BOLA DE SEBO

 

Durante a guerra de 1870, prussianos invadem a França. Na Normandia os soldados franceses recuam deixando o território livre para o inimigo, nada aparece para detê-los, a população local é obrigada a dar guarida ao invasor. Na cidade de Ruão o narrador observa:

      Vozes de comando, gritadas em língua desconhecida e gutural, subiam ao longo das casas que pareciam mortas e desertas, enquanto por detrás das venezianas cerradas havia olhos espiando aqueles homens vitoriosos, senhores, “por direito de guerra”, da cidade, dos bens e das vidas. Os homens nos seus quartos escurecidos sentiam o desespero que produzem os cataclismas, as grandes convulsões destruidoras da terra, contra os quais é inútil toda força e toda sabedoria…

      Ou o exército glorioso massacrando os que se defendem, levando os outros prisioneiros, pilhando em nome do Sabre e louvando a Deus com as bocas dos seus canhões, são outros tantos flagelos horrorosos que desmancham toda a crença na justiça eterna…

      A cada porta batiam pequenos destacamentos, desaparecendo a seguir no interior das casas. Era a ocupação após a invasão. Começava aos vencidos o dever de se mostrarem gentis com os vencedores…

 

Numerosos habitantes decidem então fugir à ocupação e à necessidade de alojar em sua casa os inimigos estrangeiros. Deixam a sua cidade, a sua casa.

Alguns moradores mais abastados que tinham negócios em Havre, ocupado pelo exército francês e desejavam tentar alcançar esse porto indo por terra até Dieppe, onde embarcariam. Conseguiram autorização do General prussiano e:

 

      Contrataram para a viagem uma grande diligência puxada a quatro cavalos, e quando dez pessoas se tinham inscritos no alquilador, marcou-se a partida para uma terça-feira de madrugada, antes do romper do dia, a fim de evitar curiosidades.

      Às quatro e meia da madrugada os viajantes reuniram-se no pátio do Hotel da Normandia, onde deviam tomar a diligência.

      Estavam ainda cheios de sono e tiritavam de frio sob seus agasalhos. Via-se mal na escuridão, e o acúmulo das pesadas roupas de inverno assemelhava todos aqueles corpos a padres obesos em suas longas sotainas. Entretanto dois homens reconheceram-se, um terceiro abordou-os e puseram-se a conversar:

 – Eu levo a minha mulher – disse um.

 – Eu faço a mesma coisa.

 – Eu também.

 – Não voltaremos a Ruão – acrescentou o primeiro – e se os prussianos se aproximarem de Havre alcançaremos a Inglaterra.

Todos tinham os mesmos projetos, sendo de compleição semelhante.

      Os três homens instalaram as esposas no fundo, que tinham trazidos pequenos aquecedores de cobre que funcionavam com um carvão artificial, acenderam seus aparelhos e durante algum tempo, em voz baixa, enumeraram-lhe as vantagens, repetindo coisas há muito tempo sabidas.

      Por fim, atrelada a diligência, com seis cavalos em vez de quatro por causa da tração mais difícil, uma voz perguntou do lado de fora:

      – Já todos subiram?

      – Já – respondeu uma voz de dentro.

      Partiram. O veículo movia-se com toda a lentidão. As rodas enterravam-se na neve, a enorme caixa gemia inteira, com estalidos surdos; os animais escorregavam, fumegavam, e o comprido chicote do cocheiro estalava sem descanso, volteando de todos os lados, contraindo-se e desdobrando-se como uma delgada serpente, zurzindo bruscamente alguma garupa roliça que se estendia então num esforço mais violento…

      Bem ao fundo, nos melhores lugares, dormitavam um diante do outro o senhor e a senhora Loiseau, atacadistas de vinho da Rua Grand Pont.

      Antigo caixeiro de um patrão arruinado pelos negócios. Loiseau comprara os espólios e fizera fortuna. Vendia a muito bom preço muito mau vinho aos pequenos varejistas do campo e passava entre os conhecidos e amigos por um espertalhão, um verdadeiro normando cheio de manhas e de jovialidade.

