Juristas querem ser ouvidos sobre tombamento do Encontro das Águas

Comitê que inclui professores, arqueólogos e ambientalistas vai entrar com pedido para se tornar amicus curiae no processo no STF

Manaus, AM 28/08/2017 – Patrimônio natural, o Encontro das Águas do rio Negro com o Solimões visto da balsa velha que faz a travessia e liga Manaus à Careiro e à BR 319. (Foto Alberto César Araújo/Amazônia Real)

do Amazônia Real

Juristas querem ser ouvidos sobre tombamento do Encontro das Águas

Por Gabriel Ferreira


Manaus (AM) –O tombamento do Encontro das Águas, em Manaus, entra em um novo capítulo com a criação de um comitê formado por juristas, professores, arqueólogos e ambientalistas que sugere propostas de ações para assegurar a proteção integral da área, sem a construção de empreendimentos. É também a ação mais incisiva e derradeira para evitar a construção de um terminal portuário – o Porto das Lajes – nas proximidades do perímetro tombado, localizado na zona leste de Manaus. O Encontro das Águas (fenômeno hidrólogo dos rios Negro e Solimões)  foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2010, mas até hoje esse processo não foi homologado. Do outro lado do embate estão o governo do Amazonas e a empresa Lajes Logística, dona do Porto das Lajes, que em 2018 conseguiu licença prévia por parte do Iphan.

Formado pelos juristas Fernando Dantas e Lafayette Garcia, pela bióloga Elisa Wandelli, pelo antropólogo Ademir Ramos, entre outros especialistas, o comitê vai ingressar com pedido no Supremo Tribunal Federal (STF) para atuar como amicus curiae nos processos que tramitam na Corte. Amicus curiae (amigo da corte) é um instrumento jurídico utilizado em processos complexos com assunto de grande relevância ou repercussão social, com objetivo de fornecer informações importantes para o julgamento da causa.

“O Amicus Curiae pode apresentar estudos, pareceres, saberes tradicionais, etc que contribuam para o julgamento da causa”, explicou o jurista Lafayette Garcia, em entrevista à Amazônia Real. Garcia é mestre em Direito Agroambiental pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), onde atuou como professor, é especialista em Inteligência de Estado e atua como consultor independente do Programa das Nações Unidas Harmonia com a Natureza.

Lafayette Garcia afirmou que o pedido ao STF será feito ainda em novembro, junto de um pedido de audiência pública na Suprema Corte, em nome da Associação Antônio Vieira – Jesuítas Amazônia (ASAV), mantenedora do Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares). Ele conta que, qualquer um pode pedir para se tornar amicus curiae, mas uma solicitação de uma entidade representativa tem mais chances de ser atendida.

Lafayette Garcia durante a Audiência Pública Extraordinária Virtual sobre ” Homologação do Tombamento do Encontro das Águas (Rio Negro e Solimões) na Câmara dos Deputados em Brasília (Print de Tela)

Outra proposta do comitê é solicitar a nomeação do Encontro das Águas como Patrimônio da Humanidade da Unesco, com base no mesmo estudo utilizado para o tombamento nacional. O arqueólogo e livre-docente em Arqueologia Brasileira na Universidade de São Paulo (USP), Rossano Lopes, disse que “a questão agora é apontar a singularidade do evento para a Humanidade”. Para ele a importância do título seria “relevância e beleza cênica,  paisagística” e uma forma de proteção da área.

Conforme o arqueólogo, por ser um processo de nível internacional, não há um prazo. Mas ele chega em um momento importante. Os envolvidos no processo (governo do Amazonas, Lajes Logística e Iphan) estão prestes a chegar a uma conciliação e encerrar o caso que tramita no STF. Representantes da sociedade civil e grupos que se opõem à obra do porto nunca foram consultados.

Há 13 anos atuando na causa em defesa do tombamento do Encontro das Águas, o jurista Fernando de Carvalho Dantas elencou as seguintes especificações como estratégias de defesa do encontro das águas na Justiça: contestar os pedidos de desistências das Ações Civis Originárias e contestar possível acordo entre a Procuradoria Geral da República e a Procuradoria Geral do Estado  (PGE) do Amazonas. Segundo o jurista, não se pode negociar a proteção de bens comuns. Outra ação prevista é solicitar a realização de Audiência Pública no STF, dirigida pela Ministra Relatora das três ações civis, Cármen Lúcia.  

