É melhor que Jair coloque um progressista no STF, por Ricardo de Oliveira Morais

Ao fim e ao cabo, tudo o que Bolsonaro precisa é de alguém que cumpra a Constituição. Sequer é necessária uma hermenêutica muito elaborada

Por Ricardo Manoel de Oliveira Morais

No Justificando

A afirmação contida no título deste texto pode parecer contraditória, sobretudo porque o atual Presidente da República é alguém, autodesignado, de “extrema direita” e “ultraconservador”. Quanto ao seu “conservadorismo”, eu teria algumas ressalvas, já que ser conservador é diferente de ser “reacionário” e retrógrado. “Conservar” determinados institutos de uma sociedade ou querer que as mudanças sejam lentas, pensadas, calculadas e, de preferência, postergadas é diferente de querer que a sociedade retroceda a um passado idealizado que jamais existiu. Mas não estamos aqui para pedir rigor conceitual ao Capitão, não é mesmo? Afinal, ele não ganhou a eleição pelo seu elevado e reconhecido conhecimento.

Mas, considerando que o Presidente não é exatamente alinhado ao campo progressista, por que Bolsonaro deveria indicar alguém que o seja para o Supremo Tribunal Federal? É simples. Pelo fato de que ele depende disso. Explico. Atualmente, vemos a família Bolsonaro em meio a uma série de “enredos” mal explicados, envolta em uma gama de práticas que contradizem o que sempre pregaram. Vejamos alguns exemplos.

Flávio Bolsonaro, o filho mais velho do Capitão, é acusado de ter cometido “rachadinhas” em seu gabinete, prática na qual os assessores devolvem parte de seus salários para os parlamentares. Além disso, ele parece ter se valido de “funcionários-fantasma” para dar cabo a esta empreitada ilegal. Ou seja, ele não só exigia parte dos salários de sua equipe, como nomeou indivíduos que jamais prestaram serviços em seu gabinete, tudo com o intuito de se apropriar dos respectivos salários. Até aqui já se poderia imputar as práticas de peculato, de sonegação tributária, de falsidade ideológica e de associação criminosa (ou organização criminosa, cuja pena é ainda mais elevada). As penas somadas podem chegar a mais de 25 anos de reclusão.

Não discuto se a prática da rachadinha poderia ser enquadrada como ilícito penal. Pessoalmente, não acho razoável a expansão do Direito Penal para condutas que não são claramente tipificadas. Entretanto, um jurista bolsonarista é, por definição, punitivista. Alguém que comungue dos ideais do Presidente acha razoável devassar e vazar informações sobre a vida financeira de um cidadão, mesmo que ele seja um Senador da República. Um jurista bolsonarista é contra o “foro privilegiado”, instituto que o próprio Presidente disse, ao lado de Flávio, ser coisa de “bandido”. Hoje, Flávio recorre desesperadamente a tal “privilégio” (instituto que, aliás, eu julgo bastante válido, uma vez que alguém que exerce um cargo de representação de grandes interesses sociopolíticos deve possuir um regime de responsabilização diferenciado. Mas este já é um tema para outro texto).

Quanto a Carlos Bolsonaro, a situação é igualmente “complexa”. Segundo informações veiculadas pela imprensa oficial, o Vereador comandaria um esquema de desconstrução de imagens e reputações de cidadãos e cidadãs, operando por meio do apelidado “Gabinete do Ódio”. Sem embargos, um jurista punitivista (e, por conseguinte, bolsonarista) veria nesta prática a presença de crimes cibernéticos, de calúnia, de difamação, de injúria, de organização criminosa, de peculato (já que este esquema seria financiado com dinheiro público) e corrupção ativa e passiva. Isso sem falar em eventuais ilícitos ligados ao tipo penal de ameaça. As penas somadas podem ultrapassar o patamar de 35 anos de reclusão.

Aliás, a própria investigação que se aproxima de Carlos é “polêmica” do ponto de vista de um “jurista progressista” ou “garantista”. Um bolsonarista acharia normal que um tribunal instaure, de ofício, um inquérito para apuração de notícias falsas, sem o consentimento do Persecutor Geral da República, realizando prisões e decretando medidas cautelares. Por outro lado, um “garantista” certamente teria rechaçado tal ação do STF.

