Regime das unidades assemelha internos da Fundação Casa a detentos, afirma antropólogo

Diferentemente do que se possa esperar do tratamento que deveria ser dispensado aos adolescentes que cumprem medida socioeducativa por terem cometido atos infracionais, “algumas ações adotadas pela instituição encarregada de reintegrar tais jovens à sociedade, em certa medida, simbolizam espécie de redução informal da maioridade penal”, afirma o antropólogo Fábio Mallart. Para ele, a discussão sobre a redução está deslocada por não focar políticas públicas efetivas que possam mudar a realidade dos adolescentes que cometeram atos infracionais.

Entre 2004 e 2009, Mallart se dedicou a dar aulas de comunicação e a desenvolver um jornal impresso elaborado pelos e para os próprios adolescentes internados, com matérias jornalísticas, histórias de vida, textos e fotografias. Neste período circulou por diversas unidades de internação nos complexos do Brás, Franco da Rocha, Tatuapé, Vila Maria e Raposo Tavares da antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM), atual  Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação CASA).

Ele enxerga como problemas, na forma de reintegração dos internos da Fundação à sociedade, uma série de medidas que se assemelham ao tratamento de adultos retidos em prisões. Para o antropólogo, já na arquitetura de alguns dos edifícios em que se encontram as unidades de internação “se pode perceber que o objetivo principal não é reeducar ou reintegrar. Os espaços de internação são destinados, exclusivamente, à contenção”.

Além disso, ele vê como um equívoco o fato de vários funcionários que ocupavam cargos na Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) e no Sistema Penitenciário do estado de São Paulo terem sido nomeados para cargos administrativos e diretivos  na Fundação CASA, como é o caso, por exemplo, da presidente da instituição, Berenice Gianella. “Isto traz para a instituição destinada aos adolescentes uma série de procedimentos do sistema penitenciário”, afirma.

Mallart ainda lembra que, em meados dos anos 2000, o governo do estado de São Paulo autorizou transferências de adolescentes da Fundação para o presídio de segurança máxima de Taubaté e para a penitenciária de Tupi Paulista. “Mesmo que provisoriamente, os adolescentes não devem ser tratados de nenhuma forma como prisioneiros pelo Estado”.

Ele também não vê a diminuição do número de rebeliões na fundação, como mostram as estatísticas, como mérito exclusivo do governo. Na verdade, considera o fato uma combinação de ações governamentais com o que se chama de ‘bandeira branca’. Mallart explica que após os ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC), em 2006, aconteceu o ‘Salve Geral’, comunicado enviado para todos que seguem as orientações do grupo criminosos. “Este, em específico, foi o salve geral da paz, a bandeira branca, em que todo tipo de agressão física foi proibida, tanto contra funcionários quanto entre os próprios adolescentes. Além disto, as rebeliões neste período devem ser evitadas”. Complementa com o fato de que muitas unidades de internação operam a partir das diretrizes do Primeiro Comando da Capital.

Funcionamento das ‘cadeias’

O antropólogo assinala que nem os internos se enxergam como adolescentes que cumprem medidas socioeducativas. Para eles, a medida socioeducativa equivale a uma pena punitiva e a unidade de internação a uma cadeia.

O antropólogo conta que em dias de visita, por exemplo, os alimentos levados pelos familiares são totalmente remexidos para ver se não há armas, drogas ou celulares escondidos. Além disto, em fotos, sorrisos dos internos não devem aparecer, pois são sinal de fraqueza. Mallart também comenta o que disse um piloto (cargo do interno que cuida de negociações com a diretoria das unidades): “Aqui só tem bandido, isso aqui é uma cadeia e não um parque de diversão. Como fica a situação se os funcionários pegarem as fotos e estivermos sorrindo? Não se pode demonstrar fraqueza, senão os caras vêm para cima”.

Piloto é o nome dado a um dos líderes das unidades de internação conhecidas como ‘cadeias dominadas’ pelos próprios adlescentes. “É estranho pensar que a denominação cadeia dominada possa vir a ser utilizada para uma instituição que lida com adolescentes, mas, na prática, é isto que ocorre em algumas das unidades”.

Mallart diz que, para os internos, existem três categorias de classificação das unidades de internação: as ‘cadeias dominadas’, em que a lógica de funcionamento é equivalente à das prisões e onde os internos determinam as regras; as unidades ‘na mão dos funça’ (funça é a abreviação de funcionários), em que os agentes estatais detém o controle; e as unidades ‘meio a meio’, em que há um equilíbrio de forças entre adolescentes e funcionários.

