Por Sebastião Nunes
Onze horas da noite de 21 de abril de 1852. Três amigos estavam completamente chapados, de vinho, ópio e poesia, como gostavam de alardear em suas farras rotineiras. Eram estudantes de Direito na escola do Largo de São Francisco, e dois deles se tornariam famosos: Manuel Antônio Álvares de Azevedo, paulista, e Bernardo Joaquim da Silva Guimarães, mineiro de Ouro Preto. O terceiro, Aureliano José Lessa, também mineiro, mas natural de Diamantina, não se destacou. Nenhum deles havia publicado livro: eram muito novos. Apenas, no final daquele mesmo ano, Bernardo lançaria seu primeiro e, talvez, prematuro livro de versos, “Cantos da solidão”. Mas a veia humorística, iconoclasta e satírica era inegável nos três rapazotes, constituindo um dos laços mais fortes da vocação literária que os unia e levava a delírios românticos com assustadora frequência.
Naquele início de 1852 a situação do Brasil era caótica. Ninguém se entendia. O jovem imperador, de 26 anos, metia os pés pelas mãos. Os gabinetes ministeriais contavam dias como vitórias importantes. Deputados e senadores agiam como baratas tontas, dirigidos por grupelhos radicais à direita. Juízes faziam vistas grossas a monumentais disparates ou legislavam em causa própria. O Partido Conservador parecia em estado de choque e o Partido Liberal não tinha ideias. Diante da situação, os poetas decidiram escrever e publicar nos jornais uma nova Constituição, inspirada no momento. Durante alguns dias se dedicaram a esse divertido trabalho, quase sempre à noite e em casa de Manuel Antônio, cuja tuberculose avançara muito, agravada pelo tumor ósseo resultante de uma queda de cavalo.
A tarefa foi extremamente prazerosa e pouco tardou para estar concluída. Então, na referida noite de 21 de abril, pingaram o derradeiro ponto final, enxugaram o manuscrito com mata-borrão, guardaram penas e tinteiro e prepararam-se para o gozo.
Enquanto Álvares de Azevedo permanecia recostado nos travesseiros e Bernardo Guimarães fumava seu costumeiro charuto afundado numa otomana, Aureliano Lessa começou a ler, sério e compenetrado, como se o fizesse diante da corte, a “Constituição” recém-concluída, cheirando ainda a tinta fresca.
(O texto que se segue permaneceu desaparecido durante 163 anos, sendo descoberto entre papéis velhos de Aureliano José, na sua antiga casa em Conceição do Serro, na qual morreu há 154 anos. A explicação mais plausível para a não publicação foi a morte subsequente de Manuel Antônio, quatro dias depois. O descobridor, que conserva o manuscrito original em seu poder, exigiu anonimato.)
PROPOSTA DE CONSTITUIÇÃO PARA UM IMPÉRIO ASSUSTADO
DA ORGANIZAÇÃO NACIONAL
Artigo 10: O que não mata, engorda.
Parágrafo 10: Até formiga quer ter catarro.
Parágrafo 20: Ri o roto do esfarrapado e o sujo do mal lavado.
Artigo 20: Papagaio come o milho, periquito leva a fama.
Parágrafo 10: Casa em que não há gato, folga o rato.
Parágrafo 20: Quem não arrisca não petisca nem pega peixe sem isca.
Artigo 30: Se merda fosse dinheiro, pobre nascia sem traseiro.
Parágrafo 10: Quem não chora não mama.
DA DECLARAÇÃO DE DIREITOS
Artigo 10: Cada macaco no seu galho.
Parágrafo 10: Onde vai a corda vai a caçamba.
Parágrafo 20: O olho do dono é que engorda o porco.
Parágrafo 30: Praga de urubu magro não mata cavalo gordo.
Artigo 20: Miséria pouca é bobagem.
Parágrafo 10: Quem está no inferno está por conta do capeta.
Parágrafo 20: Gato escaldado tem medo de água fria.
Artigo 30: Uns gostam dos olhos, outros da remela.
Parágrafo 10: Mulher e cachaça em todo lugar se acha.
Parágrafo 20: A fome é o melhor tempero.
Parágrafo 30: Antes lamber do que cuspir.
DA ORDEM ECONÔMICA E SOCIAL
Artigo 10: Mais vale um toma que dois te darei.
Parágrafo 10: Vão-se os anéis, ficam os dedos.
Artigo 20: Quem nasce para cachorro morre latindo.
Parágrafo 10: Em festa de jacu nambu não entra.
