A inflação, bem mais baixa do que apontam indicadores tradicionais
por Lauro Veiga Filho
Como regra geral, os índices de inflação mais tradicionais demoram mais tempo para capturar mudanças de tendência no consumo e, não raro, continuam mantendo o mesmo peso de cada item ou produto na cesta de consumo das famílias, ainda que os consumidores passem a restringir a compra de produtos que tiveram altas mais expressivas, substituindo esses itens por outros proporcionalmente mais baratos. A participação de cada um dos itens/produtos pesquisados nas despesas das famílias é que vai definir, ao final, o “tamanho” da inflação, numa ponderação que considera as altas em cada preço e o peso dos mesmos produtos na cesta de consumo familiar.
Assim, mudanças de hábito determinadas por ondas altistas podem não ser rapidamente percebidas pelas pesquisas de preços mais tradicionais, que passam a indicar taxas de inflação que talvez não reflitam adequadamente o custo de vida percebido de fato pelos consumidores. Numa tentativa de identificar o chamado “efeito substituição”, quando as famílias em geral passam a trocar produtos mais caros por similares mais baratos, o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV) desenvolveu o Índice de Preços dos Gastos Familiares (IPGF), que tem os pesos dos produtos na cesta de consumo atualizados mensalmente.
De acordo com o Ibre, “essa característica contribui para que as alterações nas preferências do consumidor sejam captadas com mais agilidade” e, por isso mesmo, “o IPGF tem acumulado uma inflação menor no longo prazo comparativamente aos índices tradicionais”, a exemplo do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e mesmo do Índice de Preços ao Consumidor (IPC) do próprio Ibre.
Bem abaixo da meta
O comportamento do IPGF sugere, entre outros pontos, que o alívio na política monetária poderia ter se iniciado mais cedo, com os juros sendo reduzidos mais aceleradamente, o que teria contribuído para a melhora no ambiente econômico e para uma retomada mais ambiciosa do ritmo da atividade na economia como um todo, sem prejuízo do combate à inflação. O “caçula” entre os indicadores do Ibre anotou ligeiro recuo de julho para agosto, saindo de 0,09% para 0,03%, com baixas mais acentuadas para os preços dos alimentos e artigos residenciais. No ano, o IPGF avançou 2,11% e acumulou alta de 2,78% em 12 meses até agosto, quer dizer, 0,47 pontos percentuais abaixo do centro da meta de 3,25% fixada para a inflação neste ano pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), formado pelos ministros da Fazenda e do Planejamento e pelo presidente do BC. Com a tolerância de 1,5 pontos percentuais admitida pela política de metas inflacionária, a taxa poderia variar entre um mínimo de 1,75% e um teto de 4,75%.
Houve discreta aceleração na taxa acumulada em 12 meses, que havia registrado alta de 2,35% nos 12 meses encerados em julho passado, explicada pela saída dos índices negativos anotados no terceiro trimestre do ano passado. De acordo com o Ibre, entre julho e agosto do ano passado, sempre considerando a taxa acumulada em 12 meses, o IPGF havia desacelerado de 10,55% para 9,05% em agosto, então acima do IPCA, que teve a taxa em 12 meses reduzida de 10,07% até julho de 2022 para 8,73% no mês seguinte.
Neste ano, o IPCA saiu de 0,12% para 0,23% entre julho e agosto, passando a acumular variação de 4,61% em 12 meses (frente a 3,99% em julho), explicada pela saída da “inflação negativa” observada em agosto do ano passado do cálculo. A deflação de 0,36% registrada em agosto de 2022 foi substituída pela taxa de 0,23% anotada no mesmo mês deste ano no cálculo do índice acumulado em 12 meses, lembrando que as taxas negativas observadas entre julho e setembro do ano passado foram produzidas artificialmente pela redução de impostos sobre combustíveis, energia e comunicações na antevéspera das eleições presidenciais.
Distância crescente
A série estatística do Ibre mostra ainda que a taxa de inflação pode estar correndo alguns pontos abaixo do índice oficial já há alguns anos. O desencontro entre as curvas de variação do IPGF e do IPCA parece ter começado a se acentuar a partir de meados da década passada, com a distância entre os dois índices crescendo um pouco entre o final daquela década e os primeiros anos da década atual. Considerando dezembro de 1999 como base, o IPCA subiu 320,72% desde lá, com o IPGF acumulando alta de 293,75% até agosto deste ano, numa diferença de quase 27,0 pontos percentuais acumulados ao longo de 22 anos e oito meses.
“Quando o consumidor substitui arroz por macarrão ou carne vermelha por carne branca, ou ainda deixa de consumir combustível e passa a usar mais o transporte público devido ao aumento de preços os itens substituídos perdem peso na cesta de consumo das famílias e seus aumentos de preço passam a contribuir menos para o índice e vice-versa. Assim, no longo prazo, esse efeito acaba gerando um número menor de inflação”, afirma o economista do Ibre/FGV, Matheus Peçanha, responsável pela pesquisa do IPGF, segundo nota divulgada pela assessoria do instituto.
Os dados afastam qualquer risco de escalada inflacionária a esta altura e indicam, num reforço à tese, que a inflação “real” parece estar abaixo daquela captada pelos indicadores mais convencionais, o que deveria favorecer uma aceleração nos cortes dos juros básicos. Ontem, confirmando o que havia antecipado no começo de agosto, o Copom anunciou mais um corte de meio ponto percentual na taxa básica, agora reduzida para 12,75% em decisão unânime. Salvo avaliação mais criteriosa, a decisão anunciada em nota no início da noite parece de certa forma contrariar o balanço de riscos considerado pelo Copom, já que, no texto liderado aos mercados e à imprensa, os riscos de alta ocupam espaço maior do que os “riscos” de baixa mais acentuada da inflação.
Lauro Veiga Filho – Jornalista, foi secretário de redação do Diário Comércio & Indústria, editor de economia da Visão, repórter da Folha de S.Paulo em Brasília, chefiou o escritório da Gazeta Mercantil em Goiânia e colabora com o jornal Valor Econômico.
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