O outono da nossa democracia, por Marcelo Semer

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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do Justificando

O outono da nossa democracia

por Marcelo Semer

É comum que se diga que a esquerda, ou uma certa entidade abstrata, vez por outra alcunhada de bolivarianismo, governou o pais por treze anos.

A bandeira do Brasil não ficou vermelha.

Nenhuma empresa foi nacionalizada. Não houve desvio algum por meio de participação popular – nem um mísero plebiscito nesse tempo todo. Nenhuma alteração para aumentar mandatos próprios ou reduzir os alheios foi sequer proposta. Nenhum instrumento de censura foi criado, nem contra a mídia partidariamente ativa. Não houve polícia política –e se tivesse havido, certamente não seria para sustentar o governo. Até a remuneração do sacrossanto sistema financeiro foi mantida incólume –ou mesmo em ascensão. Nenhum torturador dos anos de chumbo, enfim, foi preso.

O tal bolivarianismo percorreu quatro eleições.

Em cerca de seis meses de governo interino e tampão, a Constituição já envelheceu vinte anos. A proteção social está sendo desfigurada por um teto orçamentário que deve travar o futuro de toda uma geração; a educação ideologicamente reformada por medida provisória; os longevos instrumentos de proteção da legislação trabalhista estão com os dias contados. Na política externa, dá-se o cavalo de pau em um transatlântico.

Para essas mudanças, que significam uma inversão expressiva de rumo, não foi preciso nenhuma eleição.

Só isso seria suficiente para que o conceito de normalidade democrática ficasse seriamente abalado. Afinal, se é possível uma mudança de tal porte sem eleições, para que mesmo elas seriam necessárias?

Infelizmente, o outono de nossa democracia não para por aí.

Vai sendo sentido nas grandes decisões e também nas pequenas atitudes.

Uma lei restringindo conteúdos que um professor pode dar em sala de aula, um espetáculo teatral interrompido pela polícia, por desrespeito ao país, a normalidade com que atos equiparados a tortura são admitidos como legítimos por autoridades incumbidas de garantir direitos. O esfacelamento do direito de greve faz par com a incessante criminalização dos movimentos sociais.

Como é comum nas ditaduras, até os menores agentes se sentem livres para soltar as garras de repressão. Um discurso judicial que reconhece legítima defesa no massacre, uma recomendação-mordaça que expulsa a política de espaços universitários, o estado de exceção admitido expressamente como fundamento para a exclusão da legalidade.

São pequenos estados de sítio incidentalmente declarados a cada dia.

O superpoder geral de cautela vai se tornando álibi para a supressão de liberdades e a solidez da cláusula pétrea desmancha no ar com a substituição de princípios por políticas abonadas pela mais alta Corte de justiça.

O encarceramento em massa que já fez nossa população prisional dobrar em uma década parece não ter sido ainda suficiente para aplacar tanta ira –apesar de combustível premium para o crescimento da própria criminalidade.

Embalado pelo sucesso midiático, o Ministério Público Federal apresenta um pacote de mudanças criminais que é um verdadeiro código da acusação –proposta de enorme potencial encarcerador e de vigor político para a própria instituição, amputando poder judicial e esmagando a defesa. Inúmeros mecanismos processuais norte-americanos são importados com entusiasmo, sem que se alerte que o encarceramento por lá resultou em 2,3 milhões de presos, majoritariamente negros, além de um altíssimo investimento no sistema penitenciário de que aqui nem se cogita.

Como conciliar 10 medidas encarceradoras com vinte anos de teto de gastos públicos, é uma pergunta que só faz calar.

Sim, é verdade, nós já vivemos crise pior que essa, seja na economia, seja na política.

Eu nasci em plena ditadura, entre o golpe de 64 e o AI-5. Quando fiz dezoito anos, estava nas ruas lutando por eleições diretas, que nos eram proibidas. Tínhamos ainda o porrete do Estado sobre nossas cabeças –Brasília sitiada por tanques, sindicalistas presos e um general no poder.

Havia, porém, um sopro de esperança no ar. A tarde caía como um viaduto, mas o futuro abria-se em um caminhão de perspectivas. Retomar a democracia, construir uma sociedade solidária, reduzir a enorme desigualdade que mantinha milhões em miséria.

Hoje quem tem dezoito anos é minha filha e saber que amanhã vai ser outro dia só nos remete a imagens ainda mais ameaçadoras.

Marcelo Semer é Juiz de Direito em SP e membro da Associação Juízes para Democracia. Junto a Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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  1. Do texto:
    “Sim, é verdade,

    Do texto:

    “Sim, é verdade, nós já vivemos crise pior que essa, seja na economia, seja na política.

    Havia, porém, um sopro de esperança no ar. A tarde caía como um viaduto, mas o futuro abria-se em um caminhão de perspectivas. Retomar a democracia, construir u

    Hoje quem tem dezoito anos é minha filha e saber que amanhã vai ser outro dia só nos remete a imagens ainda mais ameaçadoras.”

    Veredito:

    Juiz, se havia um sopro de esperança no ar naquela época e, hoje sua filha com 18 anos sabe que amanhã vai ser outro dia que só nos remete a imagens ainda mais ameaçadoras, o senhor contradisse na primeira frase aí de cima! o que se conclui é que “Sim É MENTIRA” que nós já vivemos crise pior que essa!”

    Então, pela indução:

    Culpado!

    1. Se o Juiz recorrer da

      Se o Juiz recorrer da sentença para o meu “tribunal”  reformo a sentença para “inocente”.

      Uma coisa é a gravidade da crise nos dois contextos; outra bem diferente era, é a esperança acerca dos desdobramentos. do futuro. 

       

       

  2. As boas lembranças irão sustentar a esperança

    Ainda, a sociedade se mantém assustada, como se estivesse o tempo todo de sobressalto diante de tantos fatos e versões distorcidas dos mesmos, além de perceber todo o contexto apenas balizado por uma ótica judiciárias bastante severa ou perversa(?),  jamais vista neste País, pelo menos,em tempos democráticos.

    É claro que todos queremos um controle maior do Estado e seus Poderes, para que se evite a corrupção. Mas não queremos ações jurídicas inconsequentes, que têm punido e judiado muito mais da sociedade do que dos corruptos…

    Entretanto, acredito que chegará o momento em que iremos despertar e nos reorganizarmos de forma a resgatar o que perdemos por termos consentido, sem indagações e reflexões mais profundas e coerentes.

    Quanto tempo levará não sabemos. Talvez até percebermos que nossas instituições são compostas por pessoas que não se fazem tão transparentes quanto o necessário para legislar, administrar e julgar.

    O dia em que as pessoas prestarem atenção aos fatos e não a seus próprios interesses, de acordo com cores e matizes que mais lhes “agradem”, os fatos, os argumentos, a lógica, a razoabilidade ocuparão o lugar das meras convicções!

    Os convictos ainda se renderão aos fatos, por alguma via, algum dia… Aí, o povo será soberano, conhecerá a justiça, a liberdade, o respeito e retomará a sua dignidade!

     

     

     

     

  3. Precisamos de um alvorecer

    Seu artigo reflete muito bem o nosso momento atual, e o que muito me preocupa, é que o golpe para se realizar quebrou todas as instituições do país. A quebra total do judiciário faz agora com que qualquer juiz de primeira instância tenha poderes impensáveis, de violar direitos de cidadãos, apenas por convicção, apenas porque a literatura assim o permite, ou porque a mídia assim o exige. Esquecendo do respeito às instituições a Suprema Carmem fez uma declaração corporativa, dizendo no fundo que o supremo dá aval a toda e qualquer ação. A simples afirmação de um juiz de que pode violar porque estamos em tempos de exceção faz com que qualquer juiz de qualquer instância tenha poderes acima de qualquer cidadão, e quando digo isto, falo de poderes constitucionais e de valores básicos da civilidade;quando o MInistério Publico não tem mais procuradores, mas sim promotores de acusação, que se manifestam de forma midiática, mas não se manifestam quando o direito de um cidadão é violado; quando promotores do MInistério Publico agem e interferem em qualquer atividade publica, simplesmente para exercer poder se cria uma perigosa  pulverização do poder, que pode levar a um verdadeiro caos. No nazismo e fascismo assim com na inquisição, muitos foram expropriados, simplesmente porque a priori pertenciam a um grupo que foi definido como alvo da perseguição, não havia neste caso necessidade de uma acusação  específica, ou de provas, bastava pertencer a este grupo. . Isto já ocorre em nossa sociedade  com o aval e o movimento de  boa parte da mídia, que ao cubrir a repressão nas periferias e comunidades cria estes consensos. Já foi criado o terrível consenso de que lá tem que ser assim  mesmo , pois só assim funciona. As notícias apenas informam, sem sequer criticar cada ação brutal de invasão domiciliar, de encarceramento, de violação dos direitos, sabendo que na justiça nada vai acontecer.  Cinicamente autoridades vem a público parabenizar a ação e dar mais poderes, a cada policial, a cada delegado . E este foi poder que gerou as milícias. Se estas ações da PM foram resultado da miitarização da PM, agora isto se dissemina também na PF, e  no judiciário de primeira instância que se sente a vontade para defender interesses  , como da Aurapel. No caso  juizes, e delegados e policiais militares se sentem a vontade para invadir,matar e ao final criminalizar as vítimas. E agem assim com total desfaçatez. pois  sabem do beneplácito de todos os orgãos de justiça, simplesmente porque estão agindo sobre aquela parcela  que já foi estigmatizado , e que , “merecem” segundo a convicção de um grupo ora no poder, serem tratados sem nenhum direito. A denùncia e a aparição na mídia dos abusos, parece funcionar como propaganda, afinal, parece ser importante mostrar na mídia que fazem porque querem e porque podem. Isto é uma demonstração de força e a mídia está aí para isto. Esta é a mesma mídia que durante mêses criou a imagem de uma revolução bolivariana do MST. Isto sem dúvida vai abrir brecha para pipocarem ações repressivas em todo o país,   Mas esta pulverização do poder não vai parar aí. As milicias do MBl, já se formam,. juizes de primeira instancia já pedem para si os mesmos poderes do superpoderoso de Curitiba. Os promotores do MP, querem criar leis que os mantenham no poder, e o supremo apenas aquiesce com todas as violações de direitos e tira mais direitos através de interpretações da lei. A PF  invade, prende coleta toneladas de informações que não sabemos como serão usadas, pois vazam de um lado e são sigilosas de outro. Informações retiradas sem um mandato claro, sem limitações, podendo conter informações relevantes policialmente, ou talvez relevantes empresarialmente. Mas nada disso sabemos, e sabemos menos ainda se este mundo de informações é importante para a Justiça, ou se alimentará poderes escusos. Não posso deixar de ver como certas informações foram parar em cortes americanas e internacionais contra nossa empresas, sem que tivessem qualquer efeito nos processos em andamento  no Brasil. Vemos processos cujas peças jurídicas são requentadas conforme o momento político. Vemos processos onde fica claro a manipulação de provas, feita de forma tão canhestra que na verdade tem apenas a função de dizer a todos, que eu faço o que quero porque eu tenho poder. Assim o trabalho policial, não constroi provas mas apenas diz que as tem. não investiga, apenas grampeia, e cede ao Juiz o material para que ele contrua uma acusação. Não se importa mais de sequer conviver com grampos ilegais. Acredito firmemente que na  PF  e no  MP e no judicário há membros  orgulhosos e zelosos de sua competência técnica e legal  e que atuam em  defesa da Justiça. Ainda creio na existência de muitos  que vivem pela justiça, por isto agradeço este post, pois me alimenta muito saber da posição de um Juiz, mas no momento como cidadão eu preciso de mais manifestações de juizes, eu preciso ver juízes, procuradores e policiais federais lutando para resgatar suas próprias instituições, pois isto é fundamental para um país

    UM STF , outras instâncias do Judiciário, o MP e PF não deveriam se enagajar numa luta contra a corrupção, mas sim na luta pela Justiça, esta sim a maior das lutas, a corrupção é apenas uma das lutas, que deve  sim ser lutada, mas  dentro do âmbito da JUSTICA e não o contrário.

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