O Estado pós-democrático e o Direito Achado na Boca de Fumo

Aqui mesmo no GGN fiz alguns apontamentos sobre o Direito Achado na Boca de Fumo https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/fhc-e-seu-novo-pitaco-tupiniquim. Volto ao assunto por causa de três livros lançados recentemente. O primeiro é da pesquisadora Luciana Zaffalon, o segundo Rubens R.R. Casara e o último de Jessé Souza.

O juiz Ruben R.R. Casara faz uma sofisticada avaliação do estado de decomposição do Sistema de Justiça. Diz ele:

“…seja qual for a manifestação de poder ou a estratégia direcionada à submissão do outro, sem a existência de limites o poder torna-se antidemocrático. Poder sem limite, seja do Estado, seja de particulares, gera opressão e arbítrio, inviabilizando qualquer pretensão democrática. Ou seja, a existência de limites ao poder é indispensável à democracia.” (Sociedade sem Lei, Rubens R.R. Casara, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2018, p. 12) 

Um pouco adiante referido autor é ainda mais contente. Ele defende a tese de que já ultrapassamos a fronteira entre a crise da democracia e a consolidação de um novo tipo de autoritarismo:

“Da tensão entre a pretensão de ausência de limites típica do ‘capitalismo sem luvas’ e os limites inerentes à concepção material de democracia gerou-se a ‘crise da democracia’ – que foi real, mas que hoje persiste apenas no campo das narrativas que pretendem produzir efeitos de verdade. Falar em ‘crise da democracia’, hoje, é um embuste para ocultar o fato de que a democracia foi superada por um modelo autoritário a serviço dos detentores do poder econômico; a chamada ‘pós-democracia’.” (Sociedade sem Lei, Rubens R.R. Casara, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2018, p. 13/14)

Luciana Zaffalon demonstrou como o governo do Estado de São Paulo conseguiu domesticar a Assembleia Legislativa para cooptar o Judiciário e o Ministério Paulista. Em troca de benesses salariais, juízes e promotores facilitaram a concretização da agenda autoritária e neoliberal dos tucanos paulistas, impediram a fiscalização dos abusos cometidos pela administração e pela Polícia Militar. A elite foi blindada e os pobres criminalizados.

“À medida que o Poder Legislativo adota como rotina a prática de transferir ao governador sua atribuição de dispor sobre os créditos adicionais, as tomadas de decisão sobre as suplementações orçamentárias passam a se consolidar com o alijamento da transparência verificada, por exemplo, na tramitação das propostas normativas aqui analisadas, tornadas públicas pelo sítio eletrônico da Alesp.

Compreendendo que tomadas de decisões políticas envolvem escolhas e negociações, especialmente entre as partes por elas diretamente afetadas, e se dão por meio de processos em que os envolvidos apresentam as alternativas que podem contribuir com a viabilização de suas propostas, destacamos o déficit democrático gerado a partir de uma rotina de tomadas de decisões orçamentárias sedimentada em negociações mantidas apenas entre o Poder Executivo e as instituições de justiça.” (A política da justiça, Hucitec, São Paulo, 2018, p. 193)

A autora também discute como e porque o toma lá dá cá entre o governador do Estado de São Paulo e as cúpulas do TJSP e do MPSP conseguiram reduzir o impacto democrático da CF/88. Num contexto de aumento da judicialização da política o espaço democrático foi reduzido pelo MPSP e pelo TJSP em troca das suplementações orçamentárias que possibilitaram aos juízes e promotores paulistas furarem o teto e se tornarem mais bem remunerados que seus pares em vários países europeus.

“As rotinas de negociações mantidas apenas entre o Governador do Estado e as instituições de justiça, orientadas por critérios desconhecidos e sobre os quais os órgãos públicos envolvidos não prestam conta, dialogam diretamente com as preocupações expressas por Bobbio ao definir a democracia ‘como o governo do público em público’, expressão que indica ‘todos aqueles expedientes institucionais que obrigam os governantes a tomarem as suas decisões às claras e permitem que os governados vejam como e onde as tomam’.

O autor também destacou que o poder invisível faz parte dos ‘insucessos da democracia’, descrição que se adequa com precisão aos desafios verificados com relação á transparência dos dados públicos referentes aos padrões remuneratórios das carreiras jurídicas paulistas, como ressaltamos no Capítulo 3.

