A bomba-relógio da banalização do direito penal

Do Justificando

A banalização do Direito Penal é uma bomba prestes a estourar

Monaliza Montinegro

A foto era de um carro novo amassado pela pancada com um corpo humano. O sangue vermelho criava rastros na cor preta do automóvel lembrando no luxo a sujeira de um pobre, ladrão, fedido, um corpo morto e, agora sim, sem alma, estraçalhado no chão após uma tentativa de assalto. O título da mensagem que compartilhava aquela foto dizia “meu desejo era ter feito o mesmo com o cara que me assaltou”. A autora da frase, uma advogada pós-graduada, autointitulada “defensora dos animais”. Os comentários lançados abaixo difundiam o ódio contra os direitos humanos, clamavam por mais direito penal e comemoravam o assassinato do ladrão.

Nenhuma lamentação! Ninguém parecia ter dó daquele corpo “sem alma” espatifado no chão. Nem ao menos daquela da senhora que dirigira o veículo “sob o domínio de violenta emoção” após uma tentativa de assalto e que praticou esse bruto ato do qual, talvez, esteja profundamente arrependida. A “desgraça” ali retratada parecia indiferente no meio da vingança comemorada.

Sem o “talvez” acima colocado na situação da autora do crime (sim, foi um crime), as pessoas curtiram, comentavam e comemoraram a tragédia como se estivessem vibrando em um gol de virada em final da copa do mundo. Aqueles que desejavam estar no lugar daquela pobre senhora tinham a certeza de que “pobre” ela só era na conduta e jamais na aplicação da lei penal…

Por mais que você corra irmão

Pra sua guerra vão nem se lixar

Esse é o xis da questão

Já viu eles chorar pela cor do orixá?

E os camburão o que são?
(Emicida)

Aquele era o retrato do nosso retrato social: o ódio compartilhado e o clamor pelo direito penal como a última esperança do estado democrático de direito. Uma ilusão. Apenas o reforço da sistemática de “etiquetamento” de indivíduos, uma rotulação que define, dentro da violação da norma penal, os sujeitos considerados perigosos para o sistema, estereótipos criminosos que precisam ser neutralizados em nome do bem comum. É a essência de uma corrente de pensamento denominada de Labelling Approach, também conhecida com o nome “Teoria da Reação Social”, delineada por Howard S. Becker, em sua obra Outsiders.

Teoria do Etiquetamento/Teoria da Reação Social/ Labelling Approach (Howard S. Becker)

A partir dessa corrente tem-se uma dupla estigmatização. Primeiro com a definição da norma em abstrato e suas sanções tendo como destinatários principais os indivíduos pertencentes a classe marginalizada. Posteriormente, a aplicação das sanções, que é, do mesmo modo, direcionada, e os limites ao poder punitivo passam a ser desrespeitados para essa parcela da população.

Tudo isso acontece com o apoio do senso comum. É o deturpado senso de justiça apontando o dedo para a vitima do atropelamento doloso, que possivelmente merecia ter sua vida ceifada em um conflito de valores com um bem material. Naquele caso nem parece ter sido um homicídio… Não, não foi um homicídio. Na verdade, face ao princípio da presunção de inocência, o rótulo de criminoso ninguém deveria ter. Mas, a cor daquele rapaz atropelado no chão e a condição social em que estava inserido, antecipavam a punição de sua conduta e a sentença era de morte. Não houve para aquele jovem a chance de se defender, não lhe foi ofertada a possibilidade de tentar fazer diferente.

Segue-se, então, o que a doutrina denominou de “desviação secundária”, um processo através do qual o indivíduo “etiquetado” passa a aceitar a rotulação imposta pelo sistema (role engulfment) como reflexo da exclusão social ingressando na carreira criminosa para, então, incorporar uma retaliação ao Estado que o vê como inimigo e cumpre o seu papel de garantidor de direitos apenas para uma parcela da população, enquanto a parcela excluída recorre às facções criminosas para a sua proteção.                      

Nóiz quer ser dono do circo

Cansamos da vida de palhaço

É tipo moisés e os hebreus, pés no breu

Onde o inimigo é quem decide quando ofendeu

(cê é loco meu)

No veneno igual água e sódio

Vai vendo sem custódio

Aguarde cenas no próximo episódio
(Emicida)

Direito Penal do Inimigo

A principal consequência dessa sistemática é a construção de um círculo isolante entre o idealizado cidadão de bem e os inimigos criados pelas estruturas sociais. Nesse isolamento, fica à margem toda a classe pobre, raça marginalizada historicamente. A linha do direito penal do fato cede espaço ao direito penal do autor, seguindo a lógica do Direito Penal do Inimigo de Jackobs.

Juarez Cirino dos Santos explica a teoria do Direito Penal do Inimigo afirmando que Jakobs propõe:

“uma distinção entre cidadãos e inimigos no âmbito da imputação penal, deste modo: a) o cidadão é autor de crimes normais, que preserva uma atitude de fidelidade juridical intrínseca, uma base subjetiva real capaz de manter as expectativas normativas da comunidade, conservando a qualidade de pessoa portadora de direitos, porque não desafia o sistema social; b) o inimigo é autor de crimes de alta traição, que assume uma atitude de insubordinação jurídica intrínseca, uma base subjetiva real capaz de produzir um estado de Guerra contra a sociedade, com a permanente frustração das expectativas normativas da comunidade, perdendo a qualidade de pessoa portadora de direitos, porque desafia o sistema social.”

