Retalhos literários (I-IV), por Felipe Costa

Retalhos literários (I-IV), por Felipe A. P . L. Costa

Em tempos de nanismo político e cultural, nada como examinar (ou reexaminar) a obra viva de alguns gigantes do passado (retalhos extraídos do blogue Poesia contra a guerra).

I. A família, a juventude, a cultura (1936)

Leon Trotsky (1879-1940)

Ainda que na URSS o marxismo seja, formalmente, a doutrina oficial, no decorrer nos últimos doze anos não foi publicada uma única obra marxista – tratando de economia, de sociologia, de história ou de filosofia – cuja tradução merecesse atenção. A produção marxista não sai dos limites da compilação escolástica, que nada faz além de repisar as velhas idéias aprovadas e utilizar as mesmas citações segundo as necessidades do momento.

A expensas do Estado, são publicados milhões de exemplares de livros e brochuras que não fazem falta a ninguém, fabricados à custa de goma, lisonjas e outros ingredientes pastosos. Os marxistas que poderiam dizer qualquer coisa de útil e de pessoal estão aferrolhados, ou forçados a calar-se. Isto, apesar de a revolução das formas sociais pôr a todo o momento problemas grandiosos!

A honestidade, sem a qual não há trabalho teórico, é pisada. As notas explicativas, acrescentadas aos escritos de Lenine, são retocadas de alto a baixo em cada reedição com o fim de servir os interesses pessoais do estado-maior governamental, e engrandecer os chefes, denegrindo os seus adversários e apagando certos vestígios. Os manuais de história do partido e da revolução sofrem o mesmo tratamento. Os factos são deformados, esconde-se, ou, pelo contrário, forja-se documentos, as reputações forjam-se ou destroem-se. A simples comparação das edições sucessivas de um mesmo livro em doze anos, permite seguir a degenerescência do pensamento e da consciência dos dirigentes.

O regime totalitário não é menos funesto à literatura. A luta das tendências e das escolas deu lugar à interpretação da vontade dos chefes. Todos os grupos pertencem obrigatoriamente a uma organização única, espécie de campo de concentração das letras. Escritores medíocres, mas bem pensantes como [Fyodor] Gladkov e [Alexandr] Serafimovich são proclamados clássicos. Os escritores dotados que não sabem adulterar-se [o] quanto é desejável, são acossados por matilhas de conselheiros sem escrúpulos, armados de citações. Grandes artistas suicidam-se; outros procuram assuntos para os seus trabalhos num passado longínquo, ou calam-se. Os livros honestos e que trazem a marca do talento só aparecem por acaso, como que escapados ao cerco; são uma espécie de contrabando.

[Trotsky, L. 1977. A revolução traída. Lisboa, Antídoto.]

II. Sobre o fascismo (1969)

Ernest Mandel (1923-1995)

1. A história do fascismo é simultaneamente a história da análise teórica do fascismo. A simultaneidade de aparição de um fenómeno social e das tentativas feitas para o compreender é mais evidente no caso do fascismo do que em qualquer outro exemplo da história moderna.

2. A teoria do fascismo de Trotsky é o produto do método marxista de análise da sociedade.

3. A teoria do fascismo de Trotsky é formada por uma unidade de seis elementos; no interior desta unidade cada elemento possui uma certa autonomia e uma evolução determinada em virtude das suas contradições internas: mas a unidade só pode ser compreendida como uma totalidade fechada e dinâmica na qual esses elementos, não isoladamente mas na sua intrínseca conexão recíproca, podem explicar o ascenso, a vitória e a queda da ditadura fascista.

a) O ascenso do fascismo é a expressão da grave crise social do capitalismo decadente, uma crise estrutural que pode coincidir – como nos anos 1929-1933 – com uma crise econômica clássica de sobreprodução, mas que é muito mais ampla do que uma simples flutuação de conjuntura.

b) Na época do imperialismo e do movimento operário contemporâneo, historicamente desenvolvimento, a burguesia exerce o seu domínio político do modo mais vantajoso, isto é, com o mínimo de custos através da democracia parlamentar burguesa.

