Revogaço – A criminalidade como expressão de problemas estruturais e sistêmicos, por Arnaldo Cardoso

Sobre a dimensão espacial das dinâmicas criminais é importante observar suas variações regionais. É no território que a cidadania é construída e, para muitos, negada.

Revogaço – A criminalidade como expressão de problemas estruturais e sistêmicos

por Arnaldo Cardoso

O território da Amazônia Legal reunir 10 das 30 cidades mais violentas do Brasil é expressão de uma combinação de omissões e ações deliberadas do Estado – sob o governo Bolsonaro –, da crescente presença de facções criminosas e da precarização de políticas públicas de promoção da segurança e do bem-estar para mais de 30 milhões de brasileiros e brasileiras que vivem na região. Isso pode concluído a partir das informações reunidas na última edição do Anuário de Segurança Pública 2022, com base em dados do período de 2019 à 2021 – três primeiros anos do governo Bolsonaro, 

Mas se essa nefasta combinação de fatores produziu o agravamento da situação na região amazônica, inclusive com repercussões internacionais ilustradas por uma sucessão de incêndios criminosos, desmatamento, devastação causada pelo garimpo ilegal e assassinatos como os do ambientalista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, a grave situação da segurança pública nas outras regiões do país só tem diferenças em função das particularidades de cada território e de suas determinações sobre as respectivas populações.

A criminalidade e sua espacialidade

Sobre a dimensão espacial das dinâmicas criminais é importante observar suas variações regionais. É no território que a cidadania é construída e, para muitos, negada.

O número de 41,1 mil mortes violentas (MVI) no país em 2021, ainda que 7% menor que o registrado no ano anterior, não ilude o observador mais atento. A abertura desse número permite saber que: a) 6 estados tiveram aumento de mortes violentas, sendo que 4 deles estão na região Norte; b) o Norte registrou alta de assassinatos, acima de 10% e, c) a maior alta foi registrada no Amazonas, de 54%.

Para uma compreensão desse aumento de mortes violentas na região Norte se afirmam como fatores determinantes as mudanças na legislação promovidas pelo governo Bolsonaro facilitando a compra e porte legal de armas e munição por civis, bem como o desmonte de políticas públicas e de órgãos de fiscalização contra crimes ambientais e de proteção de direitos de povos originários.

Análises como as do Fórum Brasileiro de Segurança Pública destacam que esses fatores estimularam comportamentos criminosos como os de grilagem, garimpo ilegal, invasão de terra indígena, contrabando de madeira, pesca clandestina e contrabando de armas e drogas.

Como informa o anuário já citado “As armas de fogo permanecem como o principal instrumento utilizado para matar, com 98,4% das MDIP; 75% dos homicídios dolosos; 65,9% dos latrocínios (roubos seguidos de morte); e 11% das lesões corporais seguidas de morte. Além disso, 35,2% das MVI de 2021 foram cometidas nos finais de semana, aos sábados e domingos”.

Crimes patrimoniais no Brasil

Como já foi dito, números abrangendo o território nacional como o de 916 veículos roubados ou furtados por dia no Brasil em 2021 são importantes, mas demandam sua abertura. Por exemplo, é significativo observar que são estados fronteiros como Acre, Mato Grosso e Amapá os que apresentaram maior crescimento nas taxas desses crimes, 33,8%, 17,5% e 16,7% respectivamente.

Investigações policiais revelam as ligações desses furtos e roubos com os crimes de contrabando de veículos e autopeças, muitas vezes envolvendo trocas com armas e cocaína, alimentando o intercâmbio entre organizações criminosas internacionais. Exemplo disto é o crescimento de ações do PCC (Primeiro Comando da Capital) nessas cidades fronteiriças, com destaque à fronteira com o Paraguai.

Outras modalidades de crimes patrimoniais que registraram crescimento foram: roubo a estabelecimento comercial (6,5%), roubo a residência (4,7%), roubo a instituição financeira (11%) e roubo a cargas (2,4%).

Crimes cibernéticos

Para além das determinações do espaço sobre a dinâmica criminal, os crimes cibernéticos têm revelado a cada ano a crescente vulnerabilidade da sociedade face aos usos criminosos das tecnologias digitais no ciberespaço.

