Às vésperas do aniversário do golpe de 64, Damares esvazia memória e justiça na Comissão de Anistia

Para especialistas, desmantelamento dos projetos ligados à Memória e Justiça e tentativa de CPI para investigar reparações são sinais de enfraquecimento da transição democrática

Jornal GGN – A ministra de Direitos Humanos Damares Alves promete divulgar nesta quarta (27) – às vésperas do aniversário de 55 anos do golpe civil-militar que implantou 21 anos de Ditadura no Brasil – uma série de mudanças na Comissão de Anistia que, na prática, caracterizam o desmantelamento dos projetos ligados à memória e à justiça de transição.

O esvaziamento da Comissão vem sendo intensificado no governo Bolsonaro, a ponto de a ministra já falar em acabar com os trabalhos do grupo que foi constituído em 2002, ainda sob FHC, para promover ações de reparação às vítimas da repressão, entre outros pontos.

Artigo de Giovanna Constanti no blog Casa da Democracia pontua como Damares tem desmontado a Comissão da Anistia.

Por Giovanna Constanti

Governo paralisa Comissão de Anistia e põe indenizações na berlinda

Na Casa da Democracia

“É um precedente terrível do que está por vir. Que mensagem está por trás dessas ações?”, questiona Carla Borges, do Instituto Vladimir Herzog, sobre a instauração de CPI da Comissão de Anistia. Na quarta-feira passada (13), um requerimento com 30 assinaturas foi protocolado pelo senador Styvenson Valentim (Pode-RN). O texto pede a investigação do órgão responsável pela concessão de reparações econômicas aos anistiados políticos da ditadura. Na proposta, Valentim afirma que as reparações pagas são “concedidas com pouca ou nenhuma transparência” e cita notícias sobre o que chama de “farra”: “As reparações parecem contemplar, na sua esmagadora maioria, figuras carimbadas da chamada esquerda brasileira, o que levanta sérias suspeitas de direcionamento”, afirmou.

A CPI não é o primeiro ataque do novo governo à Comissão. O órgão encontra-se hoje sem presidente e as sessões estão paradas desde o fim de 2018. Este ano, seus 20 conselheiros não se reuniram sequer uma vez — no ano passado, realizaram 44 reuniões. Ao todo, quase 12,6 mil processos aguardam apreciação ou revisão, alguns há mais de dez anos. Desde que foi transferido do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, no início do governo Bolsonaro, a Comissão tem sido alvo de diversas falas da ministra Damares Alves, que critica a forma como as indenizações foram concedidas: “A ordem é pente-fino geral. Vamos abrir essa caixa-preta e revelar à nossa nação o que foi feito com o dinheiro público nesses anos”, escreveu, ainda este mês, em uma rede social.

Alinhada às ideologias que orientam o governo do ex-militar Jair Bolsonaro, Damares pretende fazer com que a Comissão limite seu papel à análise de pedidos, deixando de promover projetos ligados à Memória e à Justiça, além da limitação da quantidade de recursos aos quais os solicitantes da indenização têm acesso. Para Carla Borges, que também foi coordenadora de Direito à Memória e à Verdade da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, “ao se colocar em questão a Comissão de Anistia e a reparação, está se questionando o direito à memória, à verdade e à justiça. Tudo isso é posto em xeque”.

Em entrevista à Época, a ministra afirmou que era preciso começar a pensar em “ir fechando a Comissão”: “Vou estabelecer um momento para o fim das reparações. O regime militar acabou há 35 anos. Isso vai durar para sempre”, disse, em outra ocasião. Por lei, a Comissão não teria uma data estipulada para acabar, uma vez que o crime de tortura não prescreve.

“A reparação financeira faz parte da chamada Justiça de Transição, que são deveres do Estado para retornar à democracia. Isso é feito também pela abertura de arquivos, responsabilização dos responsáveis e reparações simbólicas, materiais e psicológicas”, explica Eugênia Augusta Gonzaga, procuradora da República e presidenta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos da Ditadura. Para ela, os ataques são uma maneira de fazer perseguição. “Se esse governo quer transparência, eles deveriam então abrir os arquivos que ainda estão fechados, dizer os destinos dos corpos ainda não encontrados”, comenta.

