas e não havia estudado nem trabalhado com não judeus. Poucos conheciam a sociedade mista e cosmopolita de São Petersburgo ou Odessa. Sua desconfiança em relação aos não judeus foi reforçada mais tarde com o advento do nazismo e com o genocídio nazista de judeus na Europa.

Eles também não conheciam o padrão russo de integração dos territórios conquistados ao Império. Os príncipes tártaros, os aristocratas georgianos e os potentados da Ásia Central foram incorporados na ordem oficial russa e passaram a desfrutar de privilégios adequados à sua posição e, muitas vezes, casaram-se com descendentes da antiga nobreza russa. Um dos casos mais conhecidos é o do diplomata, autor e compositor russo Alexander Griboyedov, que se casou com uma princesa georgiana no primeiro terço do século XIX.

Apesar de sua retórica socialista, os colonos sionistas na Palestina mantiveram-se à parte da população local, da qual muitas vezes desconfiavam e desdenhavam. Seus padrões de assentamento na Palestina reproduziram a discriminação que sofreram no Pale of Settlement da Rússia. A política sionista oficial que promovia a segregação era expressa em vários slogans edificantes: “avoda’ivrit” (Trabalho hebraico), “livnot u-lehibanot” (Construir e ser construído), “hafrada” (Separação) etc. Isso significava eliminar os árabes do emprego em empresas sionistas, construir a nova e exclusiva cidade hebraica de Tel Aviv ao lado da antiga Jaffa e estabelecer infraestruturas institucionais livres de árabes. Nas décadas de 1920 e 30, os sionistas rejeitaram consistentemente a ideia de uma assembleia representativa que refletisse a diversidade étnica e religiosa e expusesse o fato óbvio de que os colonos sionistas constituíam uma minoria na Terra Santa. Tudo isso naturalmente gerou ressentimento e hostilidade contra os sionistas.

Imbuídos de um orientalismo (avant la lettre[3]), eles possuíam um senso de superioridade colonial europeia em relação aos habitantes da Palestina, tanto judeus quanto árabes. Essa atitude foi reforçada quando, após a Primeira Guerra Mundial, a Grã-Bretanha assumiu o controle da Palestina com o mandato, entre outros objetivos, de promover o empreendimento sionista no país. Os britânicos recorreram à violência usual sob o pretexto de “pacificação dos habitantes locais”, semelhante às suas ações na Índia e em outros lugares, enquanto enfrentavam a resistência árabe com uma força significativamente mais letal do que a empregada contra as formações paramilitares sionistas. Os britânicos também apoiaram uma abordagem de “dividir para conquistar”, promovendo a separação e o conflito entre judeus e árabes.

Assim, a herança russa do terrorismo político, a memória das hordas antissemitas que se abatiam sobre as comunidades judaicas no Império Russo e as práticas coloniais britânicas naturalmente racistas se fundiram na formação da cultura política sionista na Palestina. Essa cultura combinava a preferência pelo uso da força para lidar com a população local e, além disso, havia um senso de direito, decorrente das referências feitas pelos colonos e pelos britânicos à Bíblia hebraica. Com exceção dos comunistas e de alguns membros do Poale Tsion[4], o ideal socialista de internacionalismo sucumbiu sob o peso do nacionalismo hebraico. Os sionistas nascidos na Rússia constituíam mais de 60% do parlamento israelense em 1952, embora a emigração da Rússia tivesse cessado três décadas antes. Até hoje, com exceção de Naphtali Bennett, todos os primeiros-ministros israelenses ou seus pais nasceram no Império Russo.

