O vício das agências no Cannes Lions

No Clube de Criação de São Paulo

Cannes Lions 2012

Brasil, a Amy Winehouse de Cannes

Verdade seja dita: estamos drogados e precisando urgentemente de uma clínica de detox. Pior: ao nosso redor, todos batem palmas para nossos porres, nossos papelões em publico, nossos beijos na sarjeta. Por um motivo muito simples: porque é divertido assistir, porque vende jornal, pelo prazer mórbido do ser humano de olhar pra outro se autodestruindo, como que reafirmando como está são e equilibrado o observador.

O assunto são os fantasmas brasileiros, que ganharam em 2012 eufemismos novinhos em folha: os “paralelos” ou “proativos” (já foram “inéditos” em edições anteriores).

No Meio&Mensagem desta semana, foi feito um artigo sobre as muitas agências brasileiras que reservam uma fatia absurda do seu timesheet (60, 70%) para “fazer Cannes”. Sim, cliente, é isso mesmo que você leu: a mesma equipe que te atende no dia a dia se reúne  para criar livremente, sem as amarras desagradáveis do briefing, do budget, do business. São muitas horas de trabalho, muitos reais de produção e muitos euros de inscrição. Muitos. E muita cobrança, porque afinal, como ganhar tantos Leões todos os anos em Cannes? O subtexto é claro: o dia-a-dia é chato, ter briefing é difícil, o cliente e a aprovação são na verdade uma barreira entre o criativo e o sonhado Leão.

A pergunta que vem imediatamente é: mas quem disse que o Brasil precisa ganhar todo ano 60, 70 Leões em Cannes? Mais na frente falamos disso, porque tem coisa mais importante pra falar agora.

O que é mais importante? Ah, sim, nosso negócio é mais importante. A ridicularização crescente que a comunidade criativa tem se proporcionado é mais importante. A preguiça, falta de visao estratégica e infantilidade de quase toda a nova geração de criativos (que já foram gestados sob efeito da droga, já nasceram viciados), isso é importante.

Sim, porque, não fossem essas as consequências, não estaríamos aqui discutindo. Tudo isso seria um assunto menor. A analogia do drogado volta a fazer bastante sentido. Se o vício não tivesse nenhuma consequência maior, qual seria o problema, certo? Em “Little Miss Sunshine” o avô viciado em heroína diz algo como: “Você tem que ser muito estúpido pra usar heroína aos 20 anos de idade, e muito estúpido pra não usar aos 80”.

O problema é que a nossa heroína tem sim consequências. E não me importam as consequências pra cada pessoa jurídica, pra cada agência. Somos todos grandinhos e vacinados, cada um faz o que quiser e bem entender do seu negócio. Tenho uma agência e não inscrevo fantasmas e não faço sessões de criação pra Cannes, essa é a minha decisão porque acho que é a que fará bem para o meu negócio, e se você quer fazer o oposto na sua agência, seja feliz, boa sorte.

Falo das consequências para o Negócio, com caixa alta. Falo do criativo mimado que, pra começar, não consegue entender um briefing porque pra ele briefing não é desafio, é obstáculo. E quando entende razoavelmente, cria pensando no que o júri de Cannes vai achar disso. E quando recebe um não do cliente, parte imediatamente para um feijão-com-arroz sem sal, mais do mesmo, porque na sua cabeça é aquilo que o cliente vai aprovar. E quanto mais rápido aprovar um trabalho medíocre, mais tempo sobra pra burilar aquela ideia original, brilhante, e mandá-la diretamente para o Festival.

Falo do cliente que, ansioso por participar da comunidade criativa, pergunta ao diretor de criação com que cliente a agência dele ganhou em Cannes e descobre que foi para a Academia de Ioga Hare Hare, não conhece? Ou mesmo que foi para um cliente grande da agência, mas engraçado, eu nunca tinha visto isso…

Falo sobretudo (e aqui concordo 100% com a opinião do Javier Talavera no artigo do Meio&Mensagem) de gastar o dinheiro do cliente de verdade na criação da propaganda de mentira. E como a gente vai querer ser respeitado, ter representatividade no negócio, agindo assim?

Este ano o Brasil ganhará uns 50 ou 60 Leões. De todos estes, uns 10 não terão sido criados para o Festival. Terão passado por briefing, aprovação, restrição de budget, plano de mídia, a vida real. Uns 30 terão sido criados para Festival, sem o olhar do cliente, bancados pela agência, e simplesmente recebido um ok do cliente para inscrever e mesmo veicular em algum lugar, normalmente incompatível com a mensagem e o target. Outros 20 terão sido criados antes sequer de existir um cliente, e depois é só digitar a categoria no Google, pegar a listinha e vai pra rua o atendimento catar um anunciante pra assinar aquilo.  Afinal, quantas academias como a Ioga Hare Hare não gostariam de ganhar uma campanha de graça, produzida com um budget que ela nunca teria?  Ah, e ainda tem um ou outro que o cliente sequer existe, ou o cliente nunca viu. Mas esses normalmente são cassados, pra dar uma impressão bacana de moralidade.

Comecei o artigo citando a Amy e a imprensa. Não foi à toa. Porque se por um lado me agradou ver o assunto abordado no Meio&Mensagem, me incomodou lembrar que a mesma imprensa que hoje levanta o problema incensou e festejou dezenas, centenas de Leões falsos criados ao longo dos últimos anos. Festejou não, festeja. E seria injusto me referir apenas ao Meio&Mensagem, me refiro a todos os veículos relevantes do mercado publicitário, sem exceção, incluindo aqui o CCSP, do qual sou vice-presidente. O fato é que nós, TODOS NÓS, divulgamos e consumimos a mentira. E aqui não me interessa acusar ou apontar dedos. Me interessa sim é propor que cada um assuma parte que lhe cabe neste latifúndio. O primeiro passo pra deixar o vício é assumir que ele existe. Seria um bom começo a gente parar de acreditar na própria mentira.

O problema do drogado é que ele sempre acredita que é capaz de segurar a onda.

Fernando Campos – sócio e diretor de criação da Santa Clara

Luis Nassif

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