Alceu Valença está vivo

“No breu da noite a luz de um vagalume azul piscou, brilhante, no breu/ se aproximou da estrada, iluminando a estrada, era um imenso balão/ um objeto veloz virava estrelas e sóis e vagalume-balão/ virando estrelas e sóis, passou veloz sobre nós o objeto-clarão.”  O lirismo pop dos versos de “Estrelas Somos Nós”, rara parceria entre Alceu Valença e Dominguinhos, só ficou registrada num álbum do sanfoneiro, Simplicidade (1982), jamais relançado em outros formatos.
 
Melhor sorte merece a outra parceria bipernambucana naquele 1982, “Lava Mágoas”, que integrou originalmente o histórico LP Cavalo de Pau, de Alceu – o mesmo que contém os hits pop-rock-nordestinos “Tropicana”, “Como Dois Animais” e “Pelas Ruas Que Andei”. Cavalo de Pau integra, ao lado de outros quatro álbuns, um pacote de reedições da obra de Alceu nos anos 1980, levada a cabo pela gravadora Universal (a mesma que guarda parte preciosa do catálogo de Dominguinhos).
 
Mais moderno que o parceiro ocasional na abordagem da música nordestina, Alceu estava em atividade desde 1968, em Recife. Só estreou em disco em 1972, ao se mudar para o Rio de Janeiro e dividir com outro conterrâneo a estreia dupla Alceu Valença & Geraldo Azevedo. Trata-se de um objeto perdido no tempo-espaço entre a tropicália e o que veio depois dela, um acachapante disco psicodélico orquestrado e regido pelo maestro (não-)tropicalista Rogério Duprat.
 
A experiência tropicalista com Geraldo não surtiu efeito mercadológico. Alceu iniciou em 1974 uma trajetória solo na gravadora da Rede Globo, a Som Livre, agora sim começando a desenvolver a mistura áspera entre rock, MPB, baião e maracatu que o firmaria. As reedições da Universal partem de Coração Bobo (1980), relançado de forma avulsa ao lado de Cavalo de Pau.
 
Um dos temas autorais de força no LP de 1980 é “Gato na Noite”, em que o refrão “meu maracatu é da coroa imperial/ é de Pernambuco, ele é da casa real” celebra a tradição e anuncia a fusão rock-maracatu que, acrescida de hip-hop e outras modernidades, ficaria conhecida uma década mais tarde como manguebit.
 
Coração Bobo trazia versões “forrock” para dois sucessos antigos de Luiz Gonzaga, “Vem Morena” e “Cintura Fina” , ambas de 1950. A veia autoral falava mais alto, no entanto, em faixas como a balada tensa “Na Primeira Manhã”, que Maria Bethânia tornaria mais conhecida em 1984: “Na primeira manhã que te perdi/ acordei mais cansado que sozinho/ como um conde falando aos passarinhos/ como um bumba-meu-boi sem capitão”.
 
O lado áspero-agreste seria acrescido de levada sensual e temperada em tempo de reggae a partir de Cavalo de Pau, seu primeiro grande estouro comercial, com versos inspirados de “Como Dois Animais” (“meu olhar vagabundo de cachorro vadio/ olhava a pintada e ela estava no cio/ e era um cão vagabundo e uma onça pintada/ se amando na praça como os animais”) e “Tropicana” (“da manga-rosa quero o gosto e o sumo/ melão maduro, sapoti, joá/ jabuticaba, teu olhar noturno/ beijo travoso de umbu-cajá/ pele macia, ai, carne de caju/ saliva doce, doce mel, mel de uruçu/ linda morena, fruta de vez temporana, caldo de cana-caiana/ vem me desfrutar”.
 
Os outros três títulos reeditados estão reunidos na caixinha Três Tons de Alceu Valença. Cinco Sentidos (1981) conta com “Quando Eu Olho para o Mar”, em que a musicalidade mestiça de Alceu avança pela dualidade água/seca, a mesma de seu “Lava Mágoas” (1982) com Dominguinhos: “Quando eu olho para o mar/ dentro do mar vejo um rio/ quando eu olho para o rio/ dentro do rio vejo a chuva/ quando eu olho para a chuva/ é como se olhasse as nuvens/ quando eu olho para as nuvens/ é como se olhasse o mar/ quando eu olho para mim/ dentro de mim tem você/ quando eu olho pra você/ por dentro sinto saudade/ quando eu olho pra saudade/ meus olhos vão desaguando/ e é como um rio passando/ que não corresse pro mar”. Excelentíssimo poeta, pois não?
 
O caixote segue com Anjo Avesso (1983) e outro dos maiores clássicos de Alceu, “Anunciação”, regravado agora mesmo pela brasiliense-revelação Ellen Oléria. “Na bruma leve das canções que vêm de dentro/ tu vens chegando pra brincar no meu quintal/ no teu cavalo, peito nu, cabelo ao vento/ e o sol quarando nossas roupas no varal/ tu vens, tu vens/ eu já escuto os teus sinais”, diz a poesia épica, simbolista, marítima sem ser, prima-irmã da do contemporâneo paraibano Zé Ramalho em “Frevo Mulher”  (1979).
 
“A cor do pecado é rouge carmin”, explode em sangue a vermelha “Rouge Carmin”, nova investida sensual-sexual. “Tambores de branco, tambores de preto, batendo tambor/ tambor encarnado, tambor coronário, coração-tambor/ tambor de trabalho, tambor operário, martela o tambor”, a voz de Alceu vai cantando à esquerda em “Batendo Tambor”, até que surja, não mais que de repente, a voz ancestral de Clementina de Jesus num contracanto arrepiante.
 
Embora “Batendo Tambor” e a capa de Anjo Avesso explorem os nexos com o maracatu e o folclore, o disco seguinte, Mágico (1984), mergulharia bem mais fundo em territórios circenses-populares nordestinos, em faixas como “Cambalhotas”, “Casaca de Couro (Mourão)”, “Rajada de Vento” e “Maracatu Colonial”. O grande sucesso, aqui, é o grave baladão “Solidão”: “A solidão é fera, a solidão devora/ é amiga das horas, prima-irmã do tempo/ e faz nossos relógios caminharem lentos/ causando um descompasso no meu coração”.
 
A poesia aguda e afiada é marca em canções quaisquer de Alceu, como é também no tema de vagalumes solitários “Estrelas Somos Nós”, em que sua poética se encontra com a funda melancolia de Dominguinhos e produz versos como os seguintes: ”No véu da noite a luz, um par de olhos azuis piscou brilhante no breu/ me acompanhou na estrada, iluminando a estrada, e depois se perdeu/ nós, objeto-balão, perdidos na escuridão, dois vagalumes tão sós/ era um balão colorido, um objeto perdido, um vagalume no ar/ estrelas somos nós, dois vagalumes sós, dois objetos sós, tão sós, tão sós, tão sós/ vamos vagando no ar”.
 
Enquanto seguimos vagando no ar nós, os vivos, primos-irmãos dos mortos, fiquemos com a eloquente “Anunciação”, nas versões de Ellen Oléria e do autor.
 

 

Redação

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