‘Cadeias dominadas’

Tal designação, de acordo com o antropólogo, vem do fato de estas ‘cadeias’ serem controladas pelos internos e orientadas pelas diretrizes (um tipo de código de ética) do principal grupo do crime organizado paulista, o PCC.

Ele diz que nesta categoria, a existência de uma hierarquia entre os internos é evidente. Além do piloto, entre outros cargos, há a figura do ‘faxina’. Os faxinas, segundo Mallart, cuidam de todas as atividades cotidianas, entre as quais, a limpeza da unidade e a distribuição dos alimentos. “São eles também que, quando há cursos, chamam os adolescentes que estão matriculados para as aulas, entre outras responsabilidades”.

A hierarquização, sob a ótica do antropólogo, feita da mesma forma que nas prisões, mostra outra semelhança entre os adolescentes e os adultos retidos em prisões. Ele explica que ela, assim como outras regras, se aplica ao cotidiano dos internos por meio da disseminação das regras do PCC não só nas unidades de internação, mas na rotina diária das ruas. “Estas orientações estão presentes no cotidiano deles principalmente em bairros da periferia ou pelo fato de o adolescente já ter pertencido a grupos criminosos menores que seguem as diretrizes do PCC”. Além disto, ele relata que apesar das agressões físicas a funcionários serem evitadas – porque significam a possibilidade de perdas de alguns benefícios conquistados por meio de negociações -, a pressão psicológica sobre os integrantes do corpo de funcionários é intensa.

Mallart conta que em uma de suas visitas, os adolescentes de uma das unidades não estavam frequentando a escola. Preocupada com as consequências e com a possibilidade de que organizações não governamentais fizessem pressão sobre a unidade, a diretoria pediu para falar com os pilotos. Houve uma negociação com a diretoria. Os internos queriam que algumas reivindicações fossem atendidas em troca da frequência escolar. “Acredito que elas tenham sido realmente atendidas ou pelo menos parcialmente, porque em minha próxima visita, todos estavam em sala de aula.” No entanto, o antropólogo diz que estas negociações são muito frágeis porque a diretoria pode ou não entrar em acordo com as lideranças, ou mesmo de uma hora para outra retirar o que concedeu.

‘Na mão dos funça’

Na ‘mão dos funça’ significa a ideia de submissão dos internos aos funcionários, em que “os adolescentes usam uniformes institucionais, as mãos entrelaçadas para trás, de cabeça baixa e a tudo que respondem vem em seguida a expressão: sim senhor ou não senhor”, relata  o antropólogo Fábio Mallart. Ele enfatiza também que há uma infinidade de regras como a revista três vezes ao dia, formação de filas antes de quaisquer atividades cotidianas, controle do tempo de banho, etc. “Para os internos o tempo passa devagar”, ele revela.

O controle rígido dos funcionários, porém, “muitas vezes vem carregado de castigos corporais ou coações morais e psicológicas que podem ser extraídos de relatos dos internos”. A aparente ideia de ordem e tranquilidade é só isto – aparência, diz ele.

Meio a meio

Segundo o antropólogo, nesta categoria de unidade, há uma disputa de poder: de um lado, os funcionários primam pelo uso da força e da coação física e psicológica. De outro, para recuperar o controle da cadeia, os internos agem aos poucos e de forma organizada por meio do estabelecimento da hierarquização, do contato com outras ‘cadeias’ e membros do PCC, além de denúncias a organizações de direitos humanos. Mallart afirma que esta é a categoria a que os internos costumam se referir da seguinte forma: “não é tudo nosso, mas também não é tudo deles”.

Mallart afirma que em qualquer uma delas, no entanto, os adolescentes internados não sofrem apenas privação de liberdade, mas estão inseridos em um contexto em que o funcionamento da instituição não é, com certeza, o previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Pelo contrário – segundo o antropólogo, seu trabalho mostra como as unidades de internação para adolescentes, progressivamente, alinham-se à dinâmica de funcionamento do sistema penitenciário paulista.
 

Fábio Mallart é autor da dissertação de mestrado Cadeias dominadas: dinâmicas de uma instituição em trajetórias de jovens internos (na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências da USP) e Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP/CEM).

Redação

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