Conversa com o lixeiro, de Drummond

Enviado por Mara L. Baraúna

Amigo lixeiro, mais paciência.

Você não pode fazer greve.
Não lhe falaram isto, pela voz
do seu prudente sindicato?
Não sabe que sua pá de lixo
é essencial à segurança nacional?
A lei o diz (decreto-lei que
nem sei se pode assim chamar-se,
em todo caso papel forte,
papel assustador). Tome cuidado,
lixeiro camarada, e pegue a pá,
me remova depressa este monturo
que ofende a minha vista e o meu olfato.

Você já pensou que descalabro,
que injustiça ao nosso status ipanêmico, lebloniano,
sanconrádico,
barramárico,
se as calçadas da Vieira Souto e outras conspícuas
vias de alto coturno continuarem
repletas de pacotes, latões e sacos plásticos
(estes, embora azuis), anunciando
uma outra e feia festa: a da decomposição
mor das coisas do nosso tempo,
orgulhoso de técnica e de cleaning?
.
Ah, que feio, meu querido,
essa irmanar de ruas, avenidas,
becos, bulevares, vielas e betesgas e tatatá
do nosso Rio tão turístico
e tão compartimentado socialmente,
na mesma chave de perfume intenso
que Lanvin jamais assinaria!

Veja você, meu caro irrefletido:
a Rua Cata-Piolho, em Deus-me-livre,
equiparada à Atlântica Avenida
(ou esta àquela)
por idêntico cheiro e as mesmas moscas
sartrianamente varejando,
os restos tão diversos uns dos outros,
como se até nos restos não houvesse
a diferença que vai do lixo ao luxo!

Há lixo e lixo, meu lixeiro.
O lixo comercial é bem distinto
do lixo residencial, e este, complexo,
oferece os mais vários atrativos
a quem sequer tem lixo a jogar fora.
Ouço falar que tudo se resume
em você ganhar um pouco mais
de mínimos salários.
Ora essa, rapaz: já não lhe basta
ser o confiscável serviçal
a que o Rio confere a alta missão
de sumir com seus podres, contribuindo
para que nossa imagem se redobre
de graças mil sob este céu de anil?

Vamos, aperte mais o cinto,
se o tiver (barbante mesmo serve)
e pense na cidade, nos seus mitos
que cumpre manter asseados e luzidos.

Não me faça mais greve, irmão-lixeiro.
Eu sei que há pouco pão e muita pá,
e nem sempre ou jamais se encontram dólares,
jóias, letras de câmbio e outros milagres
no aterro sanitário.

E daí? Você tem a ginga, o molejo necessários
para tirar de letra um samba caprichado
naqueles comerciais de televisão,
e ganhar com isto o seu cachê
fazendo frente ao torniquete
da inflação.

Pelo que, prezadíssimo lixeiro,
estamos conversados e entendidos:
você já sabe que é essencial
à segurança nacional
e, por que não, à segurança multinacional.
.
Carlos Drummond de Andrade

Redação

6 Comentários

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    1. Vc real/ nao entendeu nada, ou está fazendo ironia sobre a dele?

      Vc nao viu que é um texto irônico, de CRÍTICA aos que pensam assim? 

    1. Apenas “quase”. Na década de

      Apenas “quase”. Na década de 80 era muito comum as oposições sindicais, apoiadas pela CUT liderarem greves contra a pelegada ou sindicalistas amarelos, apoiados pela ditadura, como joaquinzão, Medeiros e os interventores dos bancários.sp, apeoesp, metrô e metalurgicos. Da epoca é famosa a existencia do MOMSP – Movimento de Oposição Metalurgica de São Paulo. Nos dias que correm, os trabalhadores dos estão fasendo greve contra as mudanças nos panos de saude bancadas pela ECT de forma unilateral e as greves pipocam em todo o país contra o apoio da CUT, cujos dirigentes acorrem às unidades onde ficam os carteiros, desestimulando-os a aderirem a greve.

  1. Maravilha.
    Mas hoje já surgiu

    Maravilha.

    Mas hoje já surgiu no noticiário da TV alguém insinuando ligação com o PR e, pra variar, o PSOL. Ô idéia fixa, sô.

    Devem ter sido os partidos que pagaram aos pelegos para não aparecerem na assembléia que eles mesmos convocaram.

    Haja estômago.

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