Lava Jato, garantismo e jurisdição: uma articulação sempre necessária, por Ana Cláudia Pinho

Garantismo Jurídico é o melhor caminho para evitar que o sistema de justiça seja utilizado como estratégia perversa de perseguição a inimigos.

Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil
Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

Lava Jato, garantismo e jurisdição: uma articulação sempre necessária

por Ana Cláudia Pinho

“Toda vez que um juiz ou membro do Ministério Público
comete um abuso ou viola as leis, ou condena um inocente, ou
viola os direitos de um cidadão, esse juiz ou promotor mina a
legitimidade das suas funções e atenta contra os fundamentos
de sua independência”1
(Luigi Ferrajoli)


Em março desse 2023, completaram 9 anos do que se pode considerar como o “início” da assim chamada “Operação Lava Jato”. Muito já se escreveu sobre o tema e, a essa altura, parece-me desnecessário elencar aqui todas as (inúmeras) irregularidades praticadas (que vão desde a condução coercitiva do então ex-Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, até excessos de linguagem contidos na prolação da sentença, demonstrando, claramente, posições pessoais do juiz sentenciante ). 2

Nesse brevíssimo artigo me proponho a algo bem menos pretensioso: insistir que o Garantismo Jurídico, nos moldes delineados pelo professor Luigi Ferrajoli, é o melhor caminho teórico (com inegáveis consequências práticas) para evitar que o sistema de justiça criminal seja utilizado como estratégia perversa de perseguição a inimigos.

E por que o Garantismo é o melhor caminho? As razões de fundo epistemológico e normativo são várias , mas fico, aqui, com um fundamento de ordem política, que precede aquelas, e que fala por³ si só: o Garantismo é la legge del più debole, ou seja, a lei do mais fraco. Isto, que parece simples, possui implicações várias, em todas as esferas nas quais Ferrajoli – com densidade, profundidade, sofisticação e compromisso democrático – propõe-se a circular (e aqui me refiro, não só ao Garantismo Penal, mas ao Civil, Patrimonial, Social e Internacional). Porém, aos objetivos desse pequeno texto, interessa-nos, de perto, as consequências da “lei do mais fraco” no campo penal. A elas, pois.

Quando Ferrajoli articula a importante questão dos escopos e dos custos do Direito Penal, do Processo Penal e da própria pena, deixa claro que se trata de uma escolha meta-teórica, de uma opção política: entre a presunção da culpa e a presunção da inocência . 4

Nós, enquanto sociedade, temos duas opções muito claras, no que diz respeito ao poder de punir: i) optar por assumir o custo da ineficiência (pessoas eventualmente culpadas que, por quaisquer razões, não serão punidas) ou ii) optar pelo custo da injustiça (pessoas eventualmente inocentes que, por variadas razões, venham a sofrer o peso da pena). A primeira diz com a presunção de inocência (que, portanto, mais que um “princípio” – e não que isso seja pouca coisa – é uma escolha política); enquanto a segunda diz com a presunção de culpa, própria dos sistemas autoritários e inquisitórios.

A primeira (presunção de inocência) é a escolha pela civilidade. A segunda (presunção de culpa), a
escolha pela barbárie.

No nosso caso, a CRFB/88 deixou muito clara a sua escolha (política): a presunção de inocência (art. 5o, LVII). Quando aprofundamos o estudo dessa temática na obra de Ferrajoli, verificamos que ele parte de um axioma central (no Processo Penal) que é a chamada estrita jurisdicionalidade (a qual tem na estrita legalidade o seu axioma correspondente, no campo do Direito Penal). Em poucas palavras, a estrita jurisdicionalidade quer dizer o seguinte: para se punir alguém é preciso um processo; mas não qualquer processo! Ora, ninguém pode dizer que Tiradentes não foi condenado com base em um “processo”! Aliás, em Ouro Preto, tem até a comprovação física disto, no Museu dos Inconfidentes. Porém, pergunto: esse “processo” convenceu?

O Garantismo exige, pois, um processo qualificado, ou seja, que incorpore tantos outros direitos fundamentais do mais débil que, nesse momento, é, sem dúvida, o réu, seja ele quem for! Assim, Ferrajoli destaca a presunção de inocência (a que já me referi acima) e o contraditório (envolvendo o que ele chama de terzietà, que podemos traduzir por imparcialidade do juiz) como elementos-chave dessa teia garantista.