      Ao lado deles sentava-se, mais digno, pertencendo a uma casta superior, o senhor Carré Lamadon, homem considerável, empoleirado em algodão, proprietário de três fiações, oficial da Legião de Honra e membro do Conselho Geral…

      A senhora Carré Lamadon, muito mais nova que ele, era o consolo dos oficiais de boa família enviados à guarnição de Ruão.

      Seus vizinhos, o conde e a condessa Humberto de Bréville, usavam um dos nomes mais antigos e nobres da Normandia. O conde, velho fidalgo de grandes maneiras, esforçava-se por acentuar, com os artifícios de toalete, a sua natural semelhança com o rei Henrique IV que, segundo sua gloriosa lenda de família, engravidara uma dama de Bréville cujo marido, por este fato, se tornara conde e governador de província…

      A condessa tinha ainda como vizinhas duas irmãs de caridade que debulhavam longos rosários, resmungando padre-nossos e ave-marias, uma era velha, com a face tão devastada pela varíola, como se tivesse recebido à queima roupa uma rajada de metralha em pleno rosto. A outra insignificante tinha uma cabeça bonita e doentia sobre um peito de tísica, roída por esta fé devoradora que faz os mártires e os iluminados.

      Em frente às duas religiosas, um homem e uma mulher atraíam os olhares de todos.

      O homem muito conhecido era Cornudet o democrata, terror das pessoas respeitáveis, que há vinte anos mergulhava a grande barba ruça nos chopes de todos os cafés revolucionários… Pensava agora tornar-se mais útil no Havre, onde novos entrincheiramentos iam ser necessários.

      A mulher, uma daquelas a que chamam galantes, era célebre pela sua gordura precoce que lhe valera a alcunha de Bola de Sebo. Pequena, redonda em todos os pontos, de uma gordura de toucinho, com os dedos roliços, estrangulados nas falanges, semelhantes a rosários de curtas salsichas; com uma pele luzidia e esticada, um pescoço enorme que extravasava do vestido, era contudo apetitosa e disputada, tão vistosa era sua aparência. Seu rosto era uma maçã vermelha, um botão de peônia prestes a florir, em cujo cimo se abriam dois negros olhos magníficos, sombreados de grandes cílios espessos que ainda mais o enegreciam; em baixo era uma boca encantadora, pequena, úmida para o beijo, guarnecida de dentinhos microscópicos e reluzentes.

      Além disso, pelo que se dizia, era cheia de qualidades inapreciáveis.

      Logo ela foi reconhecida, correram cochichos entre as mulheres sérias, e as palavras “prostituta” e “vergonha pública” foram segregadas tão alto que ela ergueu a cabeça. E então passou aos vizinhos um olhar de tal modo provocante e atrevido que logo se fez um grande silêncio, e todo o mundo baixou os olhos à exceção de Loiseau, que a espreitava com um ar divertido…

      A diligência caminhava tão lentamente que às dez horas da manhã ainda não tinha percorrido quatro léguas. Os homens desceram três vezes para subir as encostas a pé. Começavam a inquietar-se porque deviam almoçar em Tôtes e já ninguém esperava chegar lá antes da noite…

      O apetite aumentava, perturbando os espíritos; e nenhuma tasca, nenhum botequim se avistava, pois a aproximação dos prussianos e a passagem das tropas francesas esfaimadas tinham apavorado todos os meios de negócio…

      Por fim, às três horas, quando se achavam em meio de uma planície interminável, sem qualquer povoação à vista, Bola de Sebo inclinando-se vivamente retirou de baixo da banqueta um grande cesto coberto com uma toalha branca.

