O espetáculo do STF no caso da HQ da Marvel, por Fábio de Oliveira Ribeiro

A imprensa comemorou a decisão de Dias Toffoli como se ela equivalesse à restauração da democracia. Não posso concordar com essa interpretação dos fatos.

O espetáculo do STF no caso da HQ da Marvel, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Uma HQ da Marvel contendo um baixo gay acarretou uma disputa com diversas reviravoltas nos últimos dias. A prefeitura do Rio de Janeiro proibiu a comercialização da obra na Bienal do Livro. Um juiz de primeira instância revogou a decisão do prefeito. O presidente do TJRJ suspendeu os efeitos da liminar concedida pelo juiz. Algum tempo depois a decisão de primeira instância foi restabelecida pelo presidente do STF.

Como compreender o significado histórico dessa disputa e do seu resultado?

O historiador Erich Kaler afirma que “… negar que la historia tenga sentido es negar que la historia exista.” (Que es la historia? Erich Khaler, Breviários, Fondo de Cultura Económica, México, 1992, p. 23). H. -I. Marrou corrobora essa tese, pois assegura que o historiador deve se “…elevar acima da poeira dos factos miúdos, dessas moléculas cuja agitação em desordem constitui o presente, para lhe substituir uma visão ordenada, que apura linhas gerais, orientações susceptíveis de ser compreendidas, cadeias de relações causais ou finalistas, significações, valores.” (Do conhecimento histórico, H.-I. Marrou, Martins Fontes, 1975, p. 41).

Nunca é demais ressaltar que “… os fatos não existem isoladamente, mas têm ligações objetivas; a escolha de um assunto de história é livre, mas, no interior do assunto escolhido, os fatos e as suas ligações são o que são e ninguém poderá aí mudar nada…” (Como se escreve a história, Paul Veyne, Edições 70, Lisboa – Portugal, 1971, p. 44). Antoine Prost afirma que “O valor, significação e importância de um fato dependem do enredo de que ele é parte integrante.” (Doze lições sobre a história, Antoine Prost, editora autêntica, Belo Horizonte, 2012, p. 220).

Antes do presidente do STF revogar a decisão do presidente do TJRJ o Ministro Celso de Mello divulgou uma nota dizendo que:

“O que está a acontecer no Rio de Janeiro constitui fato gravíssimo, pois traduz o registro preocupante de que, sob o signo do retrocesso — cuja inspiração resulta das trevas que dominam o poder do Estado —, um novo e sombrio tempo se anuncia…”
https://www.conjur.com.br/2019-set-07/celso-mello-ve-obscurantismo-censura-rio-janeiro

A imprensa comemorou a decisão de Dias Toffoli como se ela equivalesse à restauração da democracia. Não posso concordar com essa interpretação dos fatos.

A maioria dos ministros do STF (Celso de Mello incluído entre os tais) apoiou o golpe de 2016 que removeu a soberania popular do cenário político brasileiro. Depois, aquele Tribunal garantiu a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro mantendo Lula na prisão, impedindo-o de dar entrevistas durante a eleição e tolerando a campanha massiva de Fake News que derrotou Fernando Haddad. Portanto, desde 2016 o próprio STF tem sido o maior responsável pela desconstrução do regime constitucional democrático brasileiro. Agora ele tenta apenas desacelerar a construção do fascismo que ajudou a construir.

O regime democrático é composto por uma teia delicada de princípios, dentre os quais podemos destacar seis: soberania popular; devido processo legal com respeito a presunção de inocência; liberdade de ir e vir, de se manifestar e de se expressar; repressão à violência política, ideológica e religiosa; direito à educação, saúde e segurança pessoal; respeito à constituição pelas autoridades do Judiciário.

Um desses princípios foi removido de cena quando Luiz Fux condenou José Dirceu porque o réu não provou sua inocência (a presunção de culpa seria empregada posteriormente contra Lula pela dupla Deltan Dellagnol e Sérgio Moro). O outro deixou de existir quando o STF proporcionou ao bandido Eduardo Cunha tempo suficiente para iniciar e concluir na Câmara dos Deputados o processo de Impeachment de Dilma Rousseff. A remoção destes princípios constitucionais acelerou a seletividade da aplicação da Lei Penal e produziu uma cadeia de eventos que levaram necessariamente ao aumento da violência política e religiosa (que seguem sendo toleradas), bem como à censura da HQ da Marvel pelo prefeito do Rio de Janeiro e à necessidade de levantá-la por decisão judicial.

A imprensa apoiou a decisão do STF dizendo que a democracia brasileira estava em perigo. Na verdade nossa democracia já não existe mais. No lugar dela os juízes colocaram um regime de exceção em que a Lei as vezes surte efeitos as vezes não. A decisão do STF no caso do livro foi correta e louvável. Entretanto, ela não pode nos fazer esquecer o estrago consolidado por aquele Tribunal. No momento em que fragilizou o princípio da presunção de inocência e ajudou uma quadrilha de deputados e senadores a rasgar 54,5 milhões de votos em Dilma Rousseff, o STF rompeu a teia delicada de princípios que se reforçavam mutuamente para garantir o regime democrático instituído em 1988.

Não só isso. Desde a posse do usurpador Michel Temer, sempre que uma questão pode afetar de maneira essencial o “novo regime” que está sendo enfiado goela abaixo dos brasileiros o STF não é capaz de proferir uma decisão favorável ao povo brasileiro ou à manutenção do sistema constitucional em vigor. Ele permitiu a doação da Embraer a Boeing e facilitou a entrega de campos petrolíferos do Pré-sal a preço vil. A constituição cidadã está sendo destruída a marretadas com ajuda dos ministros daquele Tribunal.

Em troca da preservação dos seus salários acima do teto e aposentadorias abaixo da moralidade, os juízes brasileiros legitimam a revogação de direitos trabalhistas, sociais, previdenciários dos brasileiros. Eles também são responsáveis pelo empobrecimento da população e pelo retorno da fome nas regiões economicamente mais frágeis do país.

O mercado não se sente particularmente incomodado com a destruição dos templos das religiões afrobrasileiras por vândalos evangélicos. Mas se importa muito com a venda da HQ da Marvel contendo um beijo gay. No sistema da CF/88, todos os cidadãos sem qualquer distinção são igualmente aptos a desfrutar direitos. Naquele que está sendo construído pelo STF, a capacidade de consumo que diferencia os umbandistas dos gayzistas (para usarmos aqui uma terminologia do bolsonarismo) está se tornando um valor jurídico supremo, pois ele garante que um grupo seja protegido e o outro esquecido.

A circulação da HQ da Marvel contendo um beijo gay foi rapidamente garantida. Isso não ocorreu e provavelmente nunca ocorrerá quando o que estiver em questão for a repressão ao terrorismo dos evangélicos contra os templos de umbanda (ou contra os Sindicatos operários e organizações estudantis). Causa e consequência. Fato e significado. Valores tutelados e interesses de classe ignorados. As ligações históricas que os juízes não querem fazer precisam ser feitas por quem observa o comportamento vergonhosamente seletivo do STF.

Crivella e seus maníacos evangélicos nunca ousariam mexer com a Amazon, empresa que vende milhares de produtos gays todos os dias pela internet. O que ele queria era dar um espetáculo para a plateia dele. Ocorre que o espetáculo evangélico foi substituído pelo espetáculo jurídico protagonizado pelo presidente do STF para agradar plateia gay e criar a sensação de que nós vivemos numa democracia. Vocês notaram com e porque esses dois espetáculos fazem parte de um mesmo enredo?

A única coisa que restou do nosso sistema constitucional foi a espetacularização de disputas economicamente irrelevantes para a grande maioria da população. Enquanto os gays aplaudem, os direitos trabalhistas, sociais e previdenciários dos brasileiros pobres foram ou serão revogados. Porque o STF não demonstra sensibilidade social quando se trata de impedir o governo Bolsonaro de desnacionalizar o patrimônio bilionário da Petrobras em troca de alguns míseros milhões de dólares? Apóstolos do deus Mercado os ministros do STF tem interesses que transcendem à defesa da soberania e do bem-estar do povo brasileiro. Além disso, é muito mais fácil liberar uma HQ da Marvel com um beijo gay.

Uma visão ordenada da realidade pode ser obtida da análise das decisões proferidas pelo STF. Mas ela não é mostrada ao respeitável público pela imprensa. A função dos jornalistas nesse momento tem sido fragmentar e compartimentar os espetáculos para garantir a vitória do neoliberalismo. Quando os surtos de fome começarem a matar milhares de brasileiros os jornalistas dirão que não são culpados. E os juízes certamente afirmarão que se sentem inocentes. A inocência deles ou não, entretanto, terá que ser objeto de um julgamento histórico.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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