O pote vazio da Geleia Geral, por Sergio Saraiva

Por Sergio Saraiva

Lendo Torquato Neto – Geleia Geral – me dou conta de como ele é atual e de como é simbólico de que somos um país que teve a sua chance, mas não deu certo

Por uma coincidência, seu aniversário de nascimento deu-se em 09 de novembro. Nasceu em 1944 e, há poucos dias, teria completado 73 anos, não tivesse suicidado no mesmo dia 09 de novembro de 1972, há 45 anos. Acabara de completar 28 anos.

Vida tão fina como a cajuína cristalina em Teresina. Foi-se como alguém que apagasse a luz, vedasse a porta e abrisse o gás. “Para mim chega!”. Não se esqueceu de se despedir em um bilhete.

Que seja citado em canções por Chico e Caetano é representativo da sua importância para aquele momento cultural. O da resistência à ditadura pós AI-5. Um momento de forte intolerância ao que destoasse da ordem unida.

Interessante que as polêmicas girassem em torno de Chico e Caetano.

“Caetano Veloso é um que não está esperando por nada – ele deve saber com certeza, que o princípio está no fim, isso que ele deixa sangrar, do lado de dentro, do lado de fora. Está vivo, novamente passando entre as coisas e sabendo que tudo só é meio do fogo – e cai no fogo sabendo que vau se queimar”.

“Leio numa coluna por aí que a “timidez” de Chico Buarque, no show no canecão, parece muito mais com má vontade do que com outra coisa qualquer. O comentário, inteiramente dirigido, faz parte da incontrolável perseguição de que Chico Buarque é vítima, hoje em dia, pelo obscurantismo deste país milongueiro. Pelo seguinte: Chico representa atualmente, mais do que qualquer outro compositor, a força viva da resistência à oficialização geral da música popular brasileira”.

Quarenta e cinco anos depois, ambos ainda são vanguarda. E incomodam o país milongueiro e obscurantista formado de “meninos conservadores” que sequer estavam, então, nos escrotos de seus pais e por outros oportunistas “pornô-conservadores” que ainda não haviam entrado para a escola primária.

Trágico. Você diz que, depois deles, não apareceu mais ninguém e minha dor é perceber que, apesar de terem feito tudo o que fizeram, ainda somos os mesmos e nossos filhos vivem como os nossos pais.

A mesma pequeno-burguesia intolerante e agressiva em relação ao diferente:

“História de cabelos… um cara suado e de gravata, cara de ódio, passa por mim na Conde do Bonfim, cara de uns quarenta anos, cara de pai de família, classe média típico nacional, passa no seu fusquinhazinho e, quando me vê, dá um berro: cachorro cabeludo. Inteiramente maluco, o cara. Doido de pedra. Ou não?”.

Sim, Torquato, o país da época em meio a uma ditadura e a preocupação com comprimento dos cabelos de alguém. Soaria surreal, não fosse tão atual.

Hoje preocupam-se com homens pelados em museus. O país tendo seu futuro leiloado a preço vil por uma gangue de mafiosos que tomou o poder e a preocupação é com um homem nu em um museu. No mesmo MAM citado por Torquato como centro de efervescência cultural. “Tudo vai mal, tudo. Tudo é igual quando eu canto e sou mudo”.

“É assim que eles estão: doidos, malucos loucos e perigosos. Ou não?”

Sim Torquato. Doença hereditária passando por três gerações.

Mas, na Geleia Geral da década de setenta do século passado, ainda havia como comprar uma passagem para o “Expresso 2222 que partia direto de Bom Sucesso para depois do ano 2000”.

A Era de Aquarius e o Terceiro Milênio tão próximos e tão futuristas.

E eram possíveis frases assim: “no dia do amor universal, que todos saibam exatamente o que precisam fazer, cada um no seu comando” ou “há muitos nomes à disposição de quem queira dar nomes ao fogo, no meio do redemoinho …”

Havia no horizonte uma ditadura que ao se acabar abria as portas de um novo país.

A ditadura acabou e por três décadas tentamos construir esse novo país. Não conseguimos. O fogo apagou, o expresso passou do ano 2000 e não há mais que esperar pelo dia do amor universal.

Torquato zarpou na navilouca e, da Geleia Geral, nos restou um pote vazio.

 

PS: Oficina de Concertos Gerais e Poesia recomenda: “Torquatália” – organizado por Paulo Roberto Pires.

Redação

5 Comentários

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  1. Com certeza, quem nos faz

    Com certeza, quem nos faz falta ante o atraso institucionalizado pelos defensores da exceção, mera “pequena burguesia de direita facilmente influenciável”, disse o Argeu Santarém, também nos longínquos anos 70, em Passo Fundo, de onde saiu o Tarso e para onde voltou o Bocajão.

  2. Sérgio,

    artigo primoroso. Vai para meus arquivos, que uso sempre que preciso ler para melhor. Torquato teria, hoje, um ano a mais do que eu. Estaria pensando a cultura do próximo século.

    Abraços

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