Precarização em curso

“Desde o impeachment, a Comissão vem sendo atacada e minguada”, diz Carla Borges. “A autonomia sob a gestão de orçamento foi reduzida. Não existem mais editais para projetos ligados à ditadura e memória desde a gestão Temer. Pessoas foram exoneradas sem transição e levaram consigo a memória institucional”. O desmantelamento se agravou com a criação de uma portaria que substituiu seis conselheiros e anunciou 20 nomeações de forma arbitrária. “A Comissão costumava ser heterogênea. Na época das novas nomeações, saíram notícias de que, entre as 20 pessoas, havia gente que tinha falado à favor da ditadura”, afirma.

No site da Comissão, os dados disponíveis contemplam apenas os anos de 2014 em diante. Ainda neste mês, o site saiu do ar para ‘migração’. O acesso ao conteúdo, que contém informações sobre como requerer anistia política, processos, atas das reuniões, publicações e canais de atendimento, tem sido dificultado. As informações ficavam hospedadas no site do Ministério da Justiça e a página publicava os resultados das reuniões, além de uma lista com todos os anistiados. Agora, com a mudança de pasta, de acordo com reportagem do G1, o governo retirou o trecho que explicava a importância do trabalho do órgão como instrumento de Justiça Transicional.

Curiosamente, um dos principais argumentos de Damares para os ataques à Comissão é a sua suposta falta de transparência. “Isso não se sustenta. Se a questão da transparência é séria, porque o site não volta como estava? As informações sobre o funcionamento do órgão, os anistiados etc. estavam todas ali”, comenta Carla. Para ela, as mudanças defendidas por Damares e o pedido da CPI são golpes dentro de um contexto ainda maior. “Faz parte de uma tentativa de revisionismo histórico da ditadura. É sinal claro de que não querem transitar totalmente para a democracia”.

Como funciona Comissão de Anistia?

Criada em 2001, durante o segundo governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a Comissão de Anistia recebe e analisa os pedidos de indenização e reparação a vítimas de perseguição política entre os anos de 1946 e 1988. Há cinco tipos de reparação, uma delas, foco das críticas dos defensores da CPI, é a econômica. Desde 2001, a comissão analisou 66,3 mil casos, dos quais deferiu 39,3 mil. As reparações econômicas atenderam cerca de 25 mil pessoas desde o início do funcionamento do órgão.

A criação da CPI pode interromper as atividades das outras frentes, como os projetos de reparação simbólica, o desenvolvimento de políticas públicas e o apoio psicológico às vítimas e seus familiares. Segundo dados informados à Comissão pelos ministérios da Economia e da Defesa, em 18 anos anos, o governo pagou cerca de R$ 10 bilhões em indenizações — o que significaria, em média, R$ 400 mil por anistiado, caso houvesse uniformidade nos valores concedidos.

Para Eugênia Augusta, ainda que pensões e indenizações sejam pagas, elas ainda são, em sua maioria, “um valor muito simbólico”: “O solicitante tem que provar que foi atingido pelo ato de exceção e entrar com um inquérito na Comissão”, explica a procuradora. “É um ato jurídico perfeito, ou seja, essas pessoas recebem a reparação com o amparo de uma lei. Caso elas sejam atingidas por essa CPI, podem entrar com uma medida de segurança”.

Quem recebe as indenizações?

Na medida em que o governo reconhece a condição de anistiado a uma pessoa, ele admite que usou o aparato estatal para perseguir e violar direitos de cidadãos. Não só vítimas de torturas recebem reparos. Estão entre os indenizados trabalhadores que, por participarem de greves ou agremiações políticas, perderam empregos e deixaram de serem contratados, além de filhos e familiares próximos das vítimas da execução estatal — inclusive crianças que foram presas com seus pais durante a ditadura e viram os pais serem torturados. “Grande parte das indenizações é destinada aos próprios militares, e não a políticos de esquerda, como defende o texto da CPI”, diz Eugênia: “Muitos militares foram anistiados. Na época, foram afastados por não se encaixarem na forma como o Exército agiu. Hoje também recebem reparações financeiras.”

Redação

2 Comentários

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  1. nós estamos sob uma ditadura à la século 21. Se alguém q estava dormindo ainda não tinha percebido os sinais estão cada vez mais óbvios. Mais um pouco e eles vão começar a desenhar para explicitar para os mais lentos…

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