      Começou a tirar de dentro do pequeno prato de louça, um fino copo de prata, depois uma enorme terrina na qual dois frangos inteiros, já trinchados, curtiam sob o seu molho; e ainda se viam no cesto outras boas coisas embrulhadas, pastéis, frutas, gulodices, provisões preparadas para uma viagem de três dias, a fim de não recorrer à cozinha dos albergues. Quatro gargalos de garrafas apontavam entre os embrulhos da comida. Ela tomou uma asa de frango pôs-se delicadamente a comê-la com um desses pãezinhos que na Normandia se chamam “Regência”

      Todos os olhares se tinham cravado nela. Depois o cheiro espalhou-se, dilatando as narinas, fazendo afluir às bocas uma saliva abundante, com uma contração dolorosa da mandíbula sobre as orelhas. O desprezo das senhoras por aquela perdida ia-se tornando feroz, com um desejo de a matar ou de jogar em baixo da diligência, na neve a ela, ao seu copo de prata, ao cesto e as suas provisões.

      Mas Loiseau devorava com os olhos a terrina de frango. Não se conteve:

      – Ainda bem a senhora teve mais juízo do que nós. Há pessoas que sempre pensam em tudo.

      Ela ergueu a cabeça encarando-o:

      – É servido, senhor? É duro jejuar desde manhã!

      – Caramba! – exclamou ele saudando – Francamente, não recuso, não posso mais. Na guerra como na guerra, não é verdade, senhora?

      E lançando um olhar em redor, acrescentou:

      – Em momentos como este, é uma sorte encontrar pessoas generosas!

      Bola de Sebo, numa voz humilde e carinhosa, propôs às freiras partilhar a sua refeição. Elas aceitaram ambas instantaneamente, e sem erguer os olhos puseram-se a comer… Cornudet também não recusou a oferta… Então o marido, arredondando a sua frase, pediu à “encantadora companheira” se lhe permitia oferecer um pedacinho à senhora Loiseau.

      – Naturalmente, senhor – respondeu ela com um amável sorriso, estendendo a terrina…

      Bruscamente a esposa do manufatureiro… perdera os sentidos… Ninguém sabia o que fazer quando a mais velha das freiras, amparando a cabeça da doente, lhe introduziu nos lábios o copo de Bola de Sebo, fazendo-a engolir algumas gotas de vinho. A bela senhora mexeu-se, abriu os olhos, sorriu e declarou debilmente que se sentia agora muito bem. Mas para que aquilo não se repetisse, a religiosa obrigou-a a beber um copo cheio de vinho, acrescentando:

      – É fome, não é outra coisa.

      Então Bola de Sebo, corando e embaraçada, balbuciou olhando os quatros viajantes que continuavam em jejum:

      – Meu Deus, se eu pudesse oferecer a esses senhores e as essas senhoras…

      Hesitavam. Ninguém querendo assumir a responsabilidade do “sim”.

      Mas o conde resolveu a questão, e voltando-se para a intimidada gorducha com seu ar de grande fidalgo, declarou:

      – Aceitamos com reconhecimento, minha senhora.

 

      O cesto foi esvaziado. Não era possível comer as provisões da mulher sem lhe falar. Conversaram então, a princípio com reserva, depois, como ela se mostrava cordata, abandonaram-se mais… Em breve começaram as historias pessoais, e Bola de Sebo referiu, com uma emoção verdadeira, com essa vivacidade de linguagem que possuem as mulheres da sua condição para exprimir os seus arrebatamentos naturais, o modo como deixara Ruão;

       – A princípio imaginei que podia ficar – disse ela – Tinha a casa cheia de mantimentos, e preferia ter de sustentar alguns soldados do que expatriar-me não sei para onde. Mas quando vi esses prussianos, não agüentei mais! Fizeram-me ferver o sangue e chorei de vergonha o dia inteiro. Ah! Se eu fosse homem! Via da janela aqueles gordos porcos com seus capacetes de ponta, e a minha criada tinha de prender-me as mãos para que eu não lhes jogasse a mobília em cima. Depois vieram se instalar em minha casa, mas eu atirei-me à garganta do primeiro. Eles não são mais difíceis de esganar que os outros. E teria dado cabo deste se não me tivessem arrancado pelos cabelos. Nessa altura precisei esconder-me, e enfim, quando se apresentou uma ocasião, parti e aqui estou.