Embora a adequação do arcabouço jurídico brasileiro para lidar com as modalidades do crime cibernético esteja acompanhando os avanços internacionais nesse campo, há uma percepção de desvantagem entre a capacidade de produção e eficiente aplicação de leis e o ritmo do crescimento de tais crimes. A LGPD é um marco regulatório importante sobre a proteção de dados pessoais, mas depende para sua aplicação da colaboração das plataformas digitais e redes sociais que detém os cadastros de usuários.

Agravante do quadro geral, é o embaralhamento por parte da opinião pública de conceitos como os de privacidade e anonimato, liberdade de opinião e ameaça à ordem constituída.

Se por um lado a legislação sobre crimes cibernéticos tem avançado, faltam investimentos em inteligência policial, ampliação e qualificação do quadro profissional das instituições públicas de segurança para o enfrentamento adequado dessas modalidades de crimes.

População carcerária

O reconhecimento da criminalidade como fenômeno complexo, analisável por diferentes ângulos, exige também um olhar cuidadoso sobre o sistema prisional e, em específico, sobre o perfil da população carcerária.

Em 2021 a população carcerária no Brasil atingiu o número de 820.689 pessoas, colocando o país em terceiro lugar entre as de maior contingente, precedido respectivamente por Estados Unidos e China.

Mostram-se como eloquentes, traços do perfil dessa população presa que é majoritariamente formada por negro(a)s (67,5%) jovens (46,4% – entre 18 e 29 anos) e baixo nível escolar.

É necessário frisar que não se pode estabelecer uma relação direta entre desigualdade e criminalidade, mas não faltam estudos indicando que o aumento da desigualdade socioeconômica, do desemprego e desalento e da validação de doutrinas autoritárias e sua correlata defesa do porte de arma entre civis, são fatores que contribuem para o tensionamento das relações sociais e aumento da violência sistêmica.

Letalidade policial

Em 2013 foram registradas 2212 mortes em decorrência de ações policiais e, nos anos seguintes 3146, 3330, 4220, 5179, 6175, 6351, 6412 e 6145. A redução de 4,2% no ano passado, depois de sete anos consecutivos de aumento, é um sinal positivo, mas a taxa de 2.9 mortes a cada 100 mil habitantes continua alarmante.

E esses números ganham ainda mais gravidade quando cruzados com a variável racial. Entre as vítimas da letalidade policial cuja identificação racial foi registrada, ao menos 81,5% são negros (pretos e pardos), evidenciando o racismo estrutural presente nas ações policiais.

Os estados com mais vítimas da letalidade policial, em números absolutos são: Rio de Janeiro (1.356), Bahia (1.010), Goiás (576), São Paulo (570), Pará (541) e Paraná (413). Somados, esses seis estados foram responsáveis em 2021, por mais de 70% das mortes pela polícia no país.

Considerando as taxas de pessoas mortas pelas polícias para cada 100 mil habitantes, os estados com maior índice de mortos são, respectivamente, Amapá (17.2), Sergipe (9), Goiás (8), Rio de Janeiro (7.8), Bahia (6.7) e Pará (6.2).

Reduzindo a letalidade policial

O estado de São Paulo, o mais populoso do Brasil (46,6 milhões de habitantes) registrou uma queda de 30% entre 2020 e 2021 na taxa de mortes provocadas por policiais.

Análises tem apontado como uma das razões dessa queda, a implantação do Programa Olho Vivo, que consistiu na instalação de mais de cinco mil câmeras corporais “bodycams” em uniformes de policiais militares no estado. Segmentos da classe política, das corporações policiais e da população são contra as bodycams.

É importante destacar que, além da queda no número de vítimas fatais da ação policial, houve queda também na taxa de policiais mortos em operações. Ao todo, 183 policiais civis e militares da ativa foram vítimas de homicídio e outros crimes violentos em 2021.

Análises sobre o sistema prisional brasileiro revelam problemas de diferentes ordens, desde as péssimas condições de infraestrutura dos presídios até os aspectos jurídicos que envolvem os regimes de cumprimento e progressão das penas.