Dessa forma, ele afirma que o objetivo das contestações no Supremo visa à “proteção do bem comum patrimônio cultural encontro das Águas, em conformidade com a Constituição brasileira de 1988”.

Fernando de Carvalho Dantas foi coordenador do programa de Pós-Graduação de Direito Ambiental na Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e, atualmente, é professor titular da Universidade Federal de Goiás (UFG). Em 2008, quando o projeto do Porto das Lajes foi apresentado pelo governo do Amazonas, ele foi um dos primeiros especialistas a alertar para os impactos socioambientais do empreendimento. O Porto das Lajes, embora seja um empreendimento privado, tem no governo do Amazonas, em políticos e em órgãos estaduais e federais (como o próprio Iphan) seus maiores defensores. 

Audiência fez parte da mobilização

Deputado José Ricardo (PT-AM) na Audiência Pública sobre o tombamento do encontro das águas na Câmara (Foto: Paulo Sergio/Câmara dos Deputados)

Nos últimos meses, o impasse envolvendo o tombamento caminhava para um desfecho, quando o governo do Amazonas, por meio da PGE, apresentou uma proposta de criar um complexo biocultural na área paisagística do Encontro das Águas como uma medida mitigatória. Assim, o governo abriria mão de continuar com as ações judiciais que questionam o tombamento e o caso se daria por encerrado. Do lado do Porto das Lajes, a mesma decisão se confirmaria, tendo em vista que desde 2018 o empreendimento possui autorização do Iphan para construir o empreendimento. Essa conciliação começou a ser construída desde que a ministra Carmen Lúcia suspendeu as ações, no início deste ano.

No entanto, o projeto vem sendo rebatida por especialistas que integram o Comitê, que nos últimos meses iniciou as  articulações e estratégias para proteger o Encontro das Águas.

Um dos resultados dessas novas ações foi a realização da audiência pública no último dia 10, solicitada pelo deputado federal José Ricardo (PT), na Câmara dos Deputados. Com exceção do representante da empresa Lajes Logística, Gustavo Fernandes, todos os convidados participaram remotamente, entre eles o arqueólogo Eduardo Góes Neves, relator do pedido de tombamento, apresentado em 2010 ao Conselho Consultivo do Iphan.

Fernando de Carvalho Dantas afirma que esta nova fase pretende rebater os argumentos do governo do Amazonas e propor a integralidade da proteção do Encontro das Águas. 

“Rebater a proposta é importante porque a PGE quer fazer uma negociação de bens que são inegociáveis. Você não negocia bem comum. Então, o Encontro das Águas é um bem cultural paisagístico do povo da Amazônia, do povo brasileiro e do mundo […] Tanto do ponto de vista paisagístico, quanto do ponto de vista biológico e cultural , o Encontro das Águas marca uma excepcionalidade no mundo”. 

Audiência Pública Extraordinária Virtual sobre ” Homologação do Tombamento do Encontro das Águas (Rio Negro e Solimões) na Câmara dos Deputados em Brasília (Print de Tela)

PGR rejeitou proposta

O procurador-geral da República (PGR), Augusto Aras (Foto: Pedro França/Agência Senado)

Em 2014, no governo do atual senador Omar Aziz, o caso foi parar no STF, mas em 2020 o órgão suspendeu todas as ações na expectativa de que Iphan, o Ministério Público Federal, o governo do Amazonas e a empresa Lajes Logística, dona do Porto das Lajes, chegassem a uma “conciliação”.

A proposta apresentada pelo governo do Amazonas foi a criação do Complexo BioCultural do Encontro das Águas, projeto elaborado pela PGE em 9 de agosto de 2021 como mecanismo de proteção do Encontro das Águas e como forma de chegar a um consenso no processo que tramita no STF. No entanto, a proposta não foi aceita pela Procuradoria Geral da República (PGR) por “inviabilidade da celebração do acordo nos termos preliminarmente propostos pelo Estado do Amazonas”. A decisão da PGE, a que a Amazônia Real teve acesso, é do dia 3 de novembro de 2021.

Na justificativa, o procurador-geral da República, Augusto Aras, afirma que a proposta da PGE tem os seguintes problemas: “Natureza predominantemente programática da proposta, sem estabelecer efeitos concretos imediatos; Potencial violação ao princípio da precaução, uma vez que a proposta de acordo prevê o início de estudos apenas após homologada a conciliação e não delibera sobre a instalação do empreendimento pretendido pelo grupo econômico; Ausência de previsão sobre a participação de outros atores, demandados ou não nas ACOs, como sucede com órgãos de fiscalização ambiental/cultural, cuja integração ao projeto pode vir a ser necessária; Indefinição sobre possíveis condições resolutivas do acordo ou sobre fatos geradores da descontinuidade do projeto”.

Ambientalistas e juristas elogiaram a decisão da PGR, pois consideram a ideia do complexo uma “distorção”. “A ideia de bioculturalidade está relacionada a uma atitude humana, uma relação humana em harmonia com a natureza. Todos os povos antigos têm essa relação harmônica com a natureza, porque sabem que é da natureza que constroem a vida, que você tira seu sustento. Então o conceito de bioculturalidade decorre dessa relação harmônica entre seres humanos e natureza”, explicou Fernando Dantas de Carvalho.

E é justamente na perspectiva da justiça ecológica e do conceito de Direitos da Natureza, que os especialistas do direito ambiental pretendem reverter os projetos de empreendimento para a área tombada do Encontro das Águas.

O jurista Lafayette Garcia destaca que uma paisagem cultural não é apenas uma imagem, uma visão, mas um processo de interação entre o homem e a natureza. “É preciso respeitar não apenas a natureza em si como objeto de contemplação, mas reconhecer que a interação entre seres humanos e natureza que gera cultura é que realmente precisa de proteção”, disse Garcia . 

“O próprio Iphan tem o entendimento, e o instrumento legal, que fala da proteção da paisagem cultural, ou seja, não apenas da beleza cênica, mas das interações que acontecem ali”, acrescentou o jurista.

De acordo com Garcia, é preciso colocar o poder de decisão sobre a área “nas mãos das culturas que respeitam o encontro das águas”, em referência às populações humanas e não-humanas que ocupam a área. Nesta perspectiva, o tombamento não deve considerar apenas a paisagem e o visual da área, mas a natureza e os seres que vivem no entorno.

Nesse meio, segundo o jurista, há o poder “de fazer uma gestão compartilhada ou até o poder de vetar o empreendimento, que seja contrário a essas culturas, ou conseguir se unir com os empreendedores e construir empreendimentos favoráveis tanto ao desenvolvimento econômico como o desenvolvimento cultural, como também ao meio ambiente”.

Durante a audiência realizada no dia 10 de novembro, o representante da Lajes Logística, Guilherme Augusto, repetiu a retórica dos empresários de que eles não são contrários ao tombamento e que o empreendimento “não apresenta de maneira nenhuma ameaça ao encontro das águas”.

De acordo o representante, o Porto das Lajes não impacta o fenômeno encontro das águas e não existe a possibilidade de acabar com ele.

“Ele [empreendimento] inova. Traz um novo paradigma de construção. “Se alguma ação pode representar, um risco ao encontro das águas é a degradação que já ocorre”, disse Guilherme Augusto.

Guilherme Augusto  afirmou que o empreendimento não vai aumentar o volume de navios que transitam pela área. Segundo ele, acontecerá o oposto: “vai tentar reduzir essa carga, que essa carga passe pelo encontro das águas”.

“A operação do terminal portuário também não impacta no sítio geológico da Ponta das Lajes. Essa pesquisa já foi feita. O centro nacional de Arqueologia do Iphan também analisou o projeto sobre essa perspectiva e deu autorização para a outorga”, afirmou.

Caso está no STF

A ministra Carmen Lúcia (Foto: Glaucio Dettmar/Agência CNJ)

Sob a relatoria da ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Carmen Lúcia, há três ações civis originárias (ACO 2512, ACO 2513, ACO 2514). Ambas questionam, o licenciamento do Porto das Lajes, a obrigatoriedade do tombamento da área pelo Iphan e do destombamento pedido pelo governo do Amazonas; o tombamento, enquanto instituto jurídico de proteção já está realizado pelo Iphan, a homologação é procedimento complementar.

Como o caso continua tramitando, sobretudo depois da rejeição da proposta apresentada pela PGE, Fernando Dantas ressaltou a importância de uma audiência pública no STF para ouvir instituições e pessoas defensoras do Encontro das águas com informações para ajudar nas ações.

“É o momento oportuno de se ouvir representantes do Movimento SOS Encontro das águas, como pescadores e pescadoras, sábios indígenas e/ou tradicionais, artistas, lideranças comunitárias, arqueólogos e arqueólogas, professoras, professores, pesquisadoras e pesquisadores, jornalistas, poetas e poetisas, escritores e escritoras”, disse.

Amazônia Real entrou em contato por email com a assessoria da Suprema Corte, a respeito dos desdobramentos das ações e pedido de audiência, e foi informada que não há previsão de manifestações do STF para os casos.

Criação do complexo

Maquete digital do projeto do Porto das Lajes apresentada na Audiência Pública Extraordinária Virtual (Print de Tela)

No dia 9 de agosto de 2021, o procurador geral do Estado, Daniel Viegas, enviou ofício à PGR com “sugestão de acordo para realizar a criação do Complexo BioCultural do Encontro das Águas”. O documento apresenta proposta sobre as três ações acerca do Tombamento do Encontro das Águas. Segundo Viegas, a proposta do completo foi baseada em um estudo elaborado anteriormente por estudiosos e organizações ambientais, como a WCS Brasil.

“Esta proposta baseia-se no modelo de Mosaicos de Áreas Protegidas no Brasil, um modelo de gestão integrada nacional e regional que facilita a governança entre jurisdições em um cenário compartilhado, através da coordenação e harmonização de instrumentos de planejamento e da adoção de estruturas e ferramentas para a gestão de recursos naturais compartilhados e a redução de ameaças comuns nas três esferas da gestão pública: Federal, Estadual e Municipal e do setor privado (RPPNs)”, diz trecho do documento.

“O projeto estabelecerá uma estrutura de governança para integrar, coordenar e harmonizar os regulamentos e planos existentes para jurisdições bem estabelecidas no Complexo Bio-Cultural, tais como Áreas de Proteção Ambiental – APAs (Margem Direita do Rio Negro; Encontro das Águas; e Lago do Rei) e comunidades e Terras Indígenas (Terra Indígena Boa Vista)”, propôs o ofício enviado à PGR.

A ideia da PGE, segundo Daniel Viegas, foi iniciar tratativas para solucionar o caso, já que o tombamento não é mais ponto controverso. Ou seja, nenhum dos agentes envolvidos (governo, empresa e Iphan) são contra o tombamento.

“Todas as partes concordam com o tombamento, mas é preciso que a gente tenha mais garantias jurídicas de proteção da área”, disse o procurador. Sobre a resposta da PGR, Daniel Viegas entendeu como um pedido de “aprimoramento” da proposta da PGE-AM.

O procurador da PGE disse que o próximo passo é de discutir com os movimentos sociais. “A partir de agora discutir mais amplamente com essa proposta inicialmente apresentada, com a própria Procuradoria da República, com todo mundo que faz parte do processo, e com quem não faz parte do processo, mas está atingido por qualquer empreendimento que se estabeleça ali na região”.

Conforme Viegas busca-se ampliar o debate com a sociedade “para construir uma solução que garanta tirar da invisibilidade toda população e as comunidades tradicionais que vivem ali no encontro das águas”. “Só o tombamento do encontro das águas não é suficiente para toda a região que diz respeito a mais de 160 quilômetros de interseção de rios”, finalizou.

Para a bióloga Elisa Wandelli, integrante do movimento SOS Encontro das Águas, a criação do complexo é um “facilitador para a construção do Porto das Lajes. Segundo ela, “o acordo proposto pela PGE não tem seguridade jurídica, não apresenta orçamento e nem se propõe ser uma política pública.

“Ao meu ver, foi apropriado indevidamente com o intuito de mascarar o impacto socioambiental do Terminal Portuário Porto das Laes e facilitar seu licenciamento perante a opinião pública e o Superior Tribunal Federal”, declarou.

Elisa Wandelli disse que em meio ao prazo estipulado pelo PGR Augusto Aras, haverá manifestação sobre a proposta da PGE no Supremo.

“Como ele [Augusto Aras] pediu mais 120 dias de prazo para o Estado do Amazonas apresentar uma proposta concreta de acordo, haverá tempo para nossa manifestação no STF, com mais planejamento”, disse.

Elisa Wandelli defende urgência da homologação do tombamento da área devido “constantes ameaças e depredações das águas, das florestas, da fauna e da paisagística do Encontro da Águas pelo poder público e privado e da carência de medidas protetivas e de projetos de uso sustentável da biodiversidade para os povos do Encontro das Águas”. (Colaborou Elaíze Farias)


Gabriel Ferreira é jornalista parintinense, mestrando no Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia( PPGSCA/ Ufam). Trabalhou como repórter do caderno de esportes Craque do Jornal A Crítica e foi colaborador da Rede de Notícias da Amazônia (RNA). É colaborador da Amazônia Real e também escreve para os sites BNC Amazonas e Ecoa/UOL.

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