      Felicitaram-na muito. Ela crescia na estima dos companheiros que não se tinham mostrado tão valentes…

 

      Alguns pontos de luz surgiram adiante, na estrada. Era Tôtes. Tinham andado onze horas, o que com as duas horas de descanso dadas por quatro vezes aos cavalos para comer aveia e relinchar, totalizava treze. Entraram na povoação e pararam em frente do Hotel do Comércio.

 

      A porteira abriu. Um rumor bem conhecido fez tremer todos os passageiros; era o arrastar de uma bainha de espada pelo chão. Imediatamente a voz de um alemão gritou alguma coisa…

 

      Ao lado do cocheiro perfilava-se em plena luz um oficial alemão, um homem alto, excessivamente magro e loiro, apertado no seu uniforme como uma mulher no seu corpete, e usando de lado o seu boné chato e lustroso que o fazia parecer-se com um criado de caça de palácio inglês…

      Convidou os passageiros a descer num francês de alsaciano, dizendo num tom rígido:

      – Queiram tescerr, zenhorres e zenhorras!..

 

      Entraram na vasta cozinha do albergue, e o alemão, tendo reclamado a autorização de partida assinada pelo general em chefe e na qual estavam mencionados os nomes, os sinais e a profissão de cada passageiro, examinou com vagar toda aquela gente, comparando as pessoas com os dados escritos.

      – Está peng! – disse bruscamente, desaparecendo.

 

      – Respiraram. E como tinham fome encomendaram o jantar… Enfim, iam sentar-se à mesa quando o próprio dono da estalagem apareceu:

      – Senhorita Elisabete Rousset? Perguntou ele.

      Bola de Sebo voltou-se surpreendida:

      – Sou eu.

      – Senhorita, o oficial prussiano quer falar-lhe imediatamente.

      – A mim?

      – Sim, se é realmente a senhorita Elisabete Rousset.

      Ela atarantou-se, refletiu um momento e depois declarou com secura:

      – Talvez, mas eu não vou.

      Movimentaram-se em redor dela; todos discutiam, buscando a causa daquela ordem. O conde aproximou-se:

     – Fez mal, senhora, porque a sua recusa pode acarretar grandes dificuldades, não só para si, mas para todos seus companheiros…

      Todos o apoiaram, pedindo, fazendo pressão, dando razões, e acabaram por a convencer; todos temiam as complicações que podiam resultar de uma teimosia. Por fim ela disse;

      – Faço pelos senhores tenham a certeza!

      A condessa tomou-lhe a mão:

      – Ficamos-lhe muito agradecidos.

      Ela saiu. Esperaram-na para se sentarem à mesa. Todos lamentavam não ter sido chamados em vez daquela mulher violenta e irascível, preparando mentalmente subserviências para o caso de se verem na mesma situação.

      Mas daí a dez minutos ela tornou a aparecer, arquejando, apoplética, furiosa, balbuciando:

      – Que canalha! Que canalha!

      Todos quiseram saber, mas ela não disse nada; e como o conde insistia, respondeu com grande dignidade:

      – Não, isso nada tem a ver com os senhores; não posso falar.

 

     Terminada a ceia, como estivessem quebrados de fadiga, foram dormir.

 

      Toda a casa mergulhou em silêncio. Como tinham decidido partir às oito horas do dia seguinte, todo o mundo se encontrou na cozinha; mas a diligência, cujo toldo tinha um palmo de neve, erguia solitária no meio do pátio, sem cavalos e sem condutor. Em vão procuraram pelas cocheiras, entre as forragens no celeiro… Mas não se encontrava o cocheiro. Por fim descobriram-no no botequim da aldeia, abancando fraternalmente com o ordenança do oficial. O conde interpelou-o:

      – Não lhe deram ordem de atrelar para as oito horas?

      – Sim, mas depois desta ordem deram-me outra.

      – Qual?

      – De não atrelar mais.

      – Quem lhe deu essa ordem?

      – Ora essa! O comandante prussiano.

      – Por quê?

      – Isso não sei. Vá perguntar-lhe. Proibiram-me de atrelar eu não atrelo.