O tempero do mar foi lágrima de preto

Papo reto, como esqueletos, de outro dialeto

Só desafeto, vida de inseto, imundo

Indenização? Fama de vagabundo

Nação sem teto, Angola, keto, congo, soweto

A cor de etoo, maioria nos gueto

Monstro sequestro, capta três, rapta

Violência se adapta, um dia ela volta pu cêis
(Emicida)

Do autoritarismo Cool

A lógica do direito penal do inimigo é fomentada pela situação emblemática narrada no início desse texto, pois a com a difusão do ódio pelos meios de comunicação, sobretudo pelas redes sociais, tem-se produzido e identificado mais inimigos comuns do que a esperança na paz social, o que deságua na maximização do direito penal, com novos contornos para o poder punitivo, exacerbando poderes em um paradoxo sem fim, como se o nosso passado ditatorial houvesse construído uma realidade presente que pudesse servir de exemplo para o futuro. São as facetas do “autoritarismo cool” fruto de um sistema de periculosidade presumida. Nas palavras de Zaffaroni:

“É cool porque não é assumido como uma convicção profunda, mas sim como uma moda, à qual é preciso aderir para não ser estigmatizado como antiquado ou fora de lugar e para não perder espaço publicitário. (Zaffaroni, 2007, p.69, [grifo do autor])”

A pior face desse “autoritarismo cool” é o reflexo dentro do próprio judiciário, ora recuando no tempo da legislação penal com a criação de leis mais severas sempre atendendo aos pleitos da punibilidade, ora retrocedendo jurisprudencialmente, vide o atropelamento da presunção de inocência por parte do STF quando voltou a permitir a utilização de inquéritos policiais e ações em curso para agravar a pena base. Além disso, vivemos um retrocesso que representa um verdadeiro desrespeito a todo esforço da criminologia crítica na edição a Lei n. 12.411/11, através de prisões arbitrárias e da desconsideração da existência das alternativas às prisões provisórias, distanciando o processo penal cada vez mais dos mandamentos constitucionais e do postulado da presunção de não culpabilidade.

Aê, nessa equação, chata, polícia mata – Plow!
Médico salva? Não!
Por quê? Cor de ladrão
Desacato, invenção, maldosa intenção
Cabulosa inversão, jornal distorção
Meu sangue na mão dos radical cristão
Transcendental questão, não choca opinião
Silêncio e cara no chão, conhece?
Perseguição se esquece? Tanta agressão enlouquece
Vence o Datena com luto e audiência
Cura, baixa escolaridade com auto de resistência
Pois na era Cyber, cêis vai ler

(Emicida)

Nessa lógica, o estado isola, o crime batiza, a polícia mata, o médico não salva, e quando mesmo assim o “inimigo” sobrevive a sociedade é quem mata. Não importa a idade, morre preto na favela, morre criança branca na imigração, cai menina de onze anos apedrejada no chão vítima do ódio cristão. E a sociedade, irresignada, ainda pede mais punição.

Com essa banalização do direito penal não só a norma definha diante de sua contravenção, mas se esvai toda a possibilidade de se promover a paz social. Segue-se, então, um ciclo insustentável, que se encerra e se renova cada vez que cai no chão “um corpo sem alma” com as comemorações de “gol de virada.”

“Negreiros a retraficar

Favela ainda é senzala, Jão

Bomba relógio prestes a estourar”
(Emicida)

E com a “boa esperança” de que quem está acordado para que os que dormem possam despertar antes que a “bomba-relógio” venha a estourar, encerro esse breve protesto com o vídeo do clipe de Emicida, pela fala dos que não tem voz na dicotomia entre tentar ser “o dono do circo” ou aceitar ser “o palhaço da senzala”.

Monaliza Maelly Fernandes Montinegro é Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte; Analista do Seguro Social com formação em Direito; Aprovada no concurso da Defensoria Publica do Estado da Paraíba.
Redação

6 Comentários

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  1. A cidade urbana sobe o morro

    A cidade urbana sobe o morro para buscar lá alívio às suas loucuras insanas. No morro, tudo é diferente e ameaçador, na visão da cidade urbana. Mas, é lá que encontra o produto de que precisa para alimentar seu inquieto espírito. Quando o morro desce, o pavor se instala na urbanidade. Com as armas compradas com o dinheiro do viciado urbano.

  2. A foto era de um carro novo

    A foto era de um carro novo amassado pela pancada contra o muro de uma residência pois perdera o controle após o seu condutor ser alvejado com tiros. O sangue vermelho criava rastros no painel preto do automóvel lembrando no luxo a sujeira de um trabalhador, pai de família, cansado, um corpo morto e, agora sim, sem alma, perfurado por vários tiros após uma tentativa de assalto. O título da mensagem que compartilhava aquela foto dizia “Meu desejo é que meu pai retornasse para casa são e salvo”. A autora da frase, a filha do condutor, uma criança a única que pareceu se importar diante da banalização de mais um número para a imensa estatística de latrocínios do nosso país. Os comentários lançados abaixo difundiam o ódio contra os direitos humanos, clamavam por mais direito aos assassinos e ladrões do país.

  3. Mais 30 anos…

    Fazem propaganda da violência (apologia mesmo, no sentido criminal, não é só a “valentia” do mundo dos negócios, do cinema, da publicidade, etc., não) e depois se perguntam “por que” essa mesma violência chegou até eles.

    … Até um macaco ou um rato de laboratório já teria sacado….

    … Enquanto isso os demagogos só faturam…

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