Parágrafo 20: Um gambá cheira outro.
Artigo 30: Vergonha é furtar e não poder carregar.
Artigo 40: Quem pariu Mateus que o embale.
Parágrafo 10: Quem gosta de velho é reumatismo.
Parágrafo 20: Pobre vive é de teimoso.
Artigo 50: Ladrão que rouba ladrão tem 100 anos de perdão.
DA FAMÍLIA, DA EDUCAÇÃO E DA CULTURA
Artigo 10: Por fora bela viola, por dentro pão bolorento.
Artigo 20: Macaco velho não mete a mão em cumbuca.
Parágrafo 10: Pé de galinha não mata pinto.
Parágrafo 20: Papagaio velho não aprende a falar.
Parágrafo 30: A cavalo dado não se olham os dentes.
Artigo 30: Quem nasce para dez réis nunca chega a vintém.
Parágrafo 10: Preto, baiano e garrucha de um cano salva um por engano.
Parágrafo 20: Quando a desgraça entra pela porta a vergonha sai pela janela.
Artigo 40: Antes só do que mal acompanhado.
Parágrafo 10: Há males que vêm para bem.
Artigo 50: Quem vai na frente bebe água limpa.
Parágrafo 10: Para cavalo comedor, cabresto curto.
Parágrafo 20: Pela carruagem sabe-se quem vem dentro.
DISPOSIÇÕES GERAIS E TRANSITÓRIAS
Artigo 10: Miguel, Miguel! Não tens abelha e vendes mel!
Parágrafo 10: Quem dá aos pobres empresta a Deus.
Parágrafo 20: Quem não tem paciência não vê tripa de mosquito.
Artigo 20: O melhor da festa é esperar por ela.
Artigo 30: Porco magro é que suja a água.
Parágrafo 10: Quem parte e reparte fica com a melhor parte.
Parágrafo 20: O prato não é para quem o faz, mas para quem o come.
Parágrafo 30: Quem tem padrinho não morre pagão.
Parágrafo 40: Quem vai ao ar perde o lugar.
Artigo 40: O que seria dos ladinos se não fossem os tolos?
Parágrafo 10: Gente besta é alegria dos outros.
Artigo 50: Para galo velho, poleiro baixo.
Parágrafo 10: Em casa de enforcado não se fale em corda.
Parágrafo 20: Capote de pobre é cachaça.
Parágrafo 30: Quebrei minha viola para não ouvir zoada.
(Pela transcrição e atualização ortográfica, Sebastião Nunes)
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Reproduzo abaixo um episódio
Reproduzo abaixo um episódio que ocorreu com dois jornalistas que foram entrevistar Capistrano de Abreu (1853-1927):
“Dois jornalistas, redatoras d’ “A Manhã”, do Rio, foram procurar Capistrano de Abreu, para entrevista-lo sôbre o problema social no Brasil. Ao encontra-lo na rua, para solicitar-lhe um encontro, o erudito misantropo disse-lhes lógo, hostil:
– Estou em casa sempre até ás 11 do dia e depois das 9 da noite. Si quizerem ir, vão; si não quizerem, não vão. Para mim é indiferente.
No dia seguinte, houve a visita. O misantropo, deitado em uma rêde e cuspindo numa lata, achou que o país estava perdido. Tudo uma lástima. E concluiu, feroz:
– Agora andam falando em reforma constitucional. Querem atribuir os erros á lei… Eu proporia que se substituíssem todos os capítulos da Constituição, decretando: “Artigo único: todo brasileiro fica obrigado a ter vergonha”!
E cuspiu na lata.” (O Brasil Anedótico, obras completas de Humberto de Campos, livraria José Olympio, Rio de Janeiro, 1936, p. 60)
Se a Constituição sugerida por Capistrano de Abreu estivesse em vigor FHC não teria sido presidente, José Serra e Aloysio Nunes não teriam entrado na política e o Brasil não estaria em crise porque Dilma Rousseff combate a corrupção.
Interessante…
Pena que
Interessante…
Pena que perdi preciosos minutos relendo o texto para identificar os personagens. Uma hora Manuel Antonio Álvares de Azevedo é somente Manuel Antonio, outra hora é Álvares de Azevedo. Depois Aureliano José Lessa encolhe para Aureliano Lessa para reaparecer como Aureliano José. Seria “licença poética”? Ou só…
Haja…
Certamente, mais um encontro
Certamente, mais um encontro imaginário de Tião Nunes. A tal “Constituição” é do próprio Tião.