      – Foi ele quem lhe disse isso?

      – Não senhor; foi o estalajadeiro que me deu a ordem da sua parte.

      – Quando isso?

      – Ontem à noite, quando me ia deitar.

      Os três homens regressaram muito preocupados…

 

      Quando deram dez horas o senhor Follenvie, o estalajadeiro apareceu. Interrogaram-no logo, mas ele só pode repetir, duas ou três vezes, sem uma variante, estas palavras;

      – O oficial disse-me isto: senhor Follenvie, o senhor impedirá que seja atrelada amanhã a diligencia desses viajantes. Não quero que eles partam sem minha ordem. Está entendido? Mais nada.

 

A indignação tomou conta dos viajantes, tentaram falar com o comandante, mandando-lhe suas informações que os colocavam como pessoas importantes da sociedade, e quando foram recebidos, os três senhores não conseguiram sensibilizá-lo a deixá-los partir.

 

      A tarde foi lamentável. Ninguém compreendia aquele capricho do alemão, e as idéias mais singulares agitavam as cabeças. Todo o mundo se conservava na cozinha e discutia-se interminavelmente, imaginado coisas inverossímeis. Queriam talvez guardá-los como reféns; mas com que fim? Ou levá-los prisioneiros, ou ainda exigir-lhes um resgate considerável. Este pensamento espalhou um verdadeiro pânico. Os mais ricos eram os mais assustados, vendo-se já coagidos, para salvarem a vida, a despejar sacos cheios de ouro nas mãos daquele soldado insolente. Deram tratos à cabeça para descobrir mentiras aceitáveis, dissimular as suas riquezas, fazerem passar por pobres, muito pobres. Loiseau tirou a sua corrente de relógio e escondeu-a no bolso…

 

      Quando estavam para se sentar à mesa do jantar, o senhor Follenvie tornou a aparecer; e com a voz acatarrada, disse:

      – O oficial prussiano manda perguntar à senhorita Elisabete Rousset se ela já mudou de opinião.

      Bola de Sebo continuou de pé, muito pálida, depois, tornando-se subitamente escarlate, teve uma tal explosão de cólera que mal podia falar. Por fim vociferou:

      – Diga a esse crápula, a esse porco, a esse imundo prussiano, que eu nunca consentirei; compreendeu bem? Nunca, nunca, nunca!

 

      O gordo estalajadeiro retirou-se. Então Bola de Neve foi cercada, solicitada por todo o mundo a revelar o mistério da sua visita. Ela a princípio resistiu, mas daí a pouco a indignação arrebatou-a:

      – O que ele quer? Sabem o que ele quer? Quer dormir comigo! – Gritou.

 

      Ninguém se chocou com a expressão, tão viva foi a revolta geral. Cornudet quebrou a caneca pousando-a violentamente na mesa. Foi uma onda de reprovação contra aquele militarão ignóbil, uma rajada de cólera, uma união de todos para a resistência, como se tivesse sido reclamada de cada um, uma parte do sacrifício exigido dela…

      Abrandadas as primeiras fúrias, jantou-se contudo; mas falou-se pouco, com grandes preocupações…

      No outro dia o almoço foi triste; criara-se uma espécie de frieza para com Bola de Sebo, porque a noite, que é boa conselheira, modificara um tanto as opiniões. Quase queriam mal àquela mulher, agora, por não ter ido secretamente ao encontro do prussiano, a fim de que os companheiros, ao acordar, tivessem uma boa surpresa. Que haveria de mais simples? E quem o viria a saber, afinal? Ela salvaria as aparências mandando dizer ao oficial que se condoia da aflição em que todos estavam. Era uma coisa tão insignificante para ela!…

 

      No dia seguinte desceram com os rostos fatigados e os corações em fúria. As mulheres mal falavam a Bola de Sebo.

      Badalou um sino, para um batizado. A gorda criatura tinha um filho criando entre os camponeses de Yvetot, que não via sequer uma vez por ano e no qual nunca pensava; mas a idéia da criança que iam batizar despertou-lhe no coração uma ternura súbita e violenta e ela quis absolutamente assistir a cerimônia.