Uma política de encarceramento em massa consubstanciada no Pacote Anticrime lançado em 2019 pelo então Ministro da Justiça Sérgio Moro que dependeu da aprovação da Lei13.964/2019, além de receber inúmeras críticas tanto pelo equívoco na concepção quanto na sua ineficácia em termos de resultados, chocou-se com uma incapacidade de expansão de vagas, agravando a situação dos presídios superlotados.

Numa outra perspectiva, experiências voltadas a ressocialização de adolescentes e jovens infratores, ou em outras situações de vulnerabilidade, através do modelo fazenda-escola, envolvendo profissionais capacitados nas áreas da Educação e da Assistência Social suportados por projetos sociais que conectam diferentes atores sociais, já deram sinais positivos de que esse é um caminho a ser trilhado. Há canais importantes já abertos para a cooperação internacional nessa área.

Criminalidade como sintoma de problemas sociais estruturais

Sob essa perspectiva da criminalidade como sintoma, as posições que o país tem ocupado em rankings internacionais de violência e criminalidade colocam em evidência a gravidade de um problema estrutural cuja compreensão não pode ser alcançada sem que seja considerado o passado colonial-patriarcal-patrimonialista e escravista do país, um sistema que o fundou e moldou relações sociais baseadas na dominação, expropriação, racismo e uma série de outras violências.

O novo ministro da Justiça do Brasil, Flávio Dino, advogado, professor, senador, ex-juiz, ex-deputado, ex-governador do Maranhão por dois mandatos, já deu várias declarações após as reuniões de trabalho como integrante da equipe de transição do novo governo do Presidente Luís Inácio Lula d Silva, da necessidade de concepção de políticas para a área de Segurança Pública considerando o caráter social e sistêmico dos problemas que afligem o país.

Revogaço e perspectivas de futuro

Em novembro passado foi apresentada à sociedade brasileira e ao governo eleito um relatório contendo as conclusões de um rigoroso estudo acadêmico realizado por uma equipe de 20 pesquisadores liderada pelo cientista político e professor Josué Medeiros (Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ). Esse estudo defendeu a necessidade de revogação de um conjunto de medidas que tornaram, nos últimos anos, ainda mais difícil o enfrentamento sistêmico de problemas estruturais da sociedade brasileira, dentre os quais a violência e a criminalidade.

Depois da análise de um total de mais de 20 mil documentos referentes a atos do governo Bolsonaro, “medidas infralegais” (decretos, portarias e instruções normativas), unilaterais por serem atos do Poder Executivo, os pesquisadores selecionaram cerca de 200 desses atos que podem e devem ser revogados pelo novo Presidente, logo no início de seu governo.

No capítulo sobre Segurança Pública, só no que concerne ao “controle de armas, munições e demais produtos controlados” o relatório aponta 13 decretos, 16 portarias e 1 resolução que devem ser revogados.

Violências contra a mulher, feminicídios, violência sexual contra crianças e adolescentes, homofobia e demais violências contra integrantes das comunidades LGBTQIA+ são também tratadas no relatório e apontadas medidas que devem ser revogadas.

O relatório foi apresentado à Presidenta do Partido dos Trabalhadores, Gleisi Hoffman, que apresentou ao Presidente Lula e, em seguida, a todos os GT’s da equipe de transição.

A remoção do aparato fascista do governo Bolsonaro em áreas como segurança, educação, saúde, assistência social, meio ambiente, desenvolvimento agrário, direitos humanos, legislação trabalhista, entre outras, será imperiosa para que o Brasil possa ser reconduzido ao caminho do desenvolvimento sustentável, democrático e com justiça social.

É certo que a Educação vista como instrumento de emancipação humana, democrática, avessa à redutora visão utilitarista da “educação bancária” se ergue como instrumento indispensável para uma verdadeira transformação social. Também a Cultura, igualmente entendida e valorizada em suas dimensões democrática e plural é indissociável de um projeto de país que alcance amorosamente a todos.

É somente a partir de uma perspectiva sistêmica e democrática que a sociedade brasileira poderá vislumbrar no horizonte um futuro melhor, consciente de que o presente está a exigir de todos desejo e engajamento para a realização de mudanças significativas já no presente.

Quem tem fome (inclusive de justiça) tem pressa.

Arnaldo Cardoso, sociólogo e cientista político (PUC-SP), escritor e professor universitário.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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