c) Nas condições do capitalismo industrial monopolista contemporâneo e dada a imensa desproporção numérica entre os trabalhadores assalariados e os grandes capitalistas, uma tão grande centralização do poder de Estado, que implica além disso a destruição da maior parte das conquistas do movimento operário contemporâneo (em particular de todos “os gérmens de democracia proletária no quadro da democracia burguesa, que são as organização de massa do movimento operário”, segundo a correcta definição de Trotsky), é praticamente irrealizável por meios puramente técnicos.

d) Um tal movimento de massas apenas pode ser construído na base da pequena-burguesia, a terceira classe social do capitalismo, que se encontra entre o proletariado e a burguesia. Se esta pequena-burguesia é atingida duramente pela crise estrutural do capitalismo decadente (inflação, falência das pequenas empresas, desemprego maciço de diplomados, técnicos e desempregados das categorias superiores), de modo a cair no desespero, surgirá, pelo menos numa parte dessa classe, um movimento tipicamente pequeno-burguês feito de reminiscências ideológicas e rancor psicológico, que alia a um nacionalismo extremo e a uma demagogia anticapitalista violenta, pelo menos em palavras, um profundo ódio em relação ao movimento operário organizado (“abaixo o marxismo”, “abaixo o comunismo”).

e) Para que a ditadura fascista possa cumprir a sua função histórica, o movimento operário tem de ser previamente derrotado e esmagado; mas isto só é possível se antes da tomada do poder, o equilíbrio se deslocar a favor dos bandos fascistas e em detrimento da classe operária.

f) Se o fascismo conseguir “esmagar o movimento operário sob as suas investidas”, terá cumprido o seu dever do ponto de vista do capitalismo monopolista; o seu movimento de massas acaba por burocratizar-se e é em grande parte absorvido pelo aparelho de Estado burguês; isto é possível apenas na medida em que as formas extremas de demagogia plebeia pequeno-buguesa, presentes nos “objectivos do movimento”, desapareçam e acabem por ser apagadas pela ideologia oficial.

[Mandel, E. 1976. Sobre o fascismo. Lisboa, Antídoto.]

III. O apanhador no campo de centeio (1951)

J. D. Salinger (1919-2010)

1. Se vão mesmo querer ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é onde eu nasci, como passei a porcaria da minha infância, o que meus pais faziam antes que eu nascesse, e toda essa lenga-lenga tipo David Coperfield, mas, para dizer a verdade, não estou com vontade de falar sobre isso. Em primeiro lugar, esse negócio me chateia e, além disso, meus pais teriam um troço se eu contasse qualquer coisa íntima sobre eles.

3. Sou o maior mentiroso do mundo. É bárbaro. Se vou até a esquina comprar uma revista e alguém me pergunta onde é que estou indo, sou capaz de dizer que vou a uma ópera. É terrível.

4. Não tinha nada de especial para fazer, por isso acompanhei o Stradlater até o banheiro, para bater papo enquanto ele fazia a barba. Éramos as únicas pessoas no banheiro, porque todo mundo ainda estava no jogo. Estava quente como o diabo, as janelas todas embaciadas. Havia umas dez pias, encostadas na parede. Stradlater ocupava a do centro; sentei numa, ao lado dele, e comecei a abrir e fechar a torneira de água fria – um hábito nervoso que eu tenho.

8. Era muito tarde para chamar um táxi ou coisa parecida, por isso fui mesmo a pé até a estação. Não era tão longe, mas fazia um frio danado, a neve dificultava a caminhada e as malas iam chacoalhando como umas desgraçadas de encontro a minhas pernas. Mas, de qualquer maneira, até que me sentia bem com o ar puro e tudo. O único problema era que o frio fazia meu nariz doer, e aumentava a dor que eu já estava sentido na parte de dentro do meu lábio inferior, onde o safado do Stradlater tinha me acertado.

9. Assim que cheguei na Estação Pennsylvania fui entrando na primeira cabine telefônica que encontrei. Me deu vontade de telefonar para alguém. Deixei as malas do lado de fora, junto com à cabine, para poder vigiá-las, mas, lá dentro, não consegui pensar em ninguém para telefonar. Meu irmão D. B. mora em Hollywood. Minha irmã menor, a Phoebe, vai para a cama lá pelas nove horas – por isso não podia ligar para ela.