      Logo que saiu todos se olharam, depois aproximaram as cadeiras, pois sentia-se que enfim era indispensável resolver alguma coisa. Loiseau teve uma inspiração: achava que devia propor ao oficial ficar só com Bola de Sebo e deixar partir os outros.

      O senhor Fellenvie tomou ainda o encargo dessa diligência, mas não tardou a descer. O alemão, que conhecia a natureza humana, despedira-o imediatamente: pretendia reter o mundo enquanto o seu desejo não fosse satisfeito.

      Então o temperamento plebeu da senhora Loiseau explodiu:

      – Nós não podemos ficar aqui até morrer de velhice! Se o ofício dessa mulher é fazer isso com todos os homens, acho que ela não tem o direito de recusar este ou aquele. Em Ruão ela aceitava tudo, até cocheiros! Sim senhora o cocheiro da prefeitura! Sei disso muito bem porque ele compra o vinho lá em casa. E agora que se trata de nos tirar de dificuldades, faz-se de fina essa ranhosa! Eu acho que o oficial é muito cordato Vê-se de certo privado de mulher há muito tempo, e nós somos aqui três que ele sem dúvida preferiria. Mas não, contenta-se com essa que é de todo mundo. Respeita as mulheres casadas. E, contudo ele manda. Tinha só a dizer “Eu quero!”, e podia nos levar a força com os seus soldados…

      Os homens, que discutiam à parte, acercaram-se, Loiseau, furibundo, queria entregar “aquela miserável” atada de pés e mãos ao inimigo. Mas o conde, que descendia de três gerações de embaixadores e tinha um físico de diplomata, era partidário da habilidade.

      – Precisamos convencê-la! Disse.

      E puseram-se a conspirar…

Preparou-se o bloqueio, como para atacar uma fortaleza. Cada qual aceitou o papel que teria que representar os argumentos em que se apoiaria, as manobras que devia executar. Combinou-se o plano dos ataques, os ardis a empregar, e as surpresa do assalto para forçar essa cidadela viva a receber o inimigo em seu interior..

      Até ao almoço, contudo, as senhoras limitaram-se a ser amáveis com ela, para aumentar a sua confiança e a sua docilidade aos futuros conselhos… Então desenrolou-se uma historia fantástica, criada pela imaginação daqueles milionários ignorantes, em que as cidadãs de Roma iam a Cápua adormecer Aníbal em seus braços, e com ele seus ajudantes e as falanges dos mercenários. Citaram-se todas as mulheres que detiveram conquistadores, fazendo de seus corpos um campo de batalha, um meio de dominar, uma arma, que pela suas carícias heróicas venceram homens odiosos ou detestados, sacrificando a sua castidade à vingança e à abnegação.

 

      Por fim, poder-se-ia acreditar que o único papel da mulher neste mundo, era o de um perpétuo sacrifício da sua pessoa, um abandono incessante aos caprichos da soldadesca.

      As duas freiras não davam sinais de entender, imersas em profunda meditação, e Bola de Sebo nada dizia.

       Deixaram-na refletir durante toda a tarde. Mas em vez de tratarem por “senhora” como até aí, diziam simplesmente “senhorita”, sem que ninguém soubesse porque, como se pretendessem fazê-la descer um degrau na estima que tinha alcançado, obrigá-la a sentir a sua posição vergonhosa. No momento em que serviam a sopa de novo apareceu Foilenvie, repetindo a sua frase da véspera, e Bola de Sebo novamente respondeu negativamente.

 

      Durante o jantar a aliança enfraqueceu… foi então quando a condessa, talvez sem premeditação, obedecendo a um vago desejo de homenagear a Religião, interrogou a mais idosa das freiras a respeito dos grandes episódios da vida dos santos. Muitos deles tinham cometido atos que seriam crimes aos nossos olhos; mas a Igreja absolve facilmente essas prevaricações quando elas são realizadas para a glória de Deus, ou para o bem do próximo…

      Achava muito natural o sacrifício de Abraão, porque ela teria imediatamente matado pai e mãe a uma ordem vinda do alto; e nada, em sua opinião, poderia desagradar ao Senhor quando a intenção era louvável.