Como vimos, não foi possível desvendar pelos chamados ‘portais de transparência’ a composição dos valores pagos aos membros das carreiras jurídicas, e a compreensão de quais são os fatos geradores dos acréscimos remuneratórios permaneceu um mistério, reconhecida no modus operandi das elites e de seus protetores, no caso, o Poder Judiciário.” (A política da justiça, Hucitec, São Paulo, 2018, p. 408)

A discussão feita por Rubens R.R. Casara é apenas teórica. Apesar de suas virtudes inegáveis, a pesquisa de Luciana Zaffalon se limitou aos aspectos nebulosos das relações e transações políticas, administrativas e orçamentárias entre o Executivo e o Sistema de Justiça do Estado de São Paulo. Entretanto, quem conseguiu expor de maneira nua e crua quais são os verdadeiros padrões de funcionamento do Sistema de Justiça no Estado pós-democrático foi Jessé de Souza.

Em seu novo livro, o sociólogo reproduziu a entrevista com um advogado de classe média alta que esclareceu de que maneira os juízes são seduzidos ou simplesmente comprados pelos donos do capital. O relato reproduzido por Jessé Souza é chocante e chega a causar repugnância.

“Com os juízes os presentes funcionam que é uma beleza. O cara termina incorporando ao salário – afinal, é a mania deles.” (A classe média no espelho, Jessé Souza, Estação Brasil, Rio de Janeiro, 2018, p. 176)

“… os caras são muito vaidosos, alguns se acham intelectuais. Quando o cara é muito vaidoso o método é pagar uma palestra com 100, 200 ou 300 mil reais, e ainda faz o cara se convencer de que é por sua cultura jurídica. Ou fazemos seminários internacionais com grandes jornais e revistas comentando e fotografando – aí eles piram. Nesse meio, você tem que saber comprar a vaidade dos caras, fazer com que se sintam mais importantes do que são. Ou então compramos diretamente a sentença.” (A classe média no espelho, Jessé Souza, Estação Brasil, Rio de Janeiro, 2018, p. 176/177)

“…o João mandou uma loura – que foi favorita dele durante um tempo e depois passou a trabalhar com a gente, dessas muito bonitas e de 1,80 de altura, como só tem no Sul – levar, numa bolsa grande dessas de marca, um milhão de reais, misturando reais e dólares

A ordem do João foi mais ou menos assim: ‘Põe aquele vestido vermelho justinho da Armani que te dei, entrega a mala e faz o juiz feliz.’ O fulano passou um fim de semana com a loura, ficou o dinheiro e a mala, e o João construiu a boate bem onde queria. É assim que funciona com o Judiciário.

Mas não foi uma experiência agradável, vou confessar, já que a moça foi humilhada de um modo meio violento. Fomos ela e eu levar a mala com dinheiro vivo para o juiz. Começamos a discutir o modus operandi jurídico do caso com o juiz e mais dois auxiliares na própria sala do juiz, depois do expediente.

Betina, era assim que a moça se chamava, era estudante de Direito e de fez em quando arriscava um palpite sobre o caso. A certa altura, o juiz se irritou e disse que ela não era advogada, mas puta, e estava ali para outro serviço. Na mesma hora, botou o pau para fora, na minha presença e de outros dois, e mandou a moça chupar.

Depois mandou que fizesse o mesmo com os dois funcionários. Em seguida entra um terceiro assistente, todos obviamente de confiança do juiz e de sua equipe ‘privada’. Ao ver a moça ainda de joelhos e já com o vestido meio rasgado, lança um olhar entre divertido e intrigado à cena, e então o juiz o interpela: ‘Quer também?’ Ato contínuo, a moça cumpre pela quarta vez o mesmo ritual. Esse pessoal adora um abuso, quase tanto quanto dinheiro.” (A classe média no espelho, Jessé Souza, Estação Brasil, Rio de Janeiro, 2018, p. 177/178)

As discussões teóricas de Rubens R.R. Casara e práticas de Luciana Zaffalon são importantes. Mas elas se tornam irrelevantes se não levarmos em consideração a obra de Jessé Souza. Afinal, além de expandir o abismo que existe entre o cotidiano e a teoria que fundamenta e/ou possibilita a crítica do Sistema de Justiça, o livro A classe média no espelho sugere que precisamos ultrapassar o refinamento teórico.

