A agonia do Natal, por Ricardo Araújo Pereira

Sugerido por Gilberto Cruvinel

A Agonia do Natal

Ricardo Araújo Pereira

Mais vale ser honesto e admitir que o Natal anda a transtornar cronistas há milénios. Não admira que a maior parte deles tenha pouco apreço pela quadra. Talvez o leitor não saiba disto, mas a legislação impede que os cronistas ignorem o Natal. Há que escrever uma crónica sobre o Natal todos os anos. E dois mil e sete anos disto acabam por cansar, evidentemente. O Natal é a besta negra dos cronistas, é um martírio, um calvário, uma cruz. No fundo, o Natal é a Páscoa dos cronistas. Enquanto o resto do mundo celebra um nascimento, eles agonizam. Por um ângulo novo, um ponto de vista inesperado, uma opinião surpreendente e inédita sobre a data. E o mais incrível é que ainda nenhum deles se tinha lembrado de falar da figura que os outros fazem quando escrevem, anualmente, sobre o Natal. É aqui que eu entro. Basicamente, há dois tipos de crónica natalícia: a moralista e a moralista que tenta moralizar os moralistas para que deixem de moralizar. Na primeira categoria estão todas as crónicas alguma vez escritas sobre o Natal; na segunda encontra -se esta, cuja solidão se explica, provavelmente, pela sua profunda complexidade. Que esta página esteja, uma vez mais, prenhe de profunda complexidade, écircunstância que só surpreende quem a não costuma ler.
Mas a profunda complexidade desta é mesmo muito profunda e, arrisco, especialmente complexa. Repare: se a crónica pretende moralizar os moralistas para que deixem de moralizar, está a falhar à partida o seu objectivo, que é fazer com que se deixe de moralizar, uma vez que ela própria moraliza. Pronto. Já tenho o lobo parietal posterior a latejar. Não falha: a profunda complexidade dá -me sempre dor de cabeça. A crónica natalícia moralista costuma apresentar duas ou três críticas recorrentes. Uma diz respeito ao consumismo acéfalo das pessoas. Tanta malta nos centros comerciais, mas que maçada, cáfilas de gente carregada de sacos, e tal. Trata -se de uma crítica pertinente. O consumismo acéfalo dos outros é repugnante, sobretudo na medida em que me impede de praticar o meu. Milhares de pessoas embrenhadas no seu consumismo acéfalo dificultam -me a tarefa de consumir acefalamente, que é tão retemperadora da alma, o que raras vezes se admite. O consumismo acéfalo não merece a má imprensa que tem. Outra crítica: a vontade artificial de sermos bondosos, que é tão hipócrita porque dura apenas uma semana e desaparece no resto do ano. A verdade é que a preocupação dos cronistas com a hipocrisia é igualmente hipócrita, porque também dura apenas uma semana e desaparece no resto do ano. As pessoas são hipócritasdurante todo o ano (eu, pelo menos, sou), mas os cronistas, por incompetência ou má vontade, só assinalam a hipocrisia natalícia. Pois eu digo: que se lixem os moralistas. Ou, usando de hipocrisia natalícia: bem – aventurados sejam os moralistas. Mas que fique claro que, hipocrisias à parte, eu quero mesmo que eles se lixem. 

— em «Novas Crónicas da Boca do Inferno», que recebeu este ano o Grande Prémio de Crónica APE, Portugal

Redação

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