Dostoievski no Brasil: uma sátira, por Franklin Frederick

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Por Franklin Frederick

O Brasil visto através de grandes obras da literatura ou Dostoievski no Brasil: uma sátira 

 – Em nosso programa ‘Literatura e Sociedade’ de hoje vamos tratar de um novo fenômeno. Graças aos esforços do Governo Temer, a imagem do Brasil projetada internacionalmente mudou muito e tem atraído a atenção de escritores estrangeiros ao mesmo tempo intrigados e espantados com o que se passa por aqui. Na França, por exemplo, talvez o caso mais emblemático devido à tradicional proximidade com o nosso país, vários romancistas decidiram ambientar suas novas criações no Brasil. O recente livro de Jean Genet “Diário de um ladrão” se passa inteiramente dentro do Congresso Nacional. Já o romance do jovem escritor Albert Camus, “A Peste”, conta uma estória que acontece entre a Praça dos Três Poderes em Brasília e a Avenida Paulista. Mas o autor que melhor encarna esta tendência na França é Marcel Proust que, escrevendo com um virtuosismo incomparável, criou um romance que é um amplo panorama da sociedade brasileira do futuro. Marcel Proust imaginou em sua obra o Brasil de daqui a 20 anos, um país enredado em dificuldades que, como ele mostra, têm sua origem em nossa época. ‘Em busca do tempo perdido’, título de seu livro e imagem do Brasil do futuro, já é um clássico ‘incontournable’ da literatura francesa.  

 

Esta nova tendência da literatura contemporânea não se restringe apenas à França. Franz Kafka, um promissor escritor de língua alemã residente em Praga, na República Tcheca, publicou há pouco tempo um romance estranho e inquietante sobre o sistema jurídico brasileiro, “O Processo”, no qual L., personagem principal desta obra, é acusado não se sabe de quê e acaba envolvido em um interminável, absurdo e misterioso processo. L., impotente, passa então a viver um verdadeiro pesadelo e obstinadamente tenta provar sua inocência frente a uma perseguição inexplicável e sem fim pelo aparato judicial. Trata-se de um livro de leitura difícil, por vezes angustiante, uma realização única dentro da literatura ocidental.

Por fim, na Rússia, o escritor Fiódor Dostoievski publicou um romance inteiramente ambientado em nosso país, “Crime e Castigo”. Aproveitando a presença do autor para o lançamento da edição brasileira, realizamos com ele uma pequena entrevista.

– Fiódor, de onde veio a idéia de escrever um romance ambientado no Brasil?

– O Brasil e a Rússia tzarista tem muito em comum: ambas são sociedades muito hierarquizadas e extremamente desiguais, com concentrações de renda e de terra praticamente feudais. Ambos têm um vasto território com enormes riquezas naturais que trazem pouco ou nenhum benefício para a maioria da população. E estes dois países têm em comum, sobretudo, oligarquias que reagem violentamente a qualquer tentativa de mudar esta situação. Por esses motivos eu já havia pensado em ambientar um conto no Brasil – “O Sonho de um Homem Ridículo” – mas acabei desistindo por não me achar preparado. Uma obra em que eu pudesse realmente dar conta de toda a complexidade do Brasil teria que ser um romance. Quando comecei a escrever “Crime e castigo” eu já havia decidido que a estória se passaria em Brasília, esta cidade onde tantas coisas estranhas podem sempre acontecer.

– Você poderia nos contar algo sobre a trama deste romance que não estrague, claro, nenhuma surpresa da leitura?

– É a história de um crime. Mikhail, a personagem principal, se julga um novo Napoleão, mas ele não tem os recursos para realizar sua ambição. Mikhail decide então matar uma senhora para assumir em seguida a posição que ela ocupava e conseguir deste modo acesso à riqueza e poder. Mas esse crime se dá logo no início do romance, o que me interessa contar é o que vem depois. A verdadeira estória começa depois do crime cometido por Mikhail.

– Trata-se então de um romance policial?

– Em parte sim, mas o meu objetivo foi o de abordar, a partir do crime cometido por Mikhail, temas mais profundos. O crime de Mikhail é conhecido por muitos, foi cometido mesmo à luz do dia, mas Mikhail tenta de todas as maneiras permanecer impune, evitar o castigo. Mikhail constrói então uma aliança com interesses que também se beneficiaram do crime cometido por ele e que podem protegê-lo.

-E você poderia revelar que interesses são esses?

– Os interesses que protegem Mikhail são muitos, mas todos identificados com o ‘deus mercado’, do qual ele aceita ser um instrumento. O verdadeiro tema do meu romance é justamente esse: a transformação de pessoas e de instituições em instrumentos do “deus mercado”, levando-as a cometerem verdadeiras barbaridades.

– O “deus mercado”, como você diz, também é uma personagem do seu romance?

– Não é uma personagem, mas é o foco maior das minhas preocupações, pois se o “deus mercado” existe, se é ele o único poder de fato, então TUDO É PERMITIDO.

– Entendo. Vamos deixar que os seus futuros leitores descubram mais sobre o seu livro. Para terminar nossa conversa, gostaria de saber se você já está envolvido em algum novo projeto?

– Estou escrevendo um romance relacionado com a estória de Mikhail. Para mim, Mikhail é muito importante, pois ele não representa apenas um indivíduo, Mikhail é um tipo, uma espécie: existem vários Mikhails. E eu acho que é fundamental conhecer a fundo a estória de Mikhail, saber a verdadeira razão de seu crime. Por isso meu novo livro também se passa no Brasil, em São Paulo. É a estória de um cidadão da classe média que se deixa enganar por Mikhail e por tudo que ele representa; um cidadão que, contra os seus próprios interesses, acaba por apoiar o projeto de poder de Mikhail e de seus aliados.

– E esta sua nova obra já tem um título?

– O Idiota.

– Muito obrigado por esta entrevista.

Na próxima semana teremos um programa especial. O renomado escritor austríaco Stefan Zweig, autor de “Brasil, país do futuro?“ vai entrevistar em Petrópolis dois filósofos que também se inspiraram no Brasil para produzir suas obras: Soren Kierkgaard, que vai nos apresentar o seu monumental estudo filosófico sobre as elites brasileiras, o importantíssimo “Nem…nem…”; e Friedrich Nietzsche, que falará sobre o seu influente ensaio “Além de Zarathustra: O Brasil e o Mito do Eterno Transtorno”.

***

Kierkgaard não escreveu um livro chamado ‘Nem…nem…”, o título do seu livro mais famoso é ‘Ou..ou…”. Nietzsche tampouco escreveu sobre o eterno transtorno, mas sim sobre o mito do eterno retorno, em ‘Assim falou Zarathustra’. Fiz uma brincadeira com estes dois autores. Mas, quem sabe, se eles tivessem conhecido o Brasil, sobretudo hoje em dia, talvez tivessem mesmo escrito alguma coisa assim.

Stefan Zweig, judeu, veio para o Brasil fugindo da perseguição nazista. “Brasil, país do futuro” – sem o ponto de interrogação (?) que eu coloquei, outra brincadeira minha – foi publicado em 1941. O que eu acho é que nem com toda a boa vontade do mundo o Stefan Zweig veria qualquer futuro para o Brasil do pós-golpe.

Devemos a publicação em 1925 de ‘O Processo’ de Franz Kafka, também judeu, ao seu amigo Max Brod, que desobedeceu as instruções deixadas em testamento por Kafka de que seus escritos fossem destruídos. Kafka morreu com apenas 40 anos em 1924, bem antes que a barbárie nazista desembestasse pela Europa. Mas suas três irmãs mais novas morreram todas em campos de concentração.

‘Crime e Castigo’, de Fiódor Dostoievski, foi publicado em 1866. O nome da personagem principal não é Mikhail – que em português seria Miguel ou Michel – mas Ródion Raskólnikov. ‘O Idiota’ é de 1869. Nenhum desses dois romances, claro, tem a ver com o Brasil.

Marcel Proust, judeu e homossexual, publicou o primeiro volume de ‘Em busca do tempo perdido’ em 1913.

Albert Camus, antifascista e membro da resistência francesa, publicou sua obra–prima, uma denúncia sem igual da expansão fascista na Europa, ‘A Peste’, em 1947.

Jean Genet, homossexual e antifascista, publicou seu romance autobiográfico ‘Diário de um ladrão’ em 1949.

No Brasil de Temer, Bolsonaro, MBL, bancada evangélica e semelhantes, nenhum desses autores teria a menor chance. Portanto, quem se interessar por eles faria bem em começar a lê-los rápido. Antes que proíbam.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

8 Comentários

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  1. o artista  mesmo com ansia de

    o artista  mesmo com ansia de vômito consegue produzir sua arte. no caso ótimo texto e ainda cômico. obrigado Frank.

    a ânsia de vômito é provocada pelo neoliberalismo-fascista.

    mas é bastante sério pois infelizmente o alerta é válido: no andar da carruagem os artistas citados poderão vir a ser poibidos e seus livros queimados em praça pública.

    1. matilha

      sem falar da possibilidade da nossa ilustradíssima matilha iniciar uma enorme caçada para queimar, não seus livros, mas os próprios.

  2. Excelente

    Profundo conhecedor da melhor literatura mundial o autor do texto fez um paralelo-aplicação excepcional de grandes obras de diferentes épocas com o Brasil atual. Tenho o atrevimento de sugerir mais uma. País afundado na hipocrisia de uma classe dominante enriquecida às custas de um povo notável e sofrido e acostumada a usar o Estado em benefício próprio, deveria chamar agora “A Casa Soturna” (brilhante romance de Charles Dickens que desnuda a Justiça da Inglaterra de seu tempo).

  3. Outro livro de Stefan Zweig

    Esse é um livro que recomendo tanto quanto os demais acima.  Joseph  Fouché lembra muito os nossos

    políticos oportunistas, traidores e escrotos. Não estou me referindo a todos, só aos mais notórios!

     

    Joseph Fouché – Retrato de um Homem Político

    Stefan Zweig

  4. O Brasil visto através de grandes obras da literatura

    Como o inspirado Franklin, é inescapável para mim não estabelecer um paralelo após o golpe e seis meses apenas de Temer e seu elenco no poder, entre o Brasil que se assustadoramente se materializa e Germinal de Emile Zola, com toda a sorte de indignidade humana ali retratada. Estamos regredindo para a França de 1865 pré revolução francesa.  

  5. Um primor

    Aguardando os próximos.

    Muitos autores promissores, ainda desconhecidos, têm o seu lugar entre os do texto.

    Um tal de Dante e um tal de Victor Hugo, por exemplo.

  6. 100 anos de “delay”

    O artigo ilustra muito bem como algumas obras literárias de quase 100 anos atrás (ou mais), caem como anel no dedo no Brasil atual. 

    Concluo aqui, em termos de evolução da sociedade, que estamos quase 100 anos atrasados em relação a muitos outros países ditos desenvolvidos. Na tecnologia, na indústria (civil e bélica) e em diversos outros campos não é diferente.

    Brasil é hoje moderno apenas em modernidade de consumo, colaborando com o processo de colonização (celular, internet, TV, viagens baratas a Disney e outras coisas modernas), ou para exportar commodities, nunca uma modernidade interna, real, própria, para o serviço de uma nação moderna e autônoma.

    Brasil possui também alguns modernosos nas suas discussões de gênero, que se acham os “puros” da esquerda, conduzidos como rebanho pela mídia global, que caminha para a desagregação de famílias e comunidades ainda não desenvolvidas, na procura apenas da “desculturização” e da atomização (multiplicação) do consumo.

    Muitos querem rapidamente ser modernos, numa viagem revigorante e moderna a Miami, ou na modernidade de ideias progressistas em relação a conversas de boteco em Paris, mas, se resistem a fazer o dever de casa, de tentar tirar estes 100 anos de atraso que temos com o resto do mundo desenvolvido. Brasil precisa passar primeiro pela fase de construção da nação e da sociedade.

    Brasil precisa ainda passar por Brizola ou por uma “brizolação”, antes de “pular” angelicalmente para a esquerda modernosa de Paris que alguns pretendem discutir. Cuidado com querer pular no tempo sem antes termos passado pelo que os países realmente desenvolvidos passaram antes de chegar lá.

    Há uma armadilha nisso, de caminhar para uma modernidade falsa de aparências, de achar que é moderno um jovem favelado com iphone.

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