E, aqui, chegamos no ponto. Um processo penal somente é legítimo se (e somente se) a estrita jurisdicionalidade for rigorosamente observada. Esta, por sua vez, depende da satisfação de outras garantias como a presunção de inocência (escolha política) e o contraditório. Sem isso, estaremos diante de uma não-jurisdição, de um não-processo. E, portanto, de uma não-democracia! Afinal, lembremos, ainda com Ferrajoli, que a jurisdição é uma instituição de garantias . 5

Dito de outra forma: o exercício da jurisdição (muito embora comporte e exija a independência do juiz) é, também, vinculado. O juiz é independente, até a página 2… Ele pode muito, mas não pode tudo! É independente no que concerne a pressões de outros poderes e, até mesmo, da chamada “opinião pública”. Juiz não decide para a maioria, já que a natureza do Poder Judiciário é contra-
majoritária. Porém, sua independência encontra limites na estrita jurisdicionalidade, isto é, na
presunção de inocência, no contraditório, na terzietà.

Desde esse breve (e, reconheço, superficial) panorama do Garantismo Penal, conclui-se, sem qualquer dificuldade, que a Operação Lava Jato foi, exatamente, a sua antítese. A presunção sempre foi de culpa, os fins sempre justificaram os meios, a “opinião pública”- e não as leis e a Constituição – pautaram decisões judiciais, os membros do Ministério Público trocaram mensagens com o julgador, a bem demonstrar o quanto a terzietà – tão cara a qualquer processo minimamente democrático – passou ao largo.

E esse modelo de jurisdição, infelizmente, deixou cicatrizes. É bem verdade que o Supremo Tribunal Federal, em boa hora, mudou o rumo da nossa História, ao reconhecer as nulidades, que a academia séria já denunciava há tempos. Porém, ainda temos uma memória recente e mal digerida que, de uns tempos para cá, vem merecendo especial atenção de importantes setores do Poder Judiciário.

Talvez, todas as feridas deixadas pela Lava Jato, sobretudo as que culminaram com o fatídico 08/janeiro (sim, as coisas estão relacionadas… quem tiver olhos para ver, que veja), tenham, ao fim e ao cabo, servido para despertar, no mundo jurídico, um senso crítico e de desconfiança em relação aos discursos de emergência (por todos, o do “combate à corrupção, mas, serve também, por exemplo, para a falácia da“guerra às drogas”). Espero, sinceramente, que sim. E, espero mais, que se compreenda, de uma vez por todas, que punir é democrático, mas punir de qualquer maneira é tirânico.

Ana Cláudia Pinho – Doutora em Direito. Professora da UFPA. Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Garantismo em Movimento”. Promotora de Justiça do MPPA

NOTAS

1 FERRAJOLI, Luigi.“Constitucionalismo e Jurisdição”. In Direito penal como crítica da pena: estudos em homenagem a Juarez Tavares, por seu 70 Aniversário, em 02 de setembro de 2012. Organizadores: Luís Greco e Antônio Martins. Marcial Dons, 2012. Página 248.
2 Lembro que essas irregularidades foram reconhecidas pelo STF, no julgamento do HC 164493. Fundamentação exaustiva pode ser encontrada no Voto-Vista do Ministro Gilmar Mendes.
3 Para aprofundar o tema, FERRAJOLI, Luigi. Diritto e Ragione: teoria del garantismo penale. Editori Laterza. Roma, 1989.
4 Sobre o tema, consultar FERRAJOLI, Luigi. Il paradigma garantista: filosofia e critica del diritto penale. Editoriale Scientifica. Napoli, 2016.
5 Está claro que todas essas novas funções judiciárias não são funções de inovação, como as funções legislativas e de governo, mas de conservação e de implementação da ordem existente, uma vez que intervém e se justificam para reparar ou sancionar as violações da lei ou da Constituição. Especificamente, são funções de garantia dos direitos fundamentais, logicamente exigidas pelas limitações e pelos vínculos impostos à esfera pública, pelos direitos constitucionalmente estipulados, o que implica a necessidade de apoiá-los como garantias jurisdicionais capazes de intervir contra as violações dos mesmos”. (FERRAJOLI, Luigi.“Constitucionalismo e Jurisdição”. In Direito penal como crítica da pena: estudos em homenagem a Juarez Tavares, por seu 70 Aniversário, em 02 de setembro de 2012. Organizadores: Luís Greco e Antônio Martins. Marcial Dons, 2012. Página 245).

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