      A condessa aproveitando a autoridade sagrada daquela cúmplice tão bem vinda levou-a a fazer uma espécie de paráfrase edificante do axioma de moral: o fim justifica os meios.

      – Então – perguntou ela – a minha boa irmã pensa que Deus aceita todos os caminhos, e perdoa a falta quando o motivo é puro?

       – Pois que dúvida, senhora? Uma ação reprovável em si torna-se muitas vezes meritória pelo pensamento que a inspira.

      E continuaram assim, penetrando as vontades de Deus, prevendo as suas decisões, interessando-o em coisas que verdadeiramente não lhe diziam respeito.

 

      Tudo aquilo era disfarçado, hábil, discreto. Mas cada palavra da santa mulher de capuz branco abria brecha na resistência indignada da cortesã. Depois a conversa desviou-se um pouco e a esposa de Cristo falou das casas da sua ordem…

      Depois dela ninguém falou mais nada, tão excelente pareceu o efeito.

      No outro dia o almoço foi tranqüilo. Davam ao grão semeado na véspera o tempo de germinar e produzir seus frutos.

      A condessa propôs um passeio de tarde, e então o conde, como estava combinado, deu o braço a Bola de Sebo e ficou atrás com ela.

      Falou-lhe no tom familiar, paternal e um tanto desdenhoso que os homens importantes empregam com as mulheres da vida, chamando-lhe de “minha filha”, tratando-a do alto da sua posição social, da sua honorabilidade indiscutível. E bruscamente atacou o vivo da questão:

      – Prefere então deixar-nos aqui, expostos como você mesma a todas as violências que se seguiriam a um revés das tropas prussianas, do que consentir num desses favores que tantas vezes concedeu em sua vida?

       Bola de Sebo não respondia nada.

      – Alem disso, minha cara, ele poderá gabar-se de ter saboreado uma mulher como não encontrará muitas na sua terra…

 

      Quando entraram, ela subiu para o quarto e não tornou a aparecer. A preocupação era extrema. Que iria fazer? Se ela continuasse resistindo, que maçada!

 

      Chegou a hora do jantar, em vão a esperaram, O senhor Follenvie, entrando, anunciou que a senhorita Rousset estava indisposta e que podiam sentar-se à mesa. Todo o mundo aguçou o ouvido. O conde aproximou-se do estalajadeiro e perguntou-lhe baixo:

      – Aceitou?

      – Sim – respondeu o outro.

      Por conveniência não disse nada aos companheiros, acenando-lhes levemente com a cabeça. Um grande suspiro de alívio saiu de todos os peitos, a alegria estampou-se nos rostos.

      – Com a breca! – exclamou Loiseau; – eu pago champanhe se o houver aqui no estabelecimento…

      Loiseau, excitado, ergueu-se com uma taça de champanha na mão:

      – Bebo ao nosso resgate!

      Todos se puseram de pé, aclamando. As próprias freiras, solicitadas pelas senhoras, consentiram em molhar os lábios naquele vinho espumante que nunca tinham provado. Declararam que se parecia muito com a limonada gasosa sendo, no entanto mais fino.

Fingindo ouvir alguma coisa vinda do andar de cima, Loiseau com a mão estendia o ouvido e pedia silencio, avisando aos demais:

      – Sosseguem vai tudo bem!

      – Chega! Chega!

      – Canalha prussiano…

      – Queremos vê-la de novo; não vá ele matá-la, aquele miserável!…

      Loiseau resumiu a situação;

      – É uma pena não termos piano, porque então podia-se dançar uma quadrilha.

