Memória: o Plano Cruzado e as tablitas

Poucos dias depois, recebo um telefonema de Funaro. Me convidava a ir a Brasilia acompanhar o início da mudança do Brasil. Não me deu mais detalhes.

Comecei a me envolver indiretamente como Plano Cruzado quando a equipe de Dilson Funaro, Ministro da Fazenda, reformulou a tabela do Imposto de Renda. Imediatamente houve uma grita geral da mídia, sobre o suposto aumento da carga tributária.

Fiz algumas simulações em meu micro Dismac – montando um programa em Basic – e constatei que as mudanças correspondiam ao que os economistas diziam: aliviava a carga para a baixa renda e aumentava para a média e alta.

Em todos os anos anteriores, a Receita – sob o comando de Francisco Dornelles – promovia toda sorte de tungadas nos contribuintes, como não corrigir a tabela do Imposto de Renda em novembro, acompanhando a lei salarial, promovendo um quase confisco em dezembro, quando o assalariado tinha que declarar o salário acumulado com o 13º.

Publiquei a análise na coluna Dinheiro Vivo, que tinha montado na Folha. Coincidentemente, no mesmo dia saiu num editorial em direção contrária, insistindo na tese da alta da carga. O editorialista era um professor da FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da USP), especialista em tributação. E a chiadeira contra o suposto aumento da carga tributária seguia a regra para cada mexida de Dornelles na declaração.

Na segunda feira, Octávio Frias pediu que eu passasse pelo seu andar para uma conversa com ele e o editorialista. Fui até lá, ele não pode participar mas pediu para Marcelo Coelho conferir a nossa conversa.

Foi curiosa. O editorialista conhecia política tributária, mas não sabia que, para utilizar a tabela progressiva do Imposto de Renda, tinha que multiplicar a renda pela alíquota correspondente e descontar o valor do resíduo. Quando mostrei para ele como tinha montado minhas simulações, se surpreendeu com o óbvio.

A Folha reconheceu o erro e consertou a opinião. Creio que os Cruzados – que ainda não eram cruzados e, por isso mesmo, estavam submetidos a críticas diárias direcionadas co governo Sarney – ficaram gratos.

O segundo contato indireto foi logo depois, quando tirei férias e fui com a esposa e os cunhados para Buenos Aires, decidido a relaxar e a não me envolver com trabalho. Mal chegando, compro jornal na banca e lá se falava no Plano Primavera, que antecedeu o Cruzado.

Meu primeiro programa foi ir atrás de Roberto Frenklel, economista que participara do plano. Frenkel me explicou a lógica da inflação inercial e das tablitas – as alíquotas que deveriam ser aplicadas em contratos para converter de uma moeda para outra.

Ainda tive oportunidade de conhecer o grande jornalista, historiador, letrista Felix Luna, morando em uma vila em Buenos Aires bem similar à primeira casa em que meu avô morou, quando chegou a Poços de Caldas.

Na volta, publiquei a tablita em minha coluna. Soube, depois, que houve um enorme burburinho  entre os Cruzados, julgando que o plano, já em preparação, tinha vazado para a imprensa, porque a marca principal era justamente a tablita.

Poucos dias depois, recebo um telefonema de Funaro. Me convidava a ir a Brasilia acompanhar o início da mudança do Brasil. Não me deu mais detalhes. Liguei para Frias, falando do telefonema e ele ordenou que fosse imediatamente para Brasilia. Não havia voos disponíveis. Ele pediu, então para que Amador Aguiar, presidente do Bradesco, emprestasse a avião do banco para me levar.

Chegando, fui direto para o Ministério da Fazenda. Os economistas estavam em reunião permanente, ficando difícil recolher informações. Como não havia possibilidade de usar telex, recorria-se ao rádio-escuta – lia-se a matéria pelo telefone e alguém, na outra ponta, anotava. Como, àquela altura, a ideia de um plano de impacto já tinha chegado ao jornal, Frias pediu para Clóvis Rossi atuar como rádio-escuta, para não haver confusão com algum rádio-escuta leigo.

Foi uma noite curiosa. Um dos estagiários de mídia era Mário Rosa, que, quando eu estava no telefone com Rossi, veio me chamar a atenção, de estar gastando telefone do governo. Lancei-lhe um olhar pouco amigo, sem interromper a conversa com Rossi e ele parece ter assimilado o ridículo.

Naquela noite, não saíram muitas informações. Só no dia seguinte tivemos acesso aos primeiros decretos.

Era um plano e exclusivamente matemático. Todos os contratos em cruzeiros tinham que ser convertidos em cruzados de acordo com a média do período anterior. No caso de contratos, a média consistia em deflacionar os valores pagos, de acordo com a inflação passada e converter o valor para cruzado.

Era uma regra simples, mas que deveria ser aplicada em contratos de todo tipo, habitacionais, cartões de crédito, letras de câmbio, obrigações do Tesouro.

O conhecimento de matemática ajudou. Nos meses seguintes, a coluna se tornou o principal fiscal das conversões decretadas pela equipe econômica. E enfrentando, algumas vezes, matemáticos temíveis.

Entendi as implicações das conversões na minha volta para São Paulo. Por aqueles dias, já tinha meu programa, o Dinheiro Vivo na TV Gazeta, que apresentava ao lado de Marília Stábile. Antes de sair de Brasília ela me informou que tinha um pessoal de cartão de crédito me convidando para um almoço.

No dia seguinte, me enrolei com telefonemas e atrasei para o almoço. Recebi um telefonema nervoso de Marilia. Corri para o restaurante e, lá chegando, havia mais de uma dezenas de executivos dos cartões, preocupados com as regras de conversão.

Tinham razão. A Fazenda definia a fórmula de conversão para cada contrato. E qualquer erro ou decisão implicaria em perdas ou ganhos pesados.

E houve tiros para todo lado.

O caso mais complexo foi na conversão dos saldos devedores do Sistema Financeiro da Habitação. Pérsio Arida, o matemático do grupo, fez uma conversão que beneficiava os agentes financiadores pesadamente, em detrimento do Banco Nacional da Habitação. Estes, por sua vez, haviam contratado o ex-Ministro Mário Henrique Simonsen para um parecer em favor da proposta de Pérsio. Brilhante matemático, Simonsen comportava-se como um parecerista. Levantava vários pontos em seu parecer, mas só destacava os pontos favoráveis aos agentes financeiros.

Escrevi um artigo no Dinheiro Vivo questionando o raciocínio de Simonsen. Meu atrevimento se devia ao uso do computador. Matemático brilhante, Simonsen conseguia sintetizar os efeitos da inflação sobre o saldo devedor com uma fórmula. De meu lado, tinha que colocar o micro para funcionar a noite toda, montando centenas de simulações até conseguir formar juízo sobre os efeitos da inflação. A resposta de Simonsen, na Carta dos Leitores, foi curiosa, no próprio JB, mas sem rebater meus argumentos. Aceitava os argumentos sobre os ganhos extraordinários dos bancos, mas alegava motivos jurídicos para justificar as regras de conversão.

Ali, deu para perceber as primeiras influências das tacadas financeiras sobre a regulação do plano.

Àquela altura, com o programa na TV Gazeta, trabalhava a maior parte do tempo em casa. Certo dia, recebo a ligação de Saulo Ramos, consultor geral da República e amigo pessoal de José Sarney, agradecendo, em nome de Sarney, o trabalho que eu vinha fazendo de esclarecimentos sobre o plano.

Percebendo meu incômodo com o telefonema, Dona Terezinha, minha mãe, estava na sala de casa quando atendi o telefone. E seu comentário, sarcástico, foi premonitório:

  • Meu filho, onde você está errando para receber um elogio desses.

Dias depois, um episódio mudaria completamente minha vida profissional e me envolveria na maior guerra da minha vida profissional, até então.

Foi quando denunciei as tramoias de Saulo com a regulação do Cruzado.

Mas isto é tema para outro dia.

Luis Nassif

6 Comentários

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  1. Nessa época éramos infelizes e sabíamos. Mas por incrível e paradoxal que pareça era uma infelicidade feliz, viva, barulhenta, com a bebê democracia querendo dar os primeiros passos. Que saudade ! O que foi que aconteceu para chegarmos ao hoje ? Infelicidade total ! Mesmo aqueles em torno de uns 30% que não sabem infelizes são. Quo usque tandem “abutres” …

    1. O Nassif se incomoda quando tem que defender a Dilma e o PT, mesmo sabendo que é o melhor a fazer nesse caso.
      Mas sei que ele sempre esteve do lado certo da força, apesar de seus tucanos históricos!

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