Rediscutindo a bossa-nova

Em 2003 escrevi duas colunas na “Folha” de domingo, propondo uma rediscussão da bossa-nova. Republico, com a intenção de retomar o tema:

Minha geração aprendeu a analisar a bossa nova sob o prisma do “Balanço da Bossa”, de Augusto de Campos. É um livro de fim dos anos 60, que consagrou a versão de que a bossa nova significou uma ruptura com a música brasileira anterior. Antes dela, só havia o dó-de-peito de Vicente Celestino. Em um passe de mágica teria sido substituído pela leveza sofisticada de João Gilberto, que revoluciona a MPB.

No início dos anos 60, os filhos da bossa, espalhados por todas as cidades brasileiras, eram jovens estudantes internacionalistas, conhecedores da música norte-americana, que sabiam articular alguns acordes dissonantes e, em geral, olhavam com desdém todas as demais manifestações musicais brasileiras.

Esse sentimento tornou-se a marca mais forte do livro de Ruy Castro. Precioso, do ponto de vista de pesquisa, no campo da interpretação o livro trata com superior desprezo o baião, Jacob do Bandolim e o samba canção entre outros.

Minha opinião é outra, e lanço o repto aos estudiosos, que tenham tempo, dedicação e vocação para desafiar as grandes verdades estabelecidas. Para mim, a bossa nova deve ser analisada sob três ângulos: como forma de tocar, como gênero musical e como marketing.

Como gênero musical, ousaria dizer que foi um movimento menor. A produção tipicamente bossanovista é quase irrelevante. Tirando o trio maior (Tom Jobim, Carlos Lyra e Roberto Menescal), os demais bossanovistas puros foram em número e qualidade inferior aos que os precederam -a geração do samba-canção- e aos que os sucederam -a geração de ouro dos festivais–, essas, sim, duas grandes escolas em qualidade e quantidade. Mesmo a produção tipicamente bossanovista de Tom e Carlos Lyra é menor, dentro de sua obra.

No período imediatamente anterior, os três grandes gêneros musicais foram o baião, o samba sincopado (na voz dos conjuntos vocais) e o samba canção. Em meados dos anos 40 desenvolve-se uma nova forma de tocar, influenciada pela música norte-americana, que têm como grandes representantes Garoto, Johnny Alf entre outros.

João Gilberto “é” a bossa nova porque desenvolve um extraordinário modo de cantar e de tocar –a partir do trabalho desses pioneiros e da influência de Chet Baker –, no qual cabem todos os gêneros. Graças a isto, o repertório da bossa nova se abre à grande produção das outras escolas e passa a contar com as canções de Dorival Caymmi e Ary Barroso, com o sincopado de Geraldo Pereira, salvando-se da escassez criativa do movimento.

Por exemplo, a obra riquíssima e sofisticada de Johnny Alf, Tito Madi e Sérgio Ricardo era tipicamente samba-canção. O amadurecimento musical de Tom Jobim e Newton Mendonça se dá no samba-canção, e Tom é muito mais amplo que a bossa nova. O mesmo ocorre com Billy Blanco e seu samba de gafieira. Parte relevante da obra de Carlos Lyra se baseia no samba-choro. Há um estilo muito elaborado de canção romântica (“Primavera”, de Lyra, “Canção do Amanhecer”, de Edu, “Preciso Aprender a Ser Só”, dos irmãos Valle) mais próxima do samba canção modernizado do que bossa nova.

Certa vez Baden Powell me disse que eles, os músicos profissionais, faziam um tipo de música e continuaram fazendo a mesma coisa quando apareceu a juventude dourada de Ipanema com seu violãozinho e sua superioridade social. E continuaram fazendo depois que eles sumiram na poeira da praia de Ipanema.

No campo da composição, o que pode ser tratado como tipicamente bossa-nova? Obviamente há os clássicos “Garota de Ipanema” e “Samba do Avião”. Mas nem toda produção de Tom no período é tipicamente bossa nova. Há muitos elementos de samba-choro. E o padrão do movimento não era dado por ele, mas por composições tipo “O Barquinho”, “O Pato” (que, aliás, é pré-bossa-nova) e, atrás delas, uma produção muito irregular, muito datada, de um segundo time de compositores em torno da temática barquinho-flor-amor.

Como forma de tocar a bossa nova foi um sucesso amplo. Como marketing, mais ainda, principalmente depois que Tom e Lyra desembarcaram nos Estados Unidos com ternos modernos, violão a tiracolo e bonitos como galãs de Hollywood.