      Cornudet não dissera uma palavra, não fizera um gesto; parecia mergulhado em profundas cogitações, repuxando, às vezes com gesto furioso a grande barba que dava a impressão de querer estender ainda mais. Enfim, à meia noite, quando se iam separar, Loiseau que tartamudeava, deu-lhe um tapa no ventre e disse-lhe:

      – O senhor esta noite não brincou; não tem nada a dizer cidadão?

      – O que lhes digo a todos é que acabam de fazer uma infâmia! – e desapareceu…

 

      No dia seguinte um claro sol de inverno fazia rebrilhar a neve. A diligência enfim atrelada, esperava diante da porta…

      O cocheiro enrolado na sua pele de carneiro tirava uma cachimbada no assento, e todos os passageiros contentíssimos mandavam empacotar rapidamente provisões para o resto da viagem.

      Esperavam apenas Bola de Sebo. Ela surgiu

      Parecia um tanto embaraçada, envergonhada e aproximou-se timidamente dos companheiros que, todos, num mesmo movimento, se voltaram como se a não tivessem visto. O conde tomou com dignidade o braço da mulher e a afastou daquele contato impuro.

      A gorda moça parou estupefata; e então reunindo toda a sua coragem, abordou a esposa do manufatureiro com um “bom dia minha senhora”, humildemente murmurado. A outra fez com a cabeça apenas um aceno impertinente, acompanhando-o de um olhar de virtude ultrajada…

      O pesado veículo abalou, a viajem prosseguiu. A principio ninguém falou. Bola de Sebo não ousava levantar os olhos. Sentia-se ao mesmo tempo indignada com os vizinhos e humilhada por ter cedido, lambuzada pelos beijos daquele prussiano a cujos braços a tinham hipocritamente atirado…

 

Após três horas de viajem todos os passageiros começaram a tirar de suas bolsas os mantimentos, e os saborearam, ignorando a presença de Bola de Sebo.

 

      Ninguém olhava para ela, ninguém se preocupava com ela. Sentia-se afogada no desprezo daqueles desavergonhados que primeiro a tinham sacrificado e repelida depois como uma coisa suja e inútil. Pensou então no seu grande cesto cheio de bons acepipes que eles tinham gulosamente devorado, nas quatro garrafas de Bordéus; e a sua fúria tombando subitamente como uma corda que quebre, veio-lhe um imenso desejo de chorar. Fez esforços terríveis, empertigou-se, engoliu os soluços como as crianças, mas o pranto subia, luzia-lhe na beira das pálpebras e logo duas grossas lágrimas, desprendendo-se dos olhos, lhe rolaram lentamente pelas faces. Outras se seguiram mais rápidas, caindo como gotas de água filtradas por entre rochas, e tombando regularmente na curva arredondada dos seios. Mantinha-se firme de olhos fixos, a face rígida e pálida, esperando que a não visse.

 

      Mas a condessa percebendo avisou o marido com um aceno. Ele encolheu os ombros como para dizer: “Que quer? A culpa não é minha!¨

      A senhora Loiseau teve um mudo sorriso de triunfo e murmurou:

      – Chora a sua vergonha!

      As duas freiras tinham voltado às suas rezas, depois de embrulhado num papel o resto do salpicão.

      Então Cornudet, que digeria os seus ovos, estendeu as longas pernas sob a banqueta da frente, revirou-se, cruzou os braços, sorriu como homem que acaba de assistir a uma boa farsa e pôs-se a assobiar a Marselhesa.

      Todos os rostos se contraíram. Aquele canto popular, certamente, não agradava aos vizinhos. Mostraram-se nervosos, agastados e tinham o ar de latir como cães que ouvem um realejo. Ele não dava por isso, não acabava. Por vezes mesmo trauteava as palavras:

Sagrado amor da pátria.

Conduz, sustém, nossos braços vingadores.

Liberdade, liberdade querida.

Combate com os teus defensores.

 

      Bola de Sebo chorava sempre; e por vezes um soluço que ela não pudera conter, passava nas trevas entre duas estrofes.

 

Retirado do livro de contos Bola de Sebo – Editora Saraiva.

Traduzido por Augusto Souza.

Resumo de Stanilaw Calandreli.

 

 

Redação

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