10. Ainda era bem cedo. Não me lembro da hora, mas não era muito tarde. Se há uma coisa que detesto é ir para cama sem estar ao menos cansado.

21. Sentei diante da escrivaninha do D. B. e fiquei olhando os troços que estavam ali por cima. Eram as coisas da Phoebe, da escola e tudo. O que mais tinha era livro. Em cima da pilha estava o Aritmética é Divertido. Abri a primeira página para dar uma olhada. Phoebe tinha escrito:

PHOEBE WEATHERFIELD CAUFIELD

4B – 1

Me esbaldei. O segundo nome dela é Josephine, e não Weatherfield. Mas ela não gosta e, por isso, cada vez que a vejo ela está usando um novo segundo nome.

22. Seja lá como for, fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto – quer dizer, ninguém grande – a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer. Sei que é maluquice.

[Salinger, J. D. s/d. O apanhador no campo de centeio, 12ª edição. RJ, Editora do Autor.]

IV. Pais e filhos (1977)

Christopher Lasch (1932-1994)

A erosão da autoridade paterna e a delegação da disciplina a outras agências criaram um fosso ainda maior entre a disciplina e a afeição na família norte-americana – um resultado semelhante àquele deliberadamente criado pelo kibbutz israelense e por outras experiências de vida comunal. No kibbutz, segundo seus admiradores, a criança só vê os pais em cenários ‘afetivos’, ao passo que o treinamento higiênico e outras formas de disciplina são atribuídos a agências socializadas de educação infantil. Este arranjo supostamente poupa à família os conflitos que emergem quando as mesmas pessoas exercitam o amor e a disciplina. […]

Estudos recentes sobre a juventude norte-americana mostram o quanto a prática se conforma estritamente a este ideal, ao menos superficialmente. Repetidamente, os jovens asseguram aos entrevistadores que as relações com seus pais são desprovidas de tensões, que suas famílias são ‘anormalmente normais’ e que mesmo o frio distanciamento de seus pais não lhes provoca qualquer ressentimento. Entretanto, o aumento do suicídio entre os estudantes, da dependência de drogas e da impotência imediatamente coloca sob suspeita este quadro agradável. […]

Na superfície, a juventude americana não parece experimentar uma grande fixação sexual por qualquer um dos pais; seus sonhos e fantasias, porém, trazem à luz sentimentos de raiva ou desejo que podem ser remetidos às primeiras fases da infância.

A cultura popular manifesta a mesma cisão, tão pronunciada nas entrevistas psiquiátricas, entre imagens conflitantes da paternidade, entre a tranqüila superfície emocional da vida familiar e a raiva subjacente a ela. Filmes, quadrinhos e romances populares – particularmente os muitos romances de revolta adolescente que seguem o padrão de Catcher in the rye [O apanhador no campo de centeio], de J. D. Salinger – ridicularizam o pai ‘manifesto’, e a autoridade em geral, ao mesmo tempo em que descrevem figuras paternas ‘latentes’ com traços sinistros, agressivos, e caracterizadas como absolutamente inescrupulosas na perseguição que movem ao herói ou heroína.

[…] Mas as coisas afinal de contas não são tão simples – mesmo em fantasias populares que não se destacam por sua complexidade emocional e profundidade moral. O mundo noturno do melodrama, do mistério, do crime e da intriga – que se alterna com a comédia de situação familiar como cenário da maior parte das obras de ‘entretenimento’ popular – projeta na tira de quadrinhos ou na tela da televisão um mundo imaginário sombrio, onde as emoções mais profundas assomam à superfície. O melodrama policial traz à semiconsciência uma imagem paterna sinistra, enterrada mas não esquecida, sob o disfarce de um criminoso, de um ‘senhor do submundo’ ou de um oficial de polícia que comete crimes em nome da justiça. Em The Godfather [O poderoso chefão], a identificação do pai ao chefão torna-se inconfundível; mas, de forma atenuada, ela sempre foi responsável pela excitação de que depende o thriller popular para seduzir um público de massa.

[Lasch, C. 1991. Refúgio num mundo sem coração. RJ, Paz & Terra.]

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador