Da renúncia do Papa e de padres e pastores

 

A renúncia de Bento XVI é coisa rara na Igreja, é o 4º Papa a fazê-lo, e por isso revestida de imenso significado. Desde sua escolha, em função de sua idade, já se sabia que seu papado seria curto, apenas uma ponte até a escolha de um nome que desse os novos nortes a seguir por toda a Igreja. Entretanto, a renúncia do Cardeal Joseph Ratzinger nos coloca a pensar sobre alguns temas importantes e que se evidenciam cada vez mais como grandes problemas dentro da Igreja e fora dela.

Agora que o Brasil é um país eminentemente urbano, o que vemos é a expansão permanente das denominações evangélicas enquanto os católicos parecem não terem entendido o que é e como deve ser a religiosidade na cidade nestes novos tempos. E um dos problemas, que, diga-se de passagem, é tristemente compartilhado pelos evangélicos, é o que se refere à autoridade.

À medida que o Brasil se urbanizava, era e é acompanhado por um processo mais ou menos rápido de secularização, afastamento dos mitos religiosos e a proliferação de comportamentos e ideias desvinculados de uma ética religiosa. Espraia-se na sociedade o sentimento de que viver é desatrelar-se de qualquer obrigação, contingência ou moral previamente determinada. Viver é ser feliz e ser feliz é guiar-se pelo que bem se entende ser o melhor. Nas pegadas desse novo modus vivendi vamos encontrando a corrosão acelerada da figura da autoridade. Uma vez que está no indivíduo a única pessoa legítima para definir o melhor caminho, qualquer autoridade, nesse caso religiosa, perde completamente o reconhecimento e legitimidade para servir-se como guia.

Cercados por um mundo e um discurso predominantemente secular e tendo na ciência a única dimensão reconhecida como portadora da verdade, notamos com clareza entre boa parte de padres católicos e pastores evangélicos o desenvolvimento de comportamentos que mais acentuam a descrença e aprofundam o sentimento de apatia entre os fiéis. A dificuldade na Igreja Católica de modificar-se abrindo mais espaço aos leigos e novas possibilidades aos padres, além do domínio, em boa parte das denominações evangélicas, de uma teologia da prosperidade sustentada por igrejas de caráter mais corporativo do que comunitário, faz desenvolver rapidamente um tipo de religiosidade self service de caráter hiper individualista e egocêntrico que faz deitar raízes profundas um tipo tropical de religiosidade secular. Diria que a teologia da prosperidade é a semeadura do ateísmo futuro.

Com padres e pastores, embora não sejam todos, entretidos mais com suas próprias necessidades, seja fazer crescer indefinidamente suas igrejas como uma corporação pressionada pelos acionistas, ou viver sua vida particular como se nada devesse aos fiéis que dão vida a sua comunidade, o fato é que cada vez de maneira mais nítida aflora um tipo de religioso mais parecido com um funcionário de repartição pública do que com um guia espiritual, um mestre em quem as pessoas possam encontrar refúgio e abrigo nestes tempos tristes e depressivos. Os próprios padres e pastores buscam na vida religiosa um emprego, um porto seguro contra as incertezas que tomam conta da vida de todos, ou mesmo um lugar onde possam esconder ou viver escondido suas misérias psíquicas longe do escrutínio público. Ou pior, militar por causas pessoais tendo como fiador a credulidade do povo.

Funcionários de serviços religiosos, assim parece boa parte dos padres. Descomprometidos espiritualmente com a comunidade, sem ligação afetiva com as demandas reais do povo que lhes acolhe, incapazes de serem guias, de serem líderes e de lidarem sua Igreja, e profundamente despreparados intelectualmente para fazerem frente ao poderoso discurso e modo de vida secular, assistimos os próprios religiosos vivendo os mesmos dramas, medos, ansiedades e desejos que todos os leigos. Aqui, os religiosos se encontram com os pais, maridos, professores e autoridades em geral. É a crise da sociedade e a mais completa falta de rumo vivida também pelos religiosos.

A renúncia de Bento XVI, que muito ensina em termos de desapego ao poder, status e a pompa, é um bom momento para discutirmos tais e importantes questões. Afinal, num mundo secular em crise em que a razão dá mostras contundentes de seus limites como fio condutor da sociedade, talvez seja o momento de se pensar novas possibilidades. Ou, como disse Claude Lefort “…a esperança… depende da possibilidade de uma reconciliação do espírito da democracia com o espírito do cristianismo” (In: Novaes, Adauto. Org. A crise da razão. Companhia das Letras, 1996, 36).

 

 

 

Redação

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