Cesar Locatelli
César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.
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Lessa, uma pessoa extraordinária, por César Locatelli

Historiador se concentrou em pessoas que dificilmente têm seu nome lembrado, mas constituem, coletivamente, os principais atores da história

Carlos Lessa, Ex-presidente do BNDES (Lucio Bernardo Jr./Agência Câmara)

Lessa, uma pessoa extraordinária

Alguns “causos” da trajetória de Carlos Lessa na universidade e no BNDES

por César Locatelli

O historiador Eric Hobsbawn, em seu livro “Pessoas Extraordinárias”, em um momento de autoavaliação de sua trajetória ao longo da vida, afirmou que a causa a que ele devotou sua vida não prosperou. Este revés, acrescentou, pode tê-lo transformado em um historiador melhor, pois acredita que a melhor história é escrita por aqueles que perderam algo, por aqueles que não aceitam que a história terminou: “os perdedores perguntam por que tudo foi diferente, e esta é uma questão muito mais relevante”.

Por que razão começar a homenagem ao professor Lessa com este trecho do livro? A razão fundamental é que Lessa efetivamente foi uma pessoa extraordinária, como está amplamente demonstrado pelos 17 artigos que narram diferentes aspectos de sua vida, neste livro “Carlos Lessa, o passado e o futuro do Brasil”.

Lessa tinha semelhanças, mas também diferenças com as pessoas extraordinárias que Hobsbawn tematizou. O historiador se concentrou em pessoas que dificilmente têm seu nome lembrado, mas constituem, coletivamente, os principais atores da história. “O que pensam e realizam faz a diferença. Pode mudar e mudou o curso da história”.

Uma diferença de Lessa com esses personagens de Hobsbawn é que nosso personagem é bastante conhecido. Uma semelhança é que mudou, individual e coletivamente, o perfil da história.

Lessa colheu vitórias e derrotas. Em nenhum dos dois casos, certamente, jamais aceitou que a história havia terminado. Suas reflexões sobre os percalços, especialmente aqueles nacionais, foram e são muito mais importantes.

Dois aspectos da vida de Lessa serão abordados aqui: sua contribuição para o ensino de economia no Brasil e sua passagem pela presidência do BNDES.

Economia e humorismo

No seu tempo de estudante, recorda Lessa, que surgiu na França um movimento do padre Lebret, que se chamava Economia e Humanismo. Ele e seus colegas resolveram criar um “movimento” temido pelos professores e chamado Economia e Humorismo. A imaginação corre solta sobre o conteúdo dos fragmentos de aulas ou apostilas que eram selecionados e rodados em um mimeógrafo a álcool.

Antônio Barros de Castro, colega de Lessa de colégio e também na graduação na antiga Faculdade Nacional de Economia, conta que, além de extremamente conservadora, a escola era um redoma, uma ilha povoada por ideias econômicas europeias e norte-americanas e impermeável às discussões que se travavam em outros círculos brasileiros ou latino-americanos. “O tema Brasil não visitava nosso curso”, disse Lessa. O grupo, entretanto, formado pelos dois, mais David Langier e Ruy Formosi, não se limitava aos ensinamentos transmitidos por Octavio Bulhões, Roberto Campos, Eugênio Gudin, San Thiago Dantas, entre outros. A ausência de Marx, Keynes, Schumpeter e Furtado do currículo os levou a estudar em grupo e trocar os livros entre si para ampliar suas visões da economia.

Lessa frequentemente ressaltava que o livro de Celso Furtado, Formação Econômica do Brasil, provocou neles um deslumbramento, que nem mesmo eventuais discordâncias com certos pontos diminuíam sua enorme importância. O livro de Furtado foi fundamental para sua geração e gerações sucessivas pensarem o Brasil. Através de Furtado, seu grupo teve acesso à revista Econômica Brasileira que permitiu que eles “mapeassem os economistas brasileiros que eram interessantes”, nas palavras de Lessa.

Lessa segue para o curso de pós-graduação do Conselho Federal de Economia onde militavam “professores de nova geração”. Rapidamente, torna-se professor deste curso e do Instituto Rio Branco. Em entrevista a Elisa Klüger, Lessa disse que os estopins de sua orientação crítica foram a visita que fez a favelas de Pernambuco, viagem que fez a trabalho pelo Conselho, e o livro de Celso Furtado.

Na volta do exílio no Chile, Lessa passou a integrar o grupo fundador da Escola Interamericana de Administração Pública, da Fundação Getúlio Vargas. Nesse período, ele e seu grupo discutiam longamente a mudança do ensino de economia no Brasil. Eles concluem que para a mudança de currículo que gostaria seria necessária um instituição federal com pouco resistência a mudanças. Entra no seu radar a Universidade Federal Fluminense. Com grande rapidez conseguem transformar o curso de economia da UFF em um “farol”, nas palavras de Lessa.

Hildete Pereira de Melo relembra que “a dupla Antônio de Barros Castro e Carlos Lessa tinha lançado, em 1967, o livro “Introdução à economia: uma abordagem estruturalista”, conhecido como de autoria ‘Castro & Lessa’, este livro foi uma bíblia da heterodoxia econômica e foi adotado como texto obrigatório dos novos cursos de economia que rapidamente se espalharam do norte ao sul do país. A vinda de Carlos Lessa e Antônio de Barros Castro, que representavam a vanguarda do pensamento desenvolvimentista, atraiu para a Economia/UFF jovens economistas promissores…”

“Olha, professor, não viaje mais para o exterior!”

Lessa complementava seus rendimentos com cursos bastante bem pagos que dava, duas ou três vezes por ano no exterior. Até que recebeu a advertência do reitor da UFF, vinda dos militares, de que havia suspeita de que ele era porta-voz dos exilados no exterior. Muitos exilados, de fato, iam ao seu encontro nos cursos. O reitor da UFF disse: “olha, professor, não viaje mais para o exterior”. Lessa respondeu que ia pedir demissão e, de fato, encerrou seu período na UFF (1968 – 1972), mas o programa que havia ajudado a criar permanece.

Após alguns anos trabalhando com consultoria, com Rômulo de Almeida, Lessa recebe o convite de Zeferino Vaz para participar da construção do Departamento de Economia e Planejamento  Econômico da Unicamp e junta-se ao grupo que daria forma ao Instituto de Economia, que ainda hoje mantém seu forte conteúdo nacional-desenvolvimentista.

Lessa presta, então, concurso para a UFRJ, é aprovado e passa alguns anos trabalhando em tempo parcial na Unicamp e na UFRJ. Quando não suporta mais o desgaste de viajar toda semana pede demissão da Unicamp e fica exclusivamente na UFRJ. Lessa diferencia os dois institutos: a Unicamp era mais inclinada ao aprofundamento teórico e a UFRJ dava prioridade à política econômica. “A coluna vertebral que estava se instalando aqui [na UFRJ] era bastante assemelhada à da [Unicamp]”, disse ele.

Lessa conta que nesse período fazia questão de dar aula para os ingressantes nos cursos de economia, ele acreditava que os professores com maior senioridade deveriam se ocupar daquele momento em que os alunos estão ainda se decidindo se gostam ou não do curso e precisam ter aulas com os mais experimentados professores.

O rinoceronte paralítico

Glória Moraes conta que “em março de 2002, após uma campanha que envolveu a todos, elegeu-se Reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, obtendo 85% dos votos dos 13.453 eleitores, entre professores, funcionários e alunos”.

Em que pese soar ofensivo, Lessa ao qualificar a UFRJ de rinoceronte paralítico, queria reconhecer o enorme potencial que a universidade tinha e que era muito mal aproveitado. Reverter esse quadro foi sua luta durante todo o período que esteve na funções de professor, decano, reitor e professor emérito.

Em 2017, em entrevista no Instituto de Economia da UFRJ, Lessa narra dois fatos prosaicos de sua gestão à frente da universidade. Seu antecessor havia instalado uma porta de aço na reitoria para prevenir que os estudantes voltassem a invadi-la. Revoltado com essa atitude, logo ao assumir o cargo, Lessa determinou que a porta fosse cortada e enviada para um concurso de Belas Artes.

Logo em seguida, nos seus primeiros dias no cargo, a Light “o brindou” com um corte de energia. Os estudantes queriam sair às ruas em protesto, mas Lessa os convenceu de uma estratégia melhor: “vamos dar aulas à luz de velas”. A ação teve apoio unânime da opinião publica. “Eu criei uma quizumba maravilhosa… que me permitiu demonstrar com absoluta firmeza algumas das dimensões em que a privatização é de uma perversidade atroz.” As aulas à luz de velas aconteceram por um dia e meio.

O acordo de Washington versus a ideia de soberania nacional

“É em oposição à centralidade que as finanças conquistaram no governo Fernando Henrique que se colocará o primeiro presidente do Banco (BNDES) da era Lula, Carlos Lessa”, concluiu Elisa Klüger em sua tese de doutorado, “Meritocracia de Laços”.