Num ambiente em que a função pública garante um benefício privado (“Com os juízes os presentes funcionam que é uma beleza”; “…compramos diretamente a sentença”), em que o suborno pode se tornar legítimo (“…pagar uma palestra com 100, 200 ou 300 mil reais”), em que os favores sexuais são usados como moeda de troca (o juiz “botou o pau para fora, na minha presença e de outros dois, e mandou a moça chupar”) e em que o abuso desumano dentro de um Fórum é encarado com naturalidade, o espaço público em que a justiça deveria ser distribuída, que era considerado sacrossanto na Antiguidade Clássica, já foi invadido pela ética dos traficantes de drogas dos morros cariocas. Ninguém ficaria surpreso ao saber que um dono de boca-de-fumo fez uma “mina” chupar o pau dele dentro do seu local de trabalho. O que o CNJ diria se ele obrigasse uma juíza venal a fazer isso dentro do Fórum?

Um juiz que recebe presentes, aceita suborno ou que chama a estagiária de puta e manda ela chupar o pau dele dentro do Fórum certamente não reconhece a validade e a eficácia dos princípios que norteiam a república brasileira. Ele é capaz de limpar a bunda com a Lei Orgânica da Magistratura e de proferir sentenças secretas determinando a morte de seus adversários.

No imaginário do juiz referido na obra de Jessé Souza (e de muitos outros membros do Sistema de Justiça) o Direito não “…se opone autónomamente a la voluntad particular y opinión del derecho y debe hacerse válido como universalidad.” (Filosofia del Derecho, Guillermo Federido Hégel, editorial Claridad, Buenos Aires, 1955, p. 190). Muito pelo contrário, é evidente que aquele juiz acredita que o Direito emana de sua augusta pessoa, razão pela qual a justiça só pode ser a expressão de sua vontade particular quer ela seja ou não comprada ou, pior, se apresente ao mundo como o jato de porra que foi ejaculado na boca da estagiária.

“Tá tudo dominado, mano. É nós na fita, maluco. Essa boca é nossa, porra.” Uma sentença comprada com dinheiro e/ou favores sexuais terá sido bem fundamentada se o juiz mencionar na fundamentação esses princípios do Direito Achado na Boca de Fumo?

No dia 19 de dezembro de 2018, o ministro do STF Marco Aurélio de Mello concedeu liminar no processo ajuizado por um partido político para, restabelecendo a autoridade da CF/88, mandar soltar todos os réus presos antes do trânsito em julgado da sentença condenatória proferida pela segunda instância. Essa decisão beneficia Lula. Imediatamente os advogados do ex-presidente requereram sua liberação à juíza federal encarregada da execução da pena.

Os advogados de Lula agiram corretamente. A decisão de Marco Aurélio de Mello é válida, eficaz e produz efeitos “erga omnes”. Portanto, basta o advogado do réu requerer a liberação do seu cliente no juízo da execução juntando uma cópia dela. O juiz não pode desobedecer a ordem do STF. O mandado de soltura pode ser confeccionado e cumprido no mesmo dia. Carolina Lebbos, porém, deu de ombros e indeferiu o pedido como se Lula não pudesse se beneficiar da decisão ou, pior, como se ela não tivesse que respeitar a ordem de um ministro do STF.

Em tese um juiz de primeira instância da Justiça Federal não pode e não deve ignorar decisão “erga omnes” proferida por ministro do STF. Entretanto, como o supremo virou um tribunal mínimo, liliputiano, a decisão judicial válida de Marco Aurélio de Mello virou papel de bunda usado. Sabem o que vai ocorrer com essa juiza rebelde e insubordinada? Nada. A Lei Orgânica da Magistratura caiu em desuso, pois o CNJ só funciona bem quando discute a criação de penduricalhos para os vagabundos de toga.

Algumas horas depois, pressionado pela imprensa, o presidente do STF revogou a decisão de Marco Aurélio de Mello. Dias Toffoli cometeu um erro jurídico grave e imperdoável. A decisão liminar concedida por um Ministro do STF só pode ser cassada pelo órgão colegiado daquele Tribunal. Toffoli só pode revogar uma liminar concedida por outro Tribunal num caso em que o próprio STF funcione como instância superior.

Além disso há um precedente do STF no sentido de que em ações similares àquela em que Marco Aurélio de Mello proferiu a decisão mencionada, o presidente do Tribunal não tem poder para suspender a liminar concedida  https://www.conjur.com.br/2015-jan-23/nao-cabe-suspensao-liminar-acao-constitucionalidade.

O comportamento ilegal, acintoso, desrespeitoso, rebelde e insubordinado de Carolina Lebbos e o abuso cometido por Dias Toffoli comprovam minha tese. O Direito Achado na Boca de Fumo já está em vigor no Brasil. Salve-se quem puder. E quem não puder que tente se salvar também.

 

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

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