Por insuficiência de produção e de talentos, a bossa nova, como gênero, durou poucos anos. Em meados dos anos 60 o movimento já havia se esgotado. Os mais talentosos continuaram a vida, mas mudaram de rumo.

Revendo a bossa nova

Quando se fala em música popular, há certa dificuldade em conceituar seus vários aspectos.

Por exemplo, gênero é um conjunto de características pelas quais se pode classificar um tipo de música. Samba é gênero, assim como o baião, o coco, o maracatu.

Estilo caracteriza um modo específico de tocar. Há vários estilos de interpretação no jazz, no samba, na valsa.

Por movimento, se entendam atuações de grupos de músicos em torno de determinada bandeira. O tropicalismo foi tipicamente um movimento, assim como a MPB liderada por Elis Regina. A rigor, não se prendiam nem a um gênero nem a um estilo específico de tocar, mas a um auê em torno de uma bandeira.

O movimento mais completo de todos, em minha opinião, é o baião. Trata-se de um gênero nordestino que, a partir da iniciativa de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, converteu-se em um movimento competentemente planejado, e de imenso alcance popular. A idéia inicial da dupla era difundir a música nordestina. Poderiam ter optado pelo coco. Ficaram com o baião, por ser mais fácil de tocar. A jovem guarda também foi um movimento importante, mas sem se constituir propriamente em um gênero.

Posto isto, o que foi a bossa nova? Foi um movimento, sem dúvida, com símbolos próprios (violão, banquinho, praia). Juntou de forma brilhante o marketing do Rio de Janeiro -desde a década anterior um símbolo mundial de mulheres bonitas e sensualidade–, casando com a contemporaneidade da classe média moderna. Virou padrão mundial de modo de vida.

Como gênero foi fraco -conforme tentei demonstrar. Gerou uma produção insuficiente, que se esgotou em poucos anos.

O que deixei de enfatizar -por problemas de espaço—foi sua importância como estilo, como modo de tocar. E aí se está falando em João Gilberto. Seu grande mérito foi ter desenvolvido uma técnica de tocar na qual acabaram cabendo quase todos os gêneros musicais do país.

No final dos anos 60, além da bossa nova propriamente dita e do samba canção, o estilo influenciou a marchinha, a marcha rancho e a própria valsa. Depois disso, foi responsável pelo enorme avanço da música brasileira pós-bossa nova. Trouxe a nova harmonia para a MPB.

Esse novo estilo de harmonia surge a partir dos anos 40 na música norte-americana. Entra no Brasil através de dois músicos centrais: Garoto no violão e Johnny Alf no piano. Há um conjunto de músicos norte-americanos influenciando a nova geração. Chat Baker é uma influência clássica e reconhecida, mas há também o violão de Barney Kessel e a voz de Julie London -conforme depoimento que me foi prestado por Baden Powell, e que resultou em duas páginas na “Folha” no início dos anos 90.

À nova harmonia, João Gilberto acrescenta a batida. Ressalve-se que ele não é o pai da batida. No lançamento de “O Balanço da Bossa”, Ruy Castro distribuiu para a imprensa uma fita com uma gravação histórica de Garoto e Johnny Alf, na qual o segundo reproduz a batida no piano, do mesmo modo que Gilberto faria depois no violão. A fita acabou passando despercebida porque, nela, o próprio Ruy fazia questão de enfatizar que aquela batida não era de bossa nova, mas de jazz. Não era jazz: era bossa nova pura. Ruy havia chegado ao ancestral mais antigo da batida de João Gilberto. Na fita, o que ele taxou de bossa nova autêntica -uma gravação balançadíssima de João Donato no acordeon—era o samba sincopado, da forma como era tocada pelos conjuntos vocais dos anos 40, cuja influência sobre João Gilberto foi dissecada de forma brilhante no seu livro.

O fato de Johnny Alf ter criado a batida não diminui a enorme, a grandiosa contribuição de João Gilberto para a música brasileira. Graças a ele, a nova técnica se disseminou pelo Brasil, de norte a sul, criou um padrão de harmonia inigualável. É só conferir Quincy Jones babando com as harmonias de Djavan e de Dori Caymmi, Michel Legrand dizendo que seu sonho era ser Ivan Lins.

Foi assim que se construiu a mais importante música popular da atualidade.

Luis Nassif

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