Estamos hipotecando o futuro, por Marta Bergamin e Jacqueline Quaresemin

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Nesse primeiro mês de governo Bolsonaro, a frase de Zygmunt Bauman nos convida à reflexão

Foto Globedia

“Estamos hipotecando o futuro”

por Marta Bergamin e Jacqueline Quaresemin de Oliveira

Ao projetar o Brasil a partir das ações apresentadas nesse primeiro mês de governo Bolsonaro, a frase de Zygmunt Bauman nos convida à reflexão.

O cenário que se configura pode ser melhor compreendido perguntado se há futuro para os jovens. Um país que não faz das suas políticas um modo de planejar a recepção de seus jovens à vida adulta não se imagina como um país. A vida têm outras esferas, para além da economia. A produção da vida se dá no cotidiano que guarda influências dos afetos promovidos na coletividade para construir à vida: o planejamento financeiro, a família, o trabalho, as sociabilidades são aspectos que compõem as identidades sociais construídas no tempo e espaço social. As mudanças que ainda serão anunciadas, em provável aprovação da reforma da previdência, mostram, nessa medida, à impossibilidade de os trabalhadores estarem socialmente protegidos na velhice. Uma indistinção entre trabalhadores do campo e trabalhadores urbanos, de homens e mulheres para a idade mínima de aposentadoria contrário de debelar a brutal desigualdade social, parecem reforçar o desalento da velhice no Brasil. E os jovens, como se vêm nessa panaceia de políticas distópicas? 

Paulo Guedes, Ministro da Economia, lançou na semana passada uma proposta juntando previdência e as novas reformas dos direitos do trabalho, que avança para extinção do 13º salário, férias, entre outras questões que, de modo geral, acabam com à CLT por uma nova carteira de trabalho. Além de testar a opinião pública, e através de monitoramento e análise de rede sociais, definir estratégia de comunicação, a fala de Guedes “ou se tem emprego ou se tem direitos”, usa a ameaça como estratégia de convencimento, desvelando a ultra liberalizante reforma que junto à Escola de Chicago pretende fazer. A nova carteira de trabalho Verde e Amarela é especialmente concebida para os jovens. Jovens estes, que nunca acessarão direitos sociais do trabalho. Jovens que também foram chamados de “nem, nem” por Osmar Terra, Ministro da Cidadania, quando criticava os beneficiários do Bolsa Família. Nota-se, porém, que tal perfil “nem nem” nunca foi monitorado pelo Programa.

Os chamados “nem nem”, termo que desconsidera, por exemplo, às novas formas de inserção dos jovens no mercado de trabalho a partir de tecnologias digitais, de comunicação, desenvolvendo aplicativos, games, gerando conteúdo, entre outras ocupações via web, evidencia, que de fato, “nem nem” se sabe o que andam fazendo os jovens, dada à cristalização de conceitos e preconceitos sobre determinados segmentos sociais.

O IBGE apontou que no Brasil em 2017 eram 11,2 milhões de jovens entre 15 a 29 anos que não estudavam, nem trabalhavam. Entretanto, muitos jovens deixaram a escola para trabalhar pela queda na renda e consequente desordem no orçamento das famílias de baixa renda. Mas, também há um histórico índice de evasão escolar devido à ausência de política inovadora, mais abrangente que mantenha/atraia os jovens para Escola e uma consequente expulsão do ambiente escolar de parcela significativa destes. O movimento Todos pela Educação, aponta que em 2018, 36,5% dos jovens com até 19 anos não concluíram o ensino médio. Os dados mostram um quadro bastante preocupante sobre a desistência dos jovens da escola, considerando que quase um quarto dos brasileiros com idade escolar não consegue fechar esse ciclo educacional[i]. Tal desistência vai acontecendo ao longo do percurso escolar e se acentua junto à população negra, como mostram os dados. A disparidade de raça no Brasil mantém essa constante na Escola e, mais uma vez, mostra o cuidado que se deve ter com o tema da educação para que o Brasil possa garantir um futuro aos jovens. Mais do que discutir temáticas irrelevantes ou que estão longe de representar os maiores problemas da Educação, como questões postas pela Escola Sem Partido, por exemplo, às políticas precisam inovar para garantir a permanência dos jovens negros e de jovens em situações de maior vulnerabilidade social nas escolas.

Às escolas de periferias deveriam ser as mais bem equipadas com arte, cultura, espaços de inovação, além da melhor remuneração de professores. Isso por que em tais territórios os jovens são mais suscetíveis as trajetórias de seus pais, na grande maioria com baixa instrução, e trabalhos precários de baixa remuneração, o que dificulta a transposição das barreiras da pobreza. Este sim um tema que deveria estar entre os principais focos para combater a brutal desigualdade social do país. Só quem leciona ou convive com jovens sabe dos dilemas que estes enfrentam. É uma problemática mais complexa do que o uso de “categorias” como “nem nem”, forjadas para legitimar discursos excludentes. Daí a necessidade de políticas transversais para juventude onde os Ministérios da Educação, Saúde, Justiça e Segurança Pública, Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos conversem para atender a complexidade do problema, pois é grande o envolvimento de jovens que buscam no tráfico de drogas uma forma de inserção social, situação que depois é quase irreversível.

Há muito o Brasil vive uma guerra civil velada que mata jovens e policiais. Resta saber quem está ganhando com tudo isto, como bem denuncia o documentário “Relatos do Front”, exibido na Mostra de Cinema em São Paulo/2018, do Diretor Renato Martins e Jacqueline Filmes.

Nas periferias dos grandes centros urbanos que estão os maiores índices de homicídio de jovens. A maioria dos presos e presas, jovens e negros, condenados por infrações relacionadas às drogas e crimes patrimoniais, estão em presídios superlotados, com alto déficit de vagas. Portanto, o combate ao crime organizado e o tráfico de drogas é uma parte da ação de política de segurança pública, mas a solução do problema da violência precisa enfrentar as graves questões sociais. Isto é, a violência será diminuída a medida da redução das desigualdades sociais com políticas inclusivas e não meramente e/ou prioritariamente repressivas. As “altas cotações” dos índices de violência beneficiam à indústria bélica e a “indústria da segurança” privada, cada vez mais integrada ao Estado.

Uma análise criteriosa do termo “nem nem” talvez mostre que o Estado não está “nem” aí para questões da juventude. Segundo o Atlas da Violência (relatório IPEA sobre letalidade de armas de fogo no Brasil) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, na década de 2005 a 2015[ii], foram assassinados 318 mil jovens. Destes, 54,1% eram vítimas de homicídio e tinham entre 15 e 19 anos. No mesmo período a taxa média de homicídios na população brasileira era de 28,9 mortes por 100 mil, e entre os jovens atingia 60,9 mortes por 100 mil. A situação foi denunciada pela ONU[iii], colocando o Brasil com 10º país que mais mata jovens no mundo. Em 2014 os jovens foram mais de 25 mil vítimas de homicídio, sendo 37,7% dentre a população negra.

A pauta com jovens, numa perspectiva de educação cidadã, deveria estar preparando-os para uma sociedade em transformação, hiperconectada, com estimativa de uma demanda de recursos humanos em TI (tecnologia da informação) na ordem de 408.000 até 2022, segundo o Ministério da Ciência e Tecnologia/Softex. Ao contrário, às políticas apresentadas abortam o potencial de inovação do país.

As notícias da semana, para além das reformas, certamente intensificarão o debate daqui para frente. Dentre tantas sinalizando retrocessos e “morte” de conquistas dos movimentos sociais, estão, por exemplo, a extinção do coquetel para tratamento de HIV no SUS; a ativação dos manicômios com eletrochoques para reabilitação de adictos em drogas, esta retrocede ao período medieval. A implantação de um sistema de leis (modelo retrogrado e que já deu errado em vários países) que aumenta as possibilidades de jovens negros e pobres serem criminalizados e encarcerados, em detrimento de crimes/denúncias de corrupção não serem investigados e/ou investigados seletivamente, que em nada contribui para ampliar à Justiça.

A sociedade brasileira vem mudando e os jovens já representam uma nova geração digital, com novos costumes permeando sua própria composição familiar. As famílias brasileiras encontram novos arranjos, onde somente 42,3% é compostas por mãe, pai e filhos, como mostram o resultado da PNAD[iv] 2015. Há uma queda significativa (7,8%) desse arranjo familiar tradicional no período de 2005-2015, que antes representava 50,1%. Lembrando que 20% dos casais brasileiros não têm filhos.