Os colonos sionistas dependiam da força para subjugar os árabes palestinos e recorriam a assassinatos políticos para evitar um acordo com eles. Assim, o enérgico porta-voz dos rabinos antissionistas, Jacob De Haan, nascido na Holanda, foi morto em 1924 por ordem da Haganah, uma milícia fundada alguns anos antes por colonos sionistas da Rússia. Outros grupos terroristas surgiram na década de 1930, a maioria deles não apenas organizada, mas também composta por sionistas nascidos na Rússia. Inicialmente, esses grupos praticavam violência contra os árabes locais, mas depois expandiram seu alcance para militares e civis britânicos, tanto na Palestina quanto nos países vizinhos, e até mesmo, eventualmente, para um mediador da ONU de alto nível da Suécia. O Museum of Underground Prisoners (Museu dos Prisioneiros Subterrâneos) em Jerusalém exibe orgulhosamente essa história, incluindo bombas caseiras e outros implementos terroristas.

A proclamação unilateral do Estado de Israel em maio de 1948 foi feita apesar da oposição determinada da maioria dos habitantes da Palestina, incluindo muitos judeus, e de todos os países vizinhos. Como era de se esperar, isso provocou ataques de vários países árabes. Nesse meio tempo, milícias sionistas de diferentes matizes políticos cometeram atos de terror para aterrorizar os árabes palestinos e fazê-los abandonar suas casas. Como parte de uma política de limpeza étnica, agora bem documentada, eles expulsaram à força a maioria dos que se comprometeram a permanecer no local.

O novo Estado de Israel colocou os árabes palestinos sob regime militar, que durou quase duas décadas. Os refugiados e exilados que tentaram voltar para suas casas foram mortos, expulsos ou presos. Mais palestinos se tornaram refugiados após a vitória de Israel na guerra de 1967. Desde então, medidas militares e policiais foram implementadas para pacificar os palestinos que sobrevivem na Cisjordânia e em Gaza. Nesse meio tempo, as forças armadas de Israel ganharam a reputação de uma formidável máquina de guerra de alta tecnologia.

O ataque assassino de 7 de outubro de 2023 obviamente enfureceu a maioria dos israelenses. Mas, em vez de fazer uma trégua, os líderes militares e políticos imediatamente submeteram Gaza a um bombardeio maciço seguido de uma invasão terrestre com centenas de milhares de soldados. Isso causou baixas colossais e uma crise humanitária. Essa resposta a um problema essencialmente político – encontrar um acordo com os palestinos – é típica da abordagem de Israel: empregar uma força esmagadora para amedrontar os palestinos e levá-los à submissão. Ao mesmo tempo, os capangas dos colonos judeus na Cisjordânia têm, ao longo dos anos, assediado e assassinado palestinos, queimando suas casas em uma recriação dos pogroms do passado, enquanto a polícia israelense acrescentou centenas de palestinos aos milhares mantidos em detenção administrativa.

A demonização vingativa dos palestinos tornou-se comum. Até mesmo o presidente de Israel, Itzhak Herzog, de fala mansa, que havia expressado preocupação com o crescimento do fascismo em Israel, agora afirma que “não há civis inocentes” em Gaza. Meirav Ben-Ari, parlamentar do Yesh Atid, que em Israel se passa por um partido centrista liberal, disse, em referência às milhares de crianças palestinas mortas pelos bombardeios israelenses, que “as crianças de Gaza causaram isso a si mesmas! Somos uma nação que busca a paz, uma nação que ama a vida”.

A atual explosão de violência não foi imprevista. Em 1948, em meio à Guerra da Independência de Israel (os palestinos se lembram dela como a Nakba, catástrofe), Hannah Arendt, refugiada judia da Alemanha que se tornaria uma proeminente filósofa política americana, advertiu: “E mesmo que os judeus vencessem a guerra… [os] judeus “vitoriosos” viveriam cercados por uma população árabe totalmente hostil, isolados dentro de fronteiras sempre ameaçadas, absorvidos pela autodefesa física…. E tudo isso seria o destino de uma nação que – não importa quantos imigrantes ainda pudesse absorver e até onde estendesse suas fronteiras (toda a Palestina e a Transjordânia é a exigência insana dos revisionistas) – continuaria a ser um povo muito pequeno, em número muito inferior ao de vizinhos hostis”.