No que diz respeito à Sra. Micheque, digo, Michelle, novamente a situação não é tão simples. Sem o tal “foro privilegiado”, há fortes indícios de que a Primeira Dama recebeu uma série de depósitos referentes a dinheiro não declarado de Queiroz. A soma chega, até onde se sabe, a 89 mil reais. A origem destes depósitos pode dizer respeita à ilícitos ainda mais graves. Novamente, um jurista bolsonarista veria nesta conduta a prática de corrupção passiva, de lavagem de dinheiro, de associação criminosa e, talvez, de peculato e ilícitos relacionados à milícia (como tráfico de drogas, homicídios, ameaça, concussão, corrupção. Afinal, não se sabe qual a origem do dinheiro depositado). As penas podem ultrapassar o patamar dos 30 anos de cadeia.

Ainda, um bolsonarista acharia aceitável que a Primeira Dama brasileira fosse conduzida coercitivamente à Delegacia da Polícia Federal para esclarecer tais transações. Acharia ainda mais aceitável que fosse decretada a sua prisão preventiva, a fim de que ela se sentisse compelida a realizar uma delação premiada. O próprio Sérgio Moro já decretou preventivas por muito menos. Bretas, inclusive, já as decretou sem qualquer motivação.

Pois bem. Diante deste cenário, o que deveria fazer Bolsonaro? O contrário do que fez Temer. O mdbista, mesmo sabendo que poderia necessitar de um “apoio garantista”, indicou um Ministro pouco afeito às questões do banco do réu. Alexandre de Moraes é oriundo do Ministério Público, ou seja, carrega a persecução penal no bolso do paletó. Quando Secretário de Estado da Justiça de São Paulo, acompanhou pessoalmente algumas ações policiais. Ousaria dizer que não chutou portas por mera contingência. Não obstante, votou pela restrição do “foro privilegiado”, ajudando a corromper a literalidade da Constituição. Dedicou a favor da automatização da prisão após a condenação em 2ª instância. Imaginem se Temer for condenado no TRF do Rio? Bretas, seguramente, não deixará este espetáculo passar.

Diante disso, Bolsonaro precisa, e muito, de um Ministro que (vou enumerar para que o leitor não se perca):

1) seja favorável à literalidade do texto constitucional, restabelecendo o foro por prerrogativa de função às autoridades elencadas na Constituição. Seu filho Flávio, seguramente, precisará de ganhar tempo para que seus supostos crimes prescrevam, assim como Carlos;

2) seja contrário à flexibilização da garantia individual de sigilo financeiro, tão abalada pelo lavajatismo e, reconheçamos, pela investigação midiática em face de Flávio. Ora, se o juiz do caso Flávio aplicasse a Constituição, os vazamentos de informações sigilosas já teriam rendido duras punições;

3) seja contrário às conduções coercitivas espetaculosas e às prisões preventivas como meio de constituir “reféns” a serem liberados apenas após delatarem;

4) seja contrário à automatização da prisão após a segunda instância, já que Flávio e Carlos podem vir a ser condenados em “processos à jato” a fim de que possam ser presos em uma ação espetaculosa;

5) seja capaz de entender que, no sistema acusatório, não é razoável que uma Corte promova uma investigação de ofício e tome medidas cautelares quando o próprio acusador já se manifestou contrário a tal procedimento. Investigador, acusador e julgador são figuras que não podem ser misturadas. Aparentemente, o indicado de Temer não concorda com tal premissa.

Ao fim e ao cabo, tudo o que Bolsonaro precisa é de alguém que cumpra a Constituição. Sequer é necessária uma hermenêutica muito elaborada. Ora, o texto constitucional, em seu artigo 102, inciso I, alínea b, não deixa margens para interpretações outras: nas infrações comuns, os congressistas serão julgados pelo STF. Não há restrições. Não há limitações. O mesmo se dá com relação à prisão somente após o trânsito em julgado, à presunção do estado de inocência, ao direito de não produzir provas contra si mesmo, ao direito ao silêncio e ao princípio do acusatório. Aliás, considerando a clareza do texto constitucional, tudo o que o Bolsonaro precisa é de alguém que saiba ler. Ler e entender. Entender que não cabe ao STF legislar em detrimento de garantias constitucionais, mas preservá-las. Mas, como disse Streck, o progressista passou a ser aquele que simplesmente cumpre a lei.

Com isso, concluo dizendo que Bolsonaro precisa de um progressista no STF. E precisa com urgência.

Ricardo Manoel de Oliveira Morais é doutor em Direito Político pela UFMG. Mestre em Filosofia Política pela UFMG. Bacharel em Direito (FDMC) e em Filosofia (FAJE). Professor.

Redação

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