Numa de suas primeiras conversas com Lula, Lessa explicitou que estava recebendo um depósito de esqueletos: “tem esqueletos por todos os lados – esqueleto é dívida de um sujeito poderosíssimo que não é paga – e o Banco está desmoralizado completamente. Eu não posso ter que administrar questões políticas internas. Eu preciso ter uma diretoria coesa comigo”. Lula concordou e indicou apenas um diretor. Lessa, por seu turno, levou apenas um diretor de fora da instituição, todos os outros eram funcionários de carreira do banco.

O primeiro esqueleto gigante a ser enfrentado foi a dívida atrasada de 1,2 bilhão de dólares que a AES tinha com o banco desde a privatização da Eletropaulo. Ao iniciar o processo de cobrança, a gestão Lessa teve que fazer a provisão para o calote e gerou grande prejuízo contábil. No entanto, depois de longa queda de braço, a solução encontrada foi transformar metade de dívida em participação do BNDES na AES, o que siginificava associar-se à fornecedora de energia elétrica do maior mercado consumidor do país. A outra metade da dívida foi renegociada e o primeiro pagamento, de quase 90 milhões de dólares, feito no início de 2004, permitiu a reversão da provisão contábil. Com o acordo o BNDES ficaria com 49% do capital votante da empresa e, em caso de novo atraso nos pagamentos, as ações faltantes para o controle acionário da empresa passariam automaticamente para o BNDES.

“Não estatizamos de novo a empresa, mas pegamos 49% das ações com direito a voto, com uma cláusula segundo a qual, se eles atrasassem um dia que fosse o pagamento, mesmo que fosse um dólar, nós assumiríamos o controle. Aí eles pagaram tudo”, disse Lessa em entrevista para o livro “BNDES: Entre o desenvolvimentismo e o neoliberalismo (1982-2004)“.

A luta de Lessa e sua diretoria para manter o controle nacional da Vale também merece destaque. A Bradespar, empresa de participações do Bradesco, estava negociando a venda de um lote de ações da Valepar, controladora da Vale, com o Banco Mitsui. O BNDES tinha preferência e Lessa queria exeercê-la. “Bobamente, eu conversei com o Furlan [Luiz Fernando Furlan, ministro do

Desenvolvimento, Indústria e Comércio], que acionou o presidente da Vale, que, por sua vez, acionou o presidente da República, que negou o meu pedido…”, conta Lessa em entrevista no mesmo livro.

Passadas algumas semanas, a associação de funcionários da Vale quis vender, tanbém para a Mitsui o lote de ações que tinha comprado no governo de FHC. Desta vez, Lessa reuniu a diretoria, aprovou a compra e exerceu o direito de preferência que o BNDES tinha. Apenas José Dirceu e Luís Gushiken souberam antecipadamente da operação. Pagou 500 milhões de dólares e fez com o que o controle da empresa ficasse em mãos brasileiras, com o BNDES e os fundos de pensão. Impediu, na verdade, que o Banco Mitsui adquirisse ações suficientes para passar a ter poder de veto nas decisões da empresa.

A operação provocou “uma gritaria geral”, diz Lessa, “o Banco fez porque era um bom negócio, não podíamos abrir mão, tínhamos que decidir rapidamente e de maneira confidencial. Depois as

ações não pararam de subir, e com esse ato nós quebramos todos os recordes de lucratividade do BNDES no ano de 2003”. Em matéria de 2007, quatro anos após a compra das ações da Valepar, o jornal Valor Econômico destacava que essa compra feita pelo BNDES dificilmente seria criticada por Furlan: “as ações ordinárias da Vale subiram nada menos que 533% no período”.

“Eu saí da UFRJ para ser diretor-presidente do BNDES. Acho que no BNDES conseguimos fazer algumas coisas realmente significativas, mas eu fui demitido pelo Lula. Coisa que me orgulho muito, porque ele me demitiu numa briga que eu tive com o Meirelles [Henrique Meirelles, presidente do Banco Central]. Eu continuei pensando os sonhos da civilização brasileira enquanto Meirelles era uma réplica do golpe de 64… Era o acordo de Washington versus a ideia de soberania nacional… Eu adoraria dizer que estava errado, mas não estava”, disse Lessa, em 2017, em entrevista no Instituto de Economia da UFRJ.

Cesar Locatelli – Economista e mestre em economia

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Cesar Locatelli

César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.

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