A guerra israelense em Gaza é outro caso que corrobora esse diagnóstico. Israel pode vencer essa guerra. Mas para conquistar a paz, seus líderes precisam se libertar da cultura política desenvolvida pelos intrépidos pioneiros sionistas que fugiram dos guetos há mais de um século.

De acordo com o filósofo israelense Joseph Agassi, os governos israelenses têm se comportado como funcionários da comunidade que ainda vivem em um gueto, deixando de lado os interesses dos não-judeus de Israel e, assim, alimentando o fogo da guerra perpétua. Um gueto equipado com um exército poderoso constitui um perigo, e não apenas para a região que faz fronteira imediata com Israel.

O governo Biden aumentou o perigo ao abraçar a retórica messiânica de Israel e ao lançar a guerra em Gaza como parte da luta mundial maniqueísta contra o Mal. Isso perpetua a dependência da violência herdada dos revolucionários russos ansiosos por realizar mudanças políticas e das potências europeias desesperadas para manter suas colônias. Israel conseguirá mais uma vez aterrorizar e “pacificar” os palestinos? Ou buscará uma solução mais revolucionária para seu “problema palestino”?


[1] Yakov M. Rabkin é professor emérito de história na Université de Montreal. Suas publicações incluem mais de 300 artigos e alguns livros: Science between Superpowers, A Threat from Within: a Century of Jewish Opposition to Zionism, What is Modern Israel, Demodernization: A Future in the Past e Judaïsme, islam et modernité. Prestou consultoria, entre outros, para a OCDE, a OTAN, a UNESCO. Site: www.yakovrabkin.ca

[2] Abel de Castro é antropólogo (PhD), Mestre em Sociologia e Mestre em História pela Université de Montréal.

[3] NT.: Avant la lettre é uma expressão francesa usada figurativamente para significar “antes do estado final, antes do estado definitivo de algo, antes de seu desenvolvimento completo”. Seu significado evoluiu recentemente. Agora é usada para significar “antes da existência do que estamos falando”. Nesse sentido, avant la lettre significa “antes de seu tempo, vanguardista, à frente de seu tempo”. Por exemplo, uma feminista avant la lettre é alguém que defendeu os valores feministas antes mesmo do surgimento da noção de feminismo. Ver: https://dictionnaire.orthodidacte.com/article/definition-avant-la-lettre (em francês).

[4] NT: O Poale Zion (também conhecido como Poalei Tziyon ou Poaley Syjon, que significa “Trabalhadores de Sião”) foi um movimento de trabalhadores judeus marxistas-sionistas fundado em várias cidades da Polônia, da Europa e do Império Russo por volta da virada do século XX. https://fr.wikipedia.org/wiki/Poale_Zion (francês).

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Redação

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  1. Recentemente, fiz um comentário sobre o conflito Israel/Palestina, cujo conteúdo tem muita semelhança com o artigo acima, principalmente com relação a possibilidade de paz. Transcrevo abaixo parte do comentário.

    “O ESTADO DE ISRAEL FOI CRIADO SOBRE A USURPAÇÃO DE TERRAS E OUTROS BENS DA POPULAÇÃO ISLAMITA PALESTINA. Enquanto esta questão não for abordada pelas partes envolvidas no conflito, não haverá paz na região. Mesmo que Israel aniquile o Hamas, tome as terras que ainda estão com os palestinos, a questão não estará resolvida. Israel precisa se conscientizar que não tem território e gente suficiente para enfrentar dezenas de organizações muçulmanas que substituirão o Hamas na luta contra Israel. Os religiosos judeus europeus tinham o direito de reinvidicar uma pátria para chamar de sua, mas esta deveria ser construida em território europeu, pois o seu grande martírio se deu principalmente nos paises europeus em especial na Alemanha nazista, cujo modelo está sendo copiado pelo nazisionistas atualmente no poder em Israel. A paz é desejável e posssível, mas o atual estado de Israel precisa antes, reconhecer o seu pecado ORIGINAL”

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