Letícia Sallorenzo
Letícia Sallorenzo é Mestra (2018) e doutoranda (2024) em Linguística pela Universidade de Brasília. Estuda e analisa processos cognitivos e discursivos de manipulação, o que inclui processos de disseminação de fake news.
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Livre para prender, por Madrasta do Texto Ruim

Livre para prender

por Madrasta do Texto Ruim

Antes de mais nada, peço desculpas aos queridos leitores. Deveria ter preparado este texto ontem, mas não consegui porque as tarefas do dia me consumiram. O fato é que com meu mestrado eu reaprendi a ler manchetes. E o que eu li ontem me assombrou (sim, eu ainda consigo me assombrar com este país).

Eu vi as manchetes do Globo e da Folha, mas quem causou ontem (e com trocadilho que já já vocês vão entender) foi o Estadão:

STF libera prisão de Lula por Moro

Vamos começar relembrando o que é um paradoxo: o contraste de ideias opostas que juntas transmitem uma única mensagem.

Vou dar um exemplo: “Falo melhor quando emudeço”. Outro exemplo: o liberar prisão daí de cima.

Libera. Prisão. De Lula. Por Moro.

Liberar a prisão. É algo como seguir no aguardo, né?

A manchete fica mais infeliz ainda quando a gente observa que prisão é uma nominalização verbal (O Estadão está abusando do direito de nominalizar verbo, hein? Outro dia foi com dona Eliane, e ontem foi pra capa!).

Como assim nominalização, Madrasta? É assim: você deixa uma ação com cara de coisa pra mocozar monte de troço. Neste caso aqui, não temos um agente mocozado, como na manchete da Cantanhêde. Quem foi mocozada aqui foi a causação. Não desmaiem, não! Acompanhem a explicação a seguir com cafezinho com leite e um bolinho ou biscoitos!

Vamos fazer meio que uma engenharia reversa dessa manchete. Comecemos por desnominalizar essa prisão, transformando-a de novo em verbo. A frase fica assim:

STF libera Moro a prender Lula.

Vamos demarcar as duas orações que compõem essa manchete reescrita: STF libera / Moro a prender Lula.

A ideia principal da frase é Moro prender Lula. É a expectativa. Todos esperam por isso. Então, vamos analisar essa oração simples.

Ponham reparo aqui:

Sintaxe

Sujeito

V. transitivo direto

Objeto direto

Oração

Moro

prende

Lula

Semântica

Agente

Verbo agentivo

Paciente

 

Na frase Moro prende Lula, temos um agente e um paciente prototípicos. Moro é o sujeito/agente que aciona o verbo prender. O verbo prender, por sua vez, transita seu significado (daí verbo transitivo) do sujeito até o objeto direto / paciente Lula (por isso transitivo direto) que, na função semântica de paciente, tem seu estado final alterado pelo agente. Essa informação a gente processa rapidinho, só de ler a parada, e nem sente que tá processando isso tudo. É o que George Lakoff chama de raciocínio inconsciente de causações prototípicas.

Mas a manchete não é só isso. Ainda que “(…) Moro a prender Lula” seja sintaticamente entendido como um objeto direto do verbo liberar, e por tanto essa oração seja uma oração subordinativa substantiva objetiva direta (esquece! Esquece! Esquece!), temos a liberação do STF causando a prisão do Lula. (que tá mocozada em forma de substantivo).

E é aqui que eu queria chegar. Qual é o papel semântico de STF?

Observem que a frase estabeleceu uma hierarquia na qual STF libera o Moro, que prende o Lula, que tem seu estado final alterado. Moro é agente da frase, mas transfere parte de seus poderes para o superagente STF, que altera tanto o agente quanto o paciente da frase.

Acredite, você processa essa informação todinha aí de cima.

No mais, superagente é um troço que aqui ficou comportado, mas dá muito o que manipular.

Voltarei aos superagentes no momento oportuno.

 
Letícia Sallorenzo

Letícia Sallorenzo é Mestra (2018) e doutoranda (2024) em Linguística pela Universidade de Brasília. Estuda e analisa processos cognitivos e discursivos de manipulação, o que inclui processos de disseminação de fake news.

7 Comentários

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  1. Pelo nível médio de capacidade

    de raciocínio lógico dos últimos leitores do OESP, a sua explicação foi inútil..

    Só leram: “Moro.. prender Lula”, e foram para o banheiro limpar os rastros do gozo.

    1. Sim e não

      Vai por mim: os leitores do Estadão fazem todo esse processamento daí de cima. 

      O processo é inconsciente. O raciocínio inconsciente é reflexo, automático eo não controlado. Está além do controle da consciência. Equivale àquela mexidinha no joelho quando o médico te dá aquela marteladinha pra testar seus reflexos.

      Já o raciorínio inconsciente (neste caso, entender que o moro vai prender Lula) é o raciocínio reflexivo. Equivale a vc ir ao espelho com a intenção de e sabendo que ao chegar no espelho vai ver o seu reflexo estampado lá.

  2. Ordem de prisão infundada, nula, ilegal e injusta

    Nos termos do inciso LVII, do art. 5º, da CF, – Princípio da presunção de não-culpabilidade até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória -, combinado com o disposto no caput do art. 283, do CPP, o fundamento de uma prisão decorrente de um juízo de culpabilidade, (em oposição a uma prisão decorrente de um juízo de periculosidade, o que é caso da prisão em flagrante, por exemplo), é uma sentença penal condenatória transitada em julgado.

    Por sua vez, o art. 93, IX, da CF, dispõe que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade. A ordem de prisão do Lula decorre de um juízo de culpabilidade, não de um juízo de periculosidade, isto é, a prisão do Lula não é processual, ela tem natureza punitiva. Entretanto, como a sentença penal condenatória ainda não transitou em julgado, a ordem de prisão do Lula não tem fundamento.

    Por outro lado, a CF garante aos indivíduos que eles não serão presos senão por ordem escrita e fundamentada de autoridade competente. Embora o incompetente $érgio Moro seja a autoridade competente e sua ordem seja escrita, ela não está fundamentada. Logo, a ordem de prisão antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória é nula, nos termos do disposto no art. 93, IX, da Farta Cagna. Ora, ninguém é obrigado a cumprir ordens manifestamente ilegais, principalmente partindo de autoridades constituídas.

  3. Mais ou menos assim

    Uma vez, aí por volta de 2002, em visita a uma grande empresa norte-americana com sede em Campinas, fui atendido pelo  presidente e perguntei pela ausência do diretor, com quem já vinha tratando. Resposta: “Liberei-o para o mercado de trabalho”. Tradução: pé na bunda. Livre para o mercado de trabalho. 

  4. “Leitor do Estadão é pior que o da Veja”

    ” E um pouquinho melhor que o da IstoÉ” … Comentou um amigo jornalista tempos atrás. Olha, verdade! 

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