Analisando tais dados, é possível afirmar que as políticas pensadas para às mulheres forçando-as a assumirem papéis sociais imaginários de esposas, mães, donas de casa (“vestida com avental na cor rosa”), héteros, entre outras características que desrespeitam completamente a pauta da ONU Mulheres são invenções de uma sociedade que não existe! Desrespeita o direito de as mulheres construírem projetos independentes de maridos e/ou filhos para sua vida identitária, e uma subjetividade ligada também ao trabalho profissional. A vida social conquistada pelas mulheres supõe também à liberdade do corpo, da escolha em manter ou não uma gravidez; de tomar anticoncepcional ou pílula do dia seguinte; de colocar um DIU e planejar se quer ou não ter filhos. Para às mulheres jovens seria importante que às políticas específicas partissem de estudos que mostram uma sociedade em transformação e que deverá receber mulheres com mais anos de estudos do que os homens, e que ganham cada vez maior independência social. Portanto, precisa-se reconhecer e respeitar esta mulher.

A “síntese” aqui é o início de um debate. Os textos com +-140 dígitos (twitter) ficam para posicionamentos pontuais (ou para os que não tendo conteúdo usam aplicativos somente para propaganda política). Diante de tantas questões pautadas por tal governo, já é possível dizer que o Brasil do futuro também não pode garantir às gerações que envelhecem o mínimo de dignidade nessa fase da vida. O crescimento do suicídio na velhice para os chilenos (assim como aumento entre jovens, mulheres e indígenas no Brasil) deveria servir de alerta. As pessoas envelhecerão e precisam de um país que as acolha. O Brasil de 2019 esqueceu que a vida social é complexa, que somos muitos brasileiros e brasileiras com vidas diferentes, distantes, com diferentes composições familiares, religiosas, de trabalho, etc. e que tal multiplicidade de valores morais, étnicos, culturais devem ser debatidos na perspectiva de reafirmar valores democráticos. Não há expectativa com o atual governo. Tem-se que continuar o trabalho, agora de forma mais intensa, na perspectiva de gerar o debate, a reflexão, principalmente com jovens, porque este é o papel do professor. E de posse de tais reflexões os jovens conseguirão fazer as melhores escolhas para o futuro que desejam.

Marta Bergamin (Socióloga) e Jacqueline Quaresemin de Oliveira (Historiadora) são professoras da FESPSP nos cursos de Graduação em Sociologia e Pós-Graduação em Opinião Pública e Inteligência de Mercado, respectivamente.

[i] Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC), do IBGE, reportagem do G1 de 18.12.2018 (https://g1.globo.com/educacao/noticia/2018/12/18/quase-4-em-cada-10-jovens-de-19-anos-nao-concluiram-o-ensino-medio-aponta-levantamento.ghtml).

[ii] STOBBE, Andréa Caon Reolão, JAPIASSU, Carlos Eduardo Adriano, OLIVEIRA, Jacqueline Quaresemin. Internação de Adolescentes: da situação irregular às irregularidades do Estado. Trabalho apresentado no Congresso Internacional de Pesquisa em Ciências Criminais, 2017.

[iii] https://nacoesunidas.org/brasil-e-10o-pais-que-mais-mata-jovens-no-mundo-em-2014-foram-mais-de-25-mil-vitimas-de-homicidio/

[iv] https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/3ee63778c4cfdcbbe4684937273d15e2.pdf

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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  1. É realmente impressionante como as ações do atual governo apontam para o lado totalmente oposto ao dos nossos problemas sociais verificados através dos indicadores que vocês bem selecionaram, e daí a real possibilidade de aumento das desigualdades, das violências e, consequentemente, da piora nas condições de vida. Soma-se a isso um fechamento dos canais de participação popular, que certamente será sentido ao se colocar em prática o que pretende o governo: criminalizar movimentos sociais, a exemplo da atitude do governador de São Paulo.
    Por fim, a ação levantada por vocês, de ampliar o debate e promover a reflexão é de fundamental importância não só porque se coloca como o grande desafio dos profissionais da educação, já há algum tempo na mira do grupo político que venceu as eleições, mas porque de maneira geral, em nossa vida cotidiana, realmente estamos perdendo a capacidade de dialogar, e esse é o grande desastre que acaba por ceder espaço às ações retrógradas.
    E assim como vocês colocam o desafio que lhes cabem como professoras, que dialogam com jovens, é necessário que cada um pense na forma de agir a partir de sua área de atuação.
    Grande abraço.

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