Não foi crítica, foi demonstração (sobre o episódio Gerald T

Amiga minha havia comentado da cena de Gerald Thomas avançando sobre uma paniquete. Sem ver as imagens, achei que pudesse ser algum caso de exagero ou da imprensa ou das feministas acadêmicas de plantão – que sabem da “experiência da violência contra a mulher” mais por teoria do que por serem mulheres, e acham que uma passada de mão na bunda praticamente equivale a um estupro, como tive de ouvir mais de uma vez. Ao ver as fotos, achei o episódio bastante agressivo – e ouso dizer, feliz.

Com algum esforço, dá para entender o que Thomas gostaria de criticar – com a atitude e seu texto posterior. A forma como o fez, contudo, além de ser exatamente o que se esperava dele, serviu para escancarar um pensamento comum e bastante precário. Ando um tanto averso à internet, de modo que não li quase nada sobre o ocorrido, por isso pode ser que eu não saia do senso comum, que não vá além do que já foi dito sobre o assunto. O que li foram os dois textos publicados na página da Carta Capital [j.mp/ZuVbLf]: o do próprio Thomas e o de Nádia Lapa. O texto de Gerald é uma tentativa de explicar o que deveria ser motivo para uma profunda auto-reflexão. O de Nádia traz pontos interessantes, mas que perdem por falta de uma compreensão um pouco mais ampla do contexto e por uma visão bem simplista de relações humanas: parte-se do pressuposto da racionalidade do homo oeconomicus, a pessoa com seus desejos claros e transparentes, unidirecionalidade nas suas condutas, sempre expressas em contratos explícitos – mas não é isso que pretendo discutir, o texto de Lapa, antes a atitude de Thomas.

Thomas tenta justificar que estavam dentro da classe artística – tudo o que ele fez ali seria, se não aceito, tolerado, afinal, são colegas de classe e amigos –, e seu ato não seria mais que reverter o jogo de constrangimento que o programa Pânico impõe às suas vítimas, ao mesmo tempo que revelaria o papel de mulher-objeto protagonizado pela paniquete. Acontece que sua atitude foi uma baita publicidade para o programa – o que eles justamente buscam. Ele não inverteu o jogo, ele jogou o jogo da forma mais quadrada possível. Isso, penso eu, explica em parte o porquê ninguém fez nada, como alerta Lapa: o programa é muito violento, uma violência a mais, que diferença faz? Ademais, estavam às claras, sendo filmados: era de se imaginar que o dramaturgo não iria muito além do que foi – sem contar que até hoje não me consta que ele seja um estuprador (no sentido antigo do termo, já que agora qualquer desrespeito físico contra a mulher é estupro). O questionamento levantado por Lapa, de que “se a agressão tivesse sido com uma atriz considerada recatada” seria aceito com a mesma normalidade, tem uma óbvia resposta negativa por um óbvio motivo: a paniquete estava interpretando um certo papel-social, o de mulher-objeto em um apelativo programa de televisão – o que uma “atriz considerada recatada” não faria. Uma mulher é, antes de qualquer papel social, uma pessoa, e merece respeito só por isso (como Gerald Thomas também merece, ainda que uma violência não justifique a outra), porém não há essa pura abstração de mulher-em-si numa situação desprovida de qualquer contexto – neste caso, temos o de violência masculina como a da imprensa espetacular.

O fracasso da pretensa crítica à imprensa de Thomas vira precariedade de raciocínio quando ele tenta argumentar que seu ato seria de aversão à mulher-objeto: há formas e formas de mostrar essa condição. Dou aqui meu exemplo, num outro contexto, bem mais tranqüilo que um programa de tevê, e por isso mais sutil: o leitor mais atento, a leitora mais detalhista devem ter notado que citei algumas vezes a paniquete sem ter dito seu nome. A paniquete continuará sem nome nesta crônica, uma vez que salvo em situações imprescindíveis (como contrapôr extremos de riqueza e pobreza de São Paulo), evito falar o nome de objetos, produtos, em meus textos: que se chame Maria ou Josefa, o que importa para o programa é que seja gostosa. Agir como o machista típico costuma agir diante de uma mulher-objeto está se mostrando útil para abrir o debate (como o pastor Feliciano está sendo útil para a questão homoafetiva desde que assumiu a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados), porém está longe de ser uma crítica, ainda mais quando Thomas justifica a violência pelo fato da paniquete estar “(praticamente) [de] bunda de fora, salto alto de “fuck me”, seios a mostra”. Já fui execrado por uma feminista por ter dito isto, mas uma mulher com vestido mini, decote master e “salto alto de ‘fuck me'” está realmente pedindo… pra ser vista – ouso dizer que esteja querendo também ser assediada, ainda que não afirme tão peremptoriamente. E quando me deparo com uma mulher assim, eu reparo mesmo. Discretamente, porque sou alguém educado; sem falar grosserias, porque não acho que seja puta por causa da roupa, nem que chamá-la assim seja uma abordagem muito frutífera; sem passar a mão, porque não tenho esse direito; e caso esteja com algum amigo ou amiga que tenha o mesmo gosto que eu, chego a fazer algum comentário “machista”, como “é gostosa, mas essa paniquete exagerou no silicone”. A mulher pode estar só com calor, como contra-argumentou minha interlocutora, isso pouco me importa: não estou agredindo fisica ou verbalmente, não vou fazer avaliação de intenções do Outro para saber se ela queria ser olhada ou não. Assim como quando estou com calor e tiro a camisa, não vou poder ficar incomodado com pessoas se admirando com minha magreza – seja porque achem bonita ou feita.

Outra coisa que me chamou muito a atenção no texto de Thomas sobre o episódio foi a justificativa de que, por serem amigos – ele e o pessoal do Pânico –, sua atitude não teria problema. É a demonstração de uma noção de violência e de estupro (no sentido antigo, porque no atual, se eu fosse mulher, já teria sido estuprado quatro vezes, no mínimo) muito estreita (e, pior, muito comum): não é raro casos de violência sexual entre amigos e colegas de trabalho ou faculdade. Há um tempo teve repercussão o de uma estudante de direito, estagiária do escritório de advocacia Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados, que se matou tempos depois de ter sido estuprada por um colega do emprego [j.mp/11dZHlg]. Ouvi uma vez no bandejão da Unicamp amigos repreendendo (de leve) um colega, porque havia embebedado uma amiga para que “consentisse” fazer sexo anal. Inclusive uma frase me marcou nessa conversa: “com puta tudo bem, com amiga é sacanagem”, numa mostra de que o estupro em si não seria um ato condenável, porque mulher-objeto é pra ser usada, independente do que ela quer ou aceita. Esse tipo de estupro, cometido por um conhecido, lembro ter lido há muito tempo uma reportagem, é o mais comum e o menos denunciado: vira um caso de “sacanagem”, motivo pra rompimento de relação, uma vergonha para a mulher, que não dá ao ato a dimensão que ele realmente tem – caso de polícia.

Como disse, o episódio grotesco de Gerald Thomas e a paniquete abre a feliz oportunidade de tratar para além de círculos estreitos a questão da violência sexual contra a mulher, os preconceitos na sociedade, mesmo entre pessoas tidas por esclarecidas. Se isso será levado na base do “ativismo de reação”, se centrando nos casos e personagens; se resultará num debate mais consistente, como no caso da homoafetividade; se será seqüestrado pelo feminismo acadêmico e seus jargões para convertidas, ainda está em aberto. De minha parte, torço pelo segundo caminho, uma movimentação que aborde e ataque o problema sem discursos prontos e foco em inimigos e palavras de ódio: não é um caso isolado, não é uma questão de bem contra o mal, de achar inimigos: é uma questão social mais do que de gênero, uma questão de respeito, de dignidade, de relação com o Outro, de vida em sociedade.

 

São Paulo, 14 de abril de 2013.

 

blog pessoal: www.comportamentogeral.blogspot.com

Casuística: